A Educação de Eleanor - Gail Honeyman - Literatura (2024)

Literatura

Eeefm Doutor Francisco De Albuquerque Montenegro

josivaldoeokara Bezerra 12/10/2024

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<p>DADOS DE ODINRIGHT</p><p>Sobre a obra:</p><p>A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e</p><p>seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer</p><p>conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos</p><p>acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da</p><p>obra, com o fim exclusivo de compra futura.</p><p>É expressamente proibida e totalmente repudíavel a</p><p>venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente</p><p>conteúdo.</p><p>Sobre nós:</p><p>O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de</p><p>dominio publico e propriedade intelectual de forma</p><p>totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e</p><p>a educação devem ser acessíveis e livres a toda e</p><p>qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em</p><p>nosso site: eLivros.</p><p>Como posso contribuir?</p><p>Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras,</p><p>enviando livros para gente postar Envie um livro ;)</p><p>Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo</p><p>de servidores e obras que compramos para postar, faça</p><p>uma doação aqui :)</p><p>"Quando o mundo estiver unido na busca do</p><p>conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e</p><p>https://elivros.love/</p><p>https://elivros.love/</p><p>https://elivros.love/</p><p>https://elivros.love/page/EnviarLivros</p><p>https://elivros.love/page/Doar</p><p>poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir</p><p>a um novo nível."</p><p>eLivroseLivros.love.love</p><p>Converted by convertEPub</p><p>https://elivros.love/</p><p>https://convertepub.com/</p><p>Gail Honeyman vive e trabalha em Glasgow.</p><p>A Educação de Eleanor, o primeiro livro da autora, foi um dos livros mais</p><p>destacados na feira do livro de Frankfurt de 2015, tendo direitos de tradução</p><p>cedidos para 26 países.</p><p>© Philippa Gedge</p><p>A educação de Eleanor</p><p>Gail Honeyman</p><p>Publicado em Portugal por</p><p>Porto Editora</p><p>Divisão Editorial Literária – Lisboa</p><p>Email: dellisboa@portoeditora.pt</p><p>Título original:</p><p>Eleanor Oliphant is completely fine</p><p>© Gail Honeyman, 2017</p><p>Tradução de Elsa T. S. Vieira</p><p>Design da capa: Manuel Pessoa</p><p>Imagens da capa: © Bernard Lang/ Getty Images</p><p>1.ª edição em papel: maio de 2017</p><p>ISBN 978-972-0-68799-9</p><p>Este livro respeita</p><p>as regras do Acordo Ortográfico</p><p>da Língua Portuguesa.</p><p>Para a minha família</p><p>«… a marca da solidão é um desejo intenso de pôr fim</p><p>à experiência; algo que não é possível alcançar com mera</p><p>força de vontade ou simplesmente saindo mais de casa, mas</p><p>apenas através do desenvolvimento de ligações íntimas.</p><p>Contudo, é muito mais fácil de dizer do que de fazer, em</p><p>especial para pessoas cuja solidão deriva de um estado de</p><p>perda, exílio ou preconceito, pessoas que têm motivos para</p><p>temer ou desconfiar da companhia dos outros, apesar de a</p><p>desejarem.»</p><p>«… quanto mais uma pessoa se sente solitária, menos</p><p>capacidade tem de navegar pelas correntes sociais. A</p><p>solidão cresce à sua volta, como bolor ou cotão, um</p><p>profilático que inibe o contacto, por mais que esse contacto</p><p>seja desejado. A solidão desenvolve-se por acreção,</p><p>estende-se e perpetua-se a si própria. Depois de instalada,</p><p>não é de forma alguma fácil de desalojar.»</p><p>Olivia Laing, The Lonely City</p><p>Dias bons</p><p>1</p><p>Quando as pessoas – taxistas, higienistas orais – me perguntam o</p><p>que faço, respondo-lhes que trabalho num escritório. Em quase nove</p><p>anos, nunca ninguém quis saber que tipo de escritório é, nem qual o</p><p>trabalho que lá faço. Não consigo decidir se é porque encaixo na</p><p>perfeição na ideia que têm de uma empregada de escritório, ou porque</p><p>as pessoas ouvem a expressão «empregado de escritório» e preenchem</p><p>sozinhas os espaços em branco de forma automática – uma senhora a</p><p>tirar fotocópias, um homem a escrever no teclado do computador. Não</p><p>estou a queixar-me. Fico feliz por não ter de detalhar as minúcias</p><p>fascinantes das contas a receber. Quando comecei a trabalhar aqui,</p><p>sempre que alguém perguntava, respondia que trabalhava numa empresa</p><p>de design gráfico, mas isso fazia com que partissem do princípio que eu</p><p>era do tipo criativo. Cansei-me de ver os seus olhos desfocarem-se</p><p>quando explicava que só fazia trabalho de escritório básico, que não</p><p>usava as canetas de ponta fina e os programas sofisticados.</p><p>Tenho agora quase trinta anos e trabalho aqui desde os vinte e um.</p><p>Bob, o dono, contratou-me não muito tempo depois de o escritório abrir.</p><p>Acho que teve pena de mim. Eu tinha uma licenciatura em Clássicas e</p><p>praticamente nenhuma experiência de trabalho, e apareci na entrevista</p><p>com um olho negro, dois dentes partidos e um braço fraturado. Talvez</p><p>ele tenha pressentido, na altura, que eu nunca teria aspirações a ser mais</p><p>do que uma empregada de escritório mal paga, que me daria por</p><p>satisfeita em ficar na empresa e lhe pouparia o trabalho de ter de recrutar</p><p>alguém para me substituir. Talvez tenha percebido também que eu nunca</p><p>precisaria de me ausentar em lua de mel ou licença de maternidade. Não</p><p>sei.</p><p>No escritório temos um sistema hierárquico de dois níveis: os</p><p>criativos são as estrelas do filme e os restantes, meros atores</p><p>secundários. Basta olhar para cada um para perceber a que categoria</p><p>pertence. Para ser justa, isso tem muito a ver com os ordenados. O</p><p>pessoal do escritório recebe uma miséria, por isso não podemos gastar</p><p>muito em cortes de cabelo elegantes e óculos da moda. Roupas, música,</p><p>gadgets – embora os designers estejam desesperados por serem vistos</p><p>como livres-pensadores com ideias únicas, todos aderem a um uniforme</p><p>rígido. Pessoalmente, não tenho qualquer interesse por design gráfico.</p><p>Trabalho na contabilidade. Na verdade, podia estar a emitir faturas para</p><p>qualquer coisa: armamento, Rohypnol, cocos.</p><p>De segunda a sexta-feira, entro às oito e meia da manhã. Tenho uma</p><p>hora de almoço. Costumava trazer sanduíches, mas a comida acabava</p><p>sempre por se estragar antes que eu a conseguisse consumir, por isso</p><p>agora compro qualquer coisa na rua. À sexta-feira, termino sempre a</p><p>hora de almoço com uma visita à Marks and Spencer, que é uma boa</p><p>forma de concluir a semana. Sento-me na sala dos funcionários com a</p><p>minha sanduíche, leio o jornal da primeira à última página e depois faço</p><p>as palavras-cruzadas. Compro o Daily Telegraph não porque goste do</p><p>periódico por aí além, mas porque tem as melhores palavras-cruzadas.</p><p>Não falo com ninguém – depois de comprar a sanduíche, ler o jornal e</p><p>acabar as palavras-cruzadas, a hora de almoço está praticamente no fim.</p><p>Volto para a minha secretária e trabalho até às cinco e meia da tarde.</p><p>Demoro meia hora de autocarro até casa.</p><p>Faço o jantar e como enquanto oiço a radionovela The Archers.</p><p>Geralmente, faço massa com molho pesto e salada – só sujo um tacho e</p><p>um prato. Tive uma infância repleta de contradições culinárias, e, ao</p><p>longo dos anos, tão depressa jantava vieiras apanhadas à mão como</p><p>refeições pré-cozinhadas. Depois de muita reflexão sobre os aspetos</p><p>políticos e sociológicos da cozinha, percebi que não tenho qualquer</p><p>interesse por comida. Dou preferência ao género de ração que seja</p><p>barata, rápida e simples de adquirir e preparar, fornecendo ao mesmo</p><p>tempo os nutrientes necessários para manter uma pessoa viva.</p><p>Depois de arrumar a cozinha leio um livro, ou vejo televisão se o</p><p>Telegraph tiver recomendado algum programa para esse dia. Por norma</p><p>(isto é, sempre) falo com a mamã às quartas-feiras à noite, durante cerca</p><p>de quinze minutos. Vou para a cama por volta das dez, leio meia hora e</p><p>depois apago a luz. Regra geral, não tenho dificuldade em adormecer.</p><p>Às sextas, não apanho o autocarro diretamente para casa depois do</p><p>trabalho. Vou ao supermercado Tesco Metro da esquina e compro uma</p><p>piza margherita, uma garrafa de Chianti e duas garrafas grandes de</p><p>vodca Glen’s. Quando chego a casa, como a piza e bebo o vinho. A</p><p>seguir, a vodca. À sexta-feira não preciso de muito, bastam alguns goles</p><p>generosos. Costumo acordar no sofá por volta das três da manhã e é a</p><p>essa hora que me arrasto até à cama, meia a dormir. Bebo o resto da</p><p>vodca durante o fim de semana, distribuída pelos dois dias, de modo a</p><p>nunca estar nem bêbada nem sóbria. A segunda-feira demora que</p><p>tempos a chegar.</p><p>O meu telefone não toca muitas vezes – dou sempre um salto quando</p><p>isso acontece</p><p>admiti –, mas pesquiso sempre minuciosamente todas as</p><p>atividades antes de as empreender, e fumar não me pareceu ser um</p><p>passatempo viável ou sensato. E é também desagradável do ponto de</p><p>vista financeiro – acrescentei.</p><p>– Sim. – Raymond assentiu com um aceno. – Uma pequena fortuna,</p><p>isso é verdade. – Fez uma pausa. – Para que lado vai, Eleanor? –</p><p>perguntou, por fim.</p><p>Pensei sobre qual seria a melhor resposta para tal questão. Ia para</p><p>casa, onde me esperava um encontro empolgante. Esta ocasião</p><p>muitíssimo invulgar – um encontro marcado com uma visita em minha</p><p>casa – significava que tinha de acabar depressa com esta interação</p><p>enfadonha e inesperada. Assim, devia escolher um caminho qualquer</p><p>que não fosse o de Raymond. Mas como? Estávamos quase a passar pela</p><p>clínica de podologia, o que me inspirou.</p><p>– Tenho uma consulta marcada ali – referi, apontando para o</p><p>podólogo em frente. Raymond olhou para mim. – Joanetes – improvisei.</p><p>Vi-o baixar os olhos para os meus sapatos.</p><p>– Lamento muito, Eleanor – afirmou. – A minha mãe é igual. Tem</p><p>muitos problemas com os pés.</p><p>Esperámos na passadeira e ele calou-se, finalmente. Nessa altura</p><p>reparei num homem de idade a cambalear do outro lado da estrada. Era</p><p>baixo e entroncado e chamou-me a atenção por causa da camisola</p><p>encarnada, que se destacava sob as roupas cinzentas e beges que eram</p><p>apanágio dos reformados. Quase em câmara lenta, o homem começou a</p><p>baloiçar e a trocar o passo de modo errático, aos tropeções, criando uma</p><p>espécie de pêndulo humano por causa dos sacos de compras cheios que</p><p>levava nas mãos.</p><p>– Bêbado em pleno dia – murmurei, mais para mim do que para</p><p>Raymond. Este abriu a boca para responder quando o velho finalmente</p><p>caiu para trás, com força, e ficou imóvel. As compras espalharam-se à</p><p>sua volta e reparei que tinha comprado chocolates com caramelo e um</p><p>pacote de salsichas, tamanho familiar.</p><p>– Merda – praguejou Raymond, pressionando o botão para mudar o</p><p>semáforo.</p><p>– Deixe-o estar – sugeri. – Está só bêbado.</p><p>Raymond fitou-me.</p><p>– É um velhote, Eleanor. Bateu com a cabeça no chão com bastante</p><p>força.</p><p>Senti-me mal. Suponho que até os alcoólicos merecem ajuda,</p><p>embora devessem embebedar-se em casa, como eu faço, para não darem</p><p>trabalho a ninguém. Por outro lado, nem todos são tão sensatos e</p><p>atenciosos como eu.</p><p>Por fim, o homenzinho verde piscou no semáforo e Raymond</p><p>atravessou a correr, depois de atirar o cigarro para a sarjeta. Também não</p><p>era preciso sujar a rua, pensei, caminhando com passo mais calmo atrás</p><p>dele. Quando cheguei ao outro lado, Raymond já estava ajoelhado ao</p><p>lado do velhote, à procura da pulsação no pescoço. Estava a falar alto e</p><p>devagar, disparates como «Olá, velho amigo, como vai isso?» e «Está a</p><p>ouvir?». O velho não respondeu. Inclinei-me para ele e funguei.</p><p>– Por acaso não está bêbado – declarei. – Se estivesse bêbado o</p><p>suficiente para cair e perder os sentidos, sentiríamos o cheiro.</p><p>Raymond começou a desapertar a roupa do homem.</p><p>– Chame uma ambulância, Eleanor – pediu, com toda a calma.</p><p>– Não possuo um telefone móvel – expliquei –, embora esteja aberta</p><p>a ser persuadida quanto à eficácia dos mesmos.</p><p>Raymond enfiou a mão no bolso do casaco e atirou-me o dele.</p><p>– Despache-se – pediu. – O velhote continua inanimado.</p><p>Comecei a marcar o número de emergência quando uma memória</p><p>me atingiu como um soco na cara. Apercebi-me de que não conseguia</p><p>fazê-lo outra vez; não podia ouvir uma voz a perguntar: «Que serviço</p><p>pretende contactar?», e depois o som das sirenes a aproximarem-se.</p><p>Toquei nas cicatrizes e devolvi o telemóvel a Raymond.</p><p>– Ligue você – pedi-lhe. – Eu faço companhia ao senhor.</p><p>Raymond praguejou entre dentes e levantou-se.</p><p>– Vá falando com ele e não o mova – ordenou. Despi o colete e</p><p>coloquei-o sobre o tronco do homem caído.</p><p>– Olá – comecei. – Chamo-me Eleanor Oliphant. – Raymond pedira-</p><p>me que fosse falando com ele, e foi o que fiz. – Que camisola tão gira! –</p><p>exclamei. – Não se vê muitas vezes essa cor em peças de lã. Será</p><p>carmesim? Ou vermelho, talvez? Gosto bastante. Nunca arriscaria uma</p><p>cor dessas em mim, claro. Mas, contra todas as probabilidades, acho que</p><p>até lhe fica bem. Cabelo branco e camisola encarnada… como o Pai</p><p>Natal. A camisola foi uma prenda? Parece ter sido uma prenda; é muito</p><p>macia e cara. É uma peça demasiado especial para ter sido comprada</p><p>por si. Mas talvez o senhor compre coisas boas para si… Sei que há</p><p>quem o faça. Há pessoas que não pensam duas vezes antes de</p><p>comprarem tudo do bom e do melhor para si próprias. Claro que,</p><p>olhando para o resto das suas roupas e para o conteúdo dos seus sacos</p><p>de compras, parece-me muito improvável que o senhor seja esse tipo de</p><p>pessoa.</p><p>Respirei fundo três vezes para me preparar e depois coloquei devagar</p><p>a mão sobre a dele. Deixei-a lá ficar, pousada ao de leve, o máximo que</p><p>aguentei.</p><p>– O senhor Gibbons está a chamar uma ambulância – continuei. –</p><p>Portanto, não se preocupe; não ficará muito tempo aqui deitado no meio</p><p>da rua. Não é preciso ficar ansioso: os cuidados médicos são</p><p>completamente gratuitos neste país, e, em termos de qualidade, são</p><p>considerados dos melhores do mundo. Tem muita sorte. Isto é, creio que</p><p>cair e bater com a cabeça no novo Estado do Sul do Sudão, por exemplo,</p><p>se calhar não seria boa ideia, mais a mais tendo em conta a atual</p><p>situação político-económica. Mas aqui, em Glasgow… Bom, teve muita</p><p>sorte, se é que se lhe pode chamar isso.</p><p>Raymond desligou e aproximou-se de nós.</p><p>– Como é que ele está, Eleanor? – perguntou. – Já recuperou os</p><p>sentidos?</p><p>– Não – respondi –, mas tenho estado a falar com ele, como me</p><p>pediu.</p><p>Raymond pegou na outra mão do homem.</p><p>– Pobre velhote – lamentou.</p><p>Acenei que sim com a cabeça. De forma surpreendente, senti uma</p><p>emoção que reconheci como ansiedade ou preocupação em relação</p><p>àquele idoso desconhecido. Endireitei-me e as minhas nádegas bateram</p><p>em algo grande e curvo. Quando me virei para trás, vi que era uma</p><p>enorme garrafa de plástico de refrigerante. Levantei-me e estiquei as</p><p>costas, antes de começar a recolher todas as compras espalhadas,</p><p>arrumando-as dentro dos sacos. Um deles estava rasgado, por isso abri a</p><p>mala e tirei o meu saco reutilizável preferido, o dos supermercados</p><p>Tesco, com os leões. Guardei todos os artigos e pus os sacos junto aos</p><p>pés do homem inanimado. Raymond sorriu-me.</p><p>Ouvimos as sirenes e Raymond devolveu-me o colete. A ambulância</p><p>parou ao nosso lado e dois homens saíram. Estavam a meio de uma</p><p>conversa e fiquei surpreendida ao ver como soavam proletários. Pensei</p><p>que se pareceriam mais com médicos.</p><p>– Muito bem – começou o mais velho dos dois –, o que é que temos</p><p>aqui? O velhote deu um tombo, foi?</p><p>Raymond contou-lhe o que sucedera e eu observei o segundo</p><p>homem; estava inclinado sobre o idoso caído, a medir-lhe a pulsação, a</p><p>apontar uma pequena lanterna para os seus olhos e a abaná-lo com</p><p>suavidade para tentar obter reação. Depois virou-se para o colega.</p><p>– Temos de nos despachar – disse.</p><p>Foram buscar uma maca e, de forma rápida mas surpreendentemente</p><p>gentil, levantaram o homem do chão e prenderam-no. O mais novo</p><p>enrolou-o numa manta.</p><p>– É da mesma cor da camisola dele – comentei, mas ambos me</p><p>ignoraram.</p><p>– Alguém vem com ele? – perguntou o homem mais velho. – Só há</p><p>lugar para mais um na ambulância.</p><p>Raymond e eu entreolhámo-nos. Dei uma olhadela ao relógio. A</p><p>minha visitante estaria chez Oliphant dentro de meia hora.</p><p>– Eu vou, Eleanor – ofereceu-se Raymond. – Não quero que perca a</p><p>sua consulta no podólogo.</p><p>Assenti com um aceno e Raymond entrou para a parte de trás da</p><p>ambulância, com o velhote e o paramédico, que estava ocupado a ligar</p><p>tubos e monitores. Peguei nos sacos de compras e passei-os a Raymond.</p><p>– Oiça – disse o paramédico, soando um tanto ao quanto aborrecido</p><p>–, isto não é uma carrinha de entregas de mercearias.</p><p>Raymond estava ao telefone e ouvi-o falar, aparentemente com a</p><p>mãe, avisando que ia chegar mais tarde. Depois desligou.</p><p>– Eleanor – pediu-me –, porque é que não me liga mais daqui</p><p>a</p><p>pouco, e talvez me possa trazer as compras mais tarde?</p><p>Pensei no assunto, assenti e esperei enquanto ele remexia nos bolsos</p><p>até encontrar uma esferográfica. Pegou-me na mão. Soltei uma</p><p>exclamação e recuei, chocada, escondendo as mãos atrás das costas.</p><p>– Tenho de lhe dar o meu número – explicou Raymond,</p><p>pacientemente.</p><p>Tirei da mala o meu bloco de notas, que ele devolveu com uma</p><p>página coberta de gatafunhos azuis: um nome quase ilegível e uma série</p><p>de algarismos escrevinhados por baixo numa caligrafia desajeitada e</p><p>infantil.</p><p>– Ligue daqui a uma hora, mais ou menos – indicou. – Deve dar</p><p>tempo para tratar dos joanetes, não?</p><p>6</p><p>Mal tinha tido tempo de chegar a casa e despir o casaco quando a</p><p>campainha da porta tocou, dez minutos mais cedo do que eu esperava.</p><p>Se calhar estavam a tentar apanhar-me desprevenida. Quando abri,</p><p>lentamente, sem tirar a corrente, não vi a pessoa que esperava. Esta</p><p>mulher, quem quer que fosse, não sorria.</p><p>– Eleanor Oliphant? June Mullen, assistente social – apresentou-se,</p><p>com um passo em frente, mas os seus avanços foram bloqueados pela</p><p>porta.</p><p>– Estava à espera da Heather – respondi, espreitando para trás dela.</p><p>– Infelizmente, a Heather está doente; não fazemos ideia de quando</p><p>voltará ao trabalho. Fiquei com os casos dela.</p><p>Pedi para ver alguma identificação oficial – afinal, todos os cuidados</p><p>são poucos. Ela suspirou e começou a remexer na mala. Era alta, bem</p><p>vestida, com um fato preto de calças e casaco e uma camisa branca.</p><p>Quando baixou a cabeça, reparei na risca clara do seu couro cabeludo,</p><p>onde o cabelo escuro e brilhante estava separado. Por fim, levantou a</p><p>cabeça e mostrou-me um cartão com um grande logótipo e uma pequena</p><p>fotografia. Analisei-o com todo o cuidado, olhando várias vezes da</p><p>fotografia para a cara dela, e de novo para a fotografia. O retrato não a</p><p>favorecia muito, mas a culpa não era dela. Eu também não sou</p><p>fotogénica. Na vida real, devia ter mais ou menos a minha idade, com</p><p>pele lisa, sem rugas, e batom encarnado.</p><p>– Não parece uma assistente social – comentei. Ela olhou para mim</p><p>e não respondeu. Outra vez? Parece que encontro pessoas com</p><p>capacidades sociais atrofiadas, em todas as áreas, com uma frequência</p><p>alarmante. Porque será que os misantropos gostam tanto de empregos</p><p>onde têm de lidar com pessoas? É um enigma. Fazendo uma nota mental</p><p>para não me esquecer de voltar a refletir sobre o assunto mais tarde, abri</p><p>a corrente e convidei-a a entrar. Conduzi-a até à sala, ouvindo os saltos</p><p>dos seus sapatos a matraquear no chão. Ela pediu se podia mostrar-lhe a</p><p>casa; eu estava à espera disso, claro. Heather também costumava fazê-lo;</p><p>presumo que faça parte do trabalho, verificar se não estou a armazenar a</p><p>minha própria urina em garrafões ou a apanhar pássaros para fazer</p><p>almofadas. Ela elogiou as divisões sem grande entusiasmo enquanto nos</p><p>dirigíamos à cozinha.</p><p>Tentei ver a minha casa aos olhos de uma pessoa de fora. Tenho</p><p>consciência de que sou muito afortunada por poder viver aqui, já que</p><p>nesta área e nos dias que correm quase não existem residências sociais.</p><p>De outra forma, nunca poderia viver neste código postal, não com o</p><p>ordenado miserável que Bob me paga. Os Serviços Sociais trataram da</p><p>minha mudança para aqui depois de deixar o último lar de acolhimento,</p><p>no verão antes de entrar para a universidade. Tinha acabado de fazer</p><p>dezassete anos. Nesse tempo, uma jovem vulnerável que crescera em</p><p>lares de acolhimento tinha direito a um apartamento municipal perto do</p><p>estabelecimento de ensino sem quaisquer dificuldades. Imaginem!</p><p>Lembro-me de que demorei algum tempo a dedicar-me à decoração</p><p>e que acabei de pintar a casa no verão depois de me licenciar. Comprei a</p><p>tinta e os pincéis após levantar um cheque emitido pela secretaria da</p><p>universidade, juntamente com o meu diploma; ganhara um pequeno</p><p>prémio, com o nome de um classicista qualquer há muito morto, pela</p><p>melhor nota final num trabalho sobre as Geórgicas de Virgílio. Formei-</p><p>me in absentia, claro; pareceu-me inútil entrar no cortejo de alunos que</p><p>subiam ao palco para receber o diploma, quando não tinha lá ninguém</p><p>para me aplaudir. O apartamento não é mexido desde então.</p><p>Suponho que, se quiser ser objetiva, a casa já está a precisar de um</p><p>jeitinho. A mamã sempre disse que a obsessão com o interior das casas</p><p>era uma coisa enfadonha e burguesa e, pior ainda, que qualquer tipo de</p><p>atividade «faça você mesmo» era coisa da ralé. É assustador pensar nas</p><p>ideias que posso ter absorvido da mamã.</p><p>As mobílias tinham sido fornecidas por uma instituição de</p><p>solidariedade que ajuda jovens vulneráveis e ex-criminosos quando se</p><p>mudam para uma casa nova; coisas desirmanadas, pelas quais fiquei</p><p>muito grata na altura, e continuo a estar. Continua tudo em perfeitas</p><p>condições de funcionamento, pelo que nunca vi necessidade de</p><p>substituir fosse o que fosse. Não faço limpezas com muita frequência,</p><p>admito, o que pode ter contribuído para aquilo que, compreendo agora,</p><p>pode ser encarado como um certo sinal de negligência. Simplesmente,</p><p>não faz muito sentido; eu sou a única pessoa que aqui come, toma</p><p>banho, dorme e acorda.</p><p>Esta June Mullen era a primeira visita que tinha desde novembro do</p><p>ano passado. São mais ou menos de seis em seis meses, as inspeções das</p><p>assistentes sociais. Também é a minha primeira visita deste ano. O</p><p>senhor que vem ler o contador ainda não apareceu, embora deva referir</p><p>que prefiro quando deixam um cartão e posso telefonar depois a</p><p>comunicar a leitura. Adoro call centers; é sempre tão interessante ouvir</p><p>os diferentes sotaques e tentar descobrir um pouco sobre a pessoa com</p><p>quem estamos a falar. A melhor parte é quando perguntam, no fim:</p><p>«Posso ajudar em mais alguma coisa, Eleanor?», e eu posso responder:</p><p>«Não, não, obrigada, resolveu todos os meus problemas.» E também é</p><p>sempre agradável ouvir o meu nome próprio na voz de um ser humano.</p><p>Além das assistentes sociais e das leituras do contador, às vezes</p><p>aparece um representante de uma igreja qualquer, para me perguntar se</p><p>já acolhi Jesus na minha vida. Descobri que não costumam gostar muito</p><p>de debater o conceito do proselitismo, o que é desapontante. O ano</p><p>passado esteve cá um homem a entregar um catálogo de uma loja online</p><p>de artigos para o lar, que se revelou uma leitura muito interessante.</p><p>Ainda estou arrependida de não ter comprado o caça-aranhas, que de</p><p>facto era um aparelho engenhoso.</p><p>June Mullen recusou a chávena de chá que lhe ofereci quando</p><p>voltámos à sala e, depois de se sentar no sofá, tirou o meu processo da</p><p>mala. Era na verdade uma pasta bastante grossa, presa de forma precária</p><p>com um elástico. Um desconhecido escrevera «OLIPHANT, ELEANOR» a</p><p>marcador no canto superior direito, e a data «julho de 1987», o ano do</p><p>meu nascimento. A pasta volumosa, manchada e com os cantos gastos,</p><p>parecia um artefacto histórico.</p><p>– A caligrafia da Heather é terrível – murmurou June, enquanto</p><p>percorria a primeira página do monte de papéis com a unha pintada.</p><p>Falou baixinho, mais para si própria do que para mim. – Visitas</p><p>semestrais… Continuidade de integração na comunidade…</p><p>Identificação precoce de quaisquer necessidades de apoio adicionais…</p><p>Continuou a ler e depois vi a sua expressão mudar e ela ergueu os</p><p>olhos para mim com um misto de horror, alarme e pena. Devia ter</p><p>chegado à secção sobre a mamã. Devolvi o olhar, impassível. Ela</p><p>respirou fundo, baixou de novo os olhos para os papéis e soltou</p><p>lentamente a respiração antes de me fitar outra vez.</p><p>– Não fazia ideia – disse num tom que combinava com a expressão</p><p>desolada. – Deve… Deve sentir muito a falta dela.</p><p>– Da mamã? – perguntei. – Dificilmente.</p><p>– Não, queria dizer… – Calou-se, com ar atrapalhado, triste,</p><p>embaraçado. Ah, eu conhecia bem aquelas expressões. Eram a</p><p>santíssima trindade das expressões Oliphant. Encolhi os ombros, sem</p><p>fazer ideia aonde ela queria chegar.</p><p>O silêncio abateu-se sobre nós, a vibrar com infelicidade. Depois do</p><p>que me pareceram ser dias, June Mullen fechou a pasta que tinha no</p><p>colo e sorriu-me de forma exagerada.</p><p>– Então, Eleanor, como tem estado, em geral, desde a última visita</p><p>da Heather?</p><p>– Bem, não me apercebi de quaisquer necessidades de apoio</p><p>adicionais e estou totalmente integrada na comunidade, June – respondi.</p><p>Ela sorriu, distraída.</p><p>– O trabalho está a correr bem? Vejo que… – consultou de novo a</p><p>pasta – … trabalha num escritório?</p><p>– O trabalho está a correr bem – respondi. – Está tudo bem.</p><p>– E em casa? – perguntou, olhando em volta, os olhos a demorarem-</p><p>se um pouco no meu grande pufe verde, em forma de rã gigante, que</p><p>fazia parte das mobílias doadas quando me mudei para cá. Com os anos,</p><p>ganhei uma certa afeição pelos seus olhos salientes e pela grande língua</p><p>cor-de-rosa. Uma noite (uma noite de vodca), desenhei uma grande</p><p>mosca comum, Musca domestica, na língua da rã, com um marcador</p><p>surripiado. Não tenho qualquer talento artístico, mas, na minha modesta</p><p>opinião, era uma representação razoável do inseto em causa. Achei que</p><p>este gesto me ajudara a assumir a propriedade do artigo doado, criando</p><p>algo novo a partir de uma peça em segunda mão. Além disso, a rã</p><p>parecia ter fome. June Mullen não conseguia tirar os olhos dela.</p><p>– Está tudo bem por aqui, June – reafirmei. – Contas pagas, relações</p><p>cordiais com os vizinhos. Estou perfeitamente confortável.</p><p>Ela folheou mais uma vez a pasta e depois respirou fundo. Eu sabia o</p><p>que ela ia dizer: reconheci perfeitamente a mudança de tom – medo,</p><p>hesitação – que precedia o assunto.</p><p>– Continua a não querer saber mais nada sobre o incidente, ou sobre</p><p>a sua mãe? – Desta vez não sorriu.</p><p>– Exatamente – confirmei. – Não é preciso… Falo com ela uma vez</p><p>por semana, às quartas-feiras à noite, sem falta.</p><p>– Sim? Mesmo depois deste tempo todo, isso continua a acontecer?</p><p>Interessante… E tem vontade de… de manter esse contacto?</p><p>– Porque não? – respondi, incrédula. Onde é que os Serviços Sociais</p><p>vão buscar estas pessoas?</p><p>Ela deixou que o silêncio se prolongasse de propósito e, embora eu</p><p>reconhecesse a técnica, não consegui deixar de o quebrar, passado algum</p><p>tempo.</p><p>– Penso que a mamã gostaria que eu tentasse saber mais sobre… o</p><p>incidente… mas não tenho qualquer intenção de o fazer.</p><p>– Pois – respondeu June, com um aceno. – Bom, cabe-lhe</p><p>unicamente a si a decisão de querer saber mais ou não sobre o que</p><p>aconteceu. Os tribunais foram muito claros, na altura, de que esse tipo</p><p>de necessidade ficava ao seu critério, não foi?</p><p>– Correto – respondi. – Foi exatamente o que me informaram.</p><p>Ela fitou-me de forma atenta, como tantas pessoas antes, os que</p><p>perscrutavam o meu rosto em busca de algum sinal da mamã,</p><p>secretamente excitados por estarem tão perto de uma familiar direta da</p><p>mulher a quem os jornais ainda se referiam de vez em quando, mesmo</p><p>tantos anos passados, como o «belo rosto do mal». Vi-a passar os olhos</p><p>pelas minhas cicatrizes. Tinha a boca entreaberta e tornou-se evidente</p><p>que o fato e o penteado eram um disfarce inadequado para a labrega</p><p>espantada que June de facto era.</p><p>– Se calhar consigo encontrar uma fotografia minha para lhe dar, se</p><p>quiser – propus.</p><p>Ela piscou os olhos duas vezes e corou. Depois atarefou-se com a</p><p>pasta volumosa, tentando arrumar os papéis soltos numa pilha direita.</p><p>Vi uma folha esvoaçar e aterrar debaixo da mesinha de café. Ela não a</p><p>vira escapar e ponderei se havia ou não de lhe dizer alguma coisa.</p><p>Afinal, se aquela documentação era sobre mim, tecnicamente, era</p><p>minha, certo? Devolvê-la-ia na próxima visita, claro – não sou nenhuma</p><p>ladra. Imaginei a voz da mamã, a sussurrar, a confirmar que eu tinha</p><p>toda a razão, que as assistentes sociais eram umas intrometidas,</p><p>bisbilhoteiras, armadas em boazinhas. June Mullen prendeu a pasta com</p><p>o elástico e o momento de falar na folha de papel tresmalhada passou.</p><p>– Ah… Tem alguma coisa que queira discutir comigo hoje? –</p><p>perguntou.</p><p>– Nada, obrigada – respondi, com o meu sorriso mais radiante. June</p><p>pareceu desconcertada, talvez até um pouco assustada. Fiquei</p><p>desiludida. Afinal, tentara ser simpática e amável.</p><p>– Bom, nesse caso, parece que é tudo por hoje, Eleanor. Vou deixá-la</p><p>em paz. – Continuou a falar num tom ligeiro e descontraído enquanto</p><p>arrumava as coisas na pasta. – Tem planos para o fim de semana?</p><p>– Vou visitar uma pessoa ao hospital – respondi.</p><p>– Oh, que simpática. As visitas animam sempre os doentes, não é?</p><p>– É? – perguntei. – Não faço ideia. É a primeira vez que o faço.</p><p>– Mas passou muito tempo no hospital – comentou June.</p><p>Fixei-a. O desequilíbrio na extensão do nosso mútuo conhecimento</p><p>era sem dúvida injusto. Na minha opinião, as assistentes sociais deviam</p><p>apresentar aos novos utentes uma folha com factos sobre si próprias para</p><p>tentar remediar este problema. Afinal de contas, a June tinha acesso</p><p>ilimitado àquela grande pasta castanha, o livro de Eleanor: duas décadas</p><p>de informação sobre as minúcias e intimidades da minha vida. Em</p><p>contraponto, tudo o que eu sabia acerca de June eram o seu nome e</p><p>função.</p><p>– Se sabe isso, então também deve saber que as circunstâncias</p><p>obrigavam a que só a polícia e os meus representantes legais me</p><p>pudessem visitar – respondi.</p><p>June olhou para mim, boquiaberta. Fez-me lembrar uma daquelas</p><p>cabeças de palhaço que há nas feiras, em que temos de acertar com uma</p><p>bola na boca para ganhar um prémio. Abri-lhe a porta, vendo-a olhar de</p><p>soslaio para a rã gigante.</p><p>– Vemo-nos daqui a seis meses, Eleanor – despediu-se, com alguma</p><p>relutância. – Tudo a correr bem.</p><p>Fechei a porta atrás dela com excessiva suavidade.</p><p>Estranhamente, pensei, June não fizera qualquer comentário sobre</p><p>Polly. Era ridículo, mas quase senti ofensa alheia. Tinha estado ali no</p><p>canto, ao longo de toda a conversa, e era sem dúvida aquilo que mais</p><p>chamava a atenção na sala. A minha linda Polly, prosaicamente descrita</p><p>como «planta papagaio» e por vezes referida como «planta catatua do</p><p>Congo», mas que eu sempre tratei, com toda a sua glória latina, por</p><p>Impatiens niamniamensis. Chamo-lhe niamniamensis em voz alta</p><p>muitas vezes. É como um beijo: os «m» forçam os lábios a unirem-se, as</p><p>consoantes enroladas, a língua a espreitar nos «n» e nos «s». Os</p><p>antepassados de Polly são originários de África. Bom, tal como todos</p><p>nós. É a única constante da minha infância, a única coisa viva que</p><p>sobreviveu. Foi um presente de aniversário, mas não me lembro de quem</p><p>ma ofereceu, o que é estranho. Afinal, não é que tivesse recebido assim</p><p>tantos presentes.</p><p>Trouxe-a comigo do meu quarto de criança, sobreviveu aos lares de</p><p>acolhimento e às instituições, e, tal como eu, ainda aqui está. Cuidei</p><p>dela, tratei dela, apanhei-a e mudei-a de vaso quando caiu ou foi</p><p>arremessada. Polly gosta de luz e de água. Tirando isso, não requer</p><p>muitos cuidados nem atenção, e é quase autossuficiente. Às vezes falo</p><p>com ela; não tenho vergonha de o admitir. Quando o silêncio e a solidão</p><p>pesam sobre mim, me esmagam, me trespassam como gelo, preciso de</p><p>falar em voz alta, nem que seja como prova de vida.</p><p>Uma pergunta filosófica: se uma árvore cai na floresta e não há</p><p>ninguém por perto para ouvir, faz ou não barulho? E se uma mulher que</p><p>está completamente sozinha fala de vez em quando com uma planta, é</p><p>ou não louca? Estou confiante de que é normalíssimo, uma pessoa falar</p><p>sozinha de vez em quando. Não estou propriamente à espera de resposta.</p><p>Tenho perfeita consciência de que Polly é uma planta.</p><p>Reguei-a e tratei de outras tarefas domésticas, antecipando o</p><p>momento em que poderia abrir o meu computador e ver se um certo</p><p>cantor bonito tinha publicado alguma informação nova no Facebook, no</p><p>Twitter ou no Instagram, janelas para um mundo de maravilhas.</p><p>Enquanto punha a roupa na máquina, tocou o telefone. Uma visita e um</p><p>telefonema! Era mesmo um dia em cheio.</p><p>– Liguei para o Bob, expliquei-lhe a situação e ele procurou o seu</p><p>número no arquivo de pessoal – explicou Raymond ao telefone.</p><p>Com franqueza! Estaria toda eu exposta em pastas volumosas, à</p><p>disposição de quem quisesse abri-las e fazer das informações sobre a</p><p>minha</p><p>pessoa o que quisesse?</p><p>– Que grande abuso de privacidade, já para não mencionar que é</p><p>uma violação da Lei de Proteção de Dados – respondi. – Vou falar com</p><p>o Bob sobre isso para a semana.</p><p>Silêncio do outro lado da linha.</p><p>– Então? – insisti.</p><p>– Oh, sim. Certo, desculpe. É só porque… como prometeu que ligava</p><p>e não ligou… Bom, estou no hospital. Estava a pensar se não queria</p><p>trazer as coisas do senhor que caiu? Estamos na enfermaria oeste. Oh,</p><p>ele chama-se Sami-Tom.</p><p>– O quê? – quase gritei. – Não, isso não pode estar certo, Raymond.</p><p>Ele é um homenzinho gordo e velho de Glasgow. Não há a mínima</p><p>possibilidade de ter sido batizado com o nome Sami-Tom. – Eu</p><p>começava a ter sérias dúvidas quanto às capacidades mentais de</p><p>Raymond.</p><p>– Não, não, Eleanor… É Sammy, abreviatura de Samuel. E Tom</p><p>escreve-se T-H-O-M.</p><p>– Ah! – exclamei. Mais uma longa pausa.</p><p>– Então… Como eu disse, o Sammy está na enfermaria oeste. Se</p><p>quiser passar por cá, as visitas são a partir das sete.</p><p>– Prometi que iria, e sou uma mulher de palavra, Raymond. Mas já é</p><p>um pouco tarde; amanhã dava-me mais jeito, se puder ser?</p><p>– Claro – respondeu Raymond. Outra pausa. – Quer saber como está</p><p>o senhor?</p><p>– Sim, com certeza. – Raymond era um conversador terrível, e estava</p><p>a tornar a troca de palavras muito difícil.</p><p>– Não está muito bem. A situação é estável, mas grave. Só para estar</p><p>preparada. Ele ainda não recuperou a consciência.</p><p>– Nesse caso, imagino que o refrigerante e as salsichas não lhe</p><p>devem fazer muita falta amanhã, pois não? – perguntei. Ouvi Raymond</p><p>suster a respiração.</p><p>– Oiça, Eleanor, é consigo, se o quer visitar ou não. Ele não tem</p><p>pressa para recuperar os seus pertences e suponho que se calhar é</p><p>melhor deitar fora tudo o que se possa estragar. Tal como lembrou, o</p><p>pobre coitado não vai fritar salsichas tão cedo.</p><p>– Também me parece. Na verdade, imagino que o excesso de fritos</p><p>terá sido um dos grandes responsáveis pela situação em que ele se</p><p>encontra de momento – respondi.</p><p>– Tenho de ir, Eleanor – resmungou Raymond, desligando o telefone</p><p>de forma bastante abrupta. Que mal-educado!</p><p>Vi-me perante um dilema; parecia não fazer grande sentido ir ao</p><p>hospital para ver um desconhecido comatoso e deixar uma garrafa de</p><p>refrigerante aos pés da sua cama. Por outro lado, seria interessante ter a</p><p>experiência de visitar um hospital, e havia sempre uma remota</p><p>possibilidade de o homem acordar enquanto eu lá estivesse. Parecera-me</p><p>que apreciara o meu monólogo enquanto esperávamos pela ambulância;</p><p>bom, na medida do possível, tendo em conta que estava inconsciente.</p><p>Enquanto refletia, peguei na página que caíra da pasta da assistente</p><p>social. Estava ligeiramente amarelecida em volta, e tinha um cheiro</p><p>institucional: metálico, como o dos armários de arquivo, e sujo, tocada</p><p>pela pele mal lavada de múltiplas mãos anónimas. Já reparei que as</p><p>notas de banco têm um odor semelhante.</p><p>DEPARTAMENTO DOS SERVIÇOS SOCIAIS</p><p>FICHA DE REUNIÃO</p><p>15 de março de 1999, 10h00</p><p>Caso em discussão: ELEANOR OLIPHANT</p><p>(12/07/1987)</p><p>Presentes: Robert Brocklehurst (vice-diretor</p><p>para a Infância e Família, Departamento de</p><p>Serviços Sociais); Rebecca Scatcherd (assistente</p><p>social, Departamento de Serviços Sociais);</p><p>senhor e senhora Reed (família de acolhimento)</p><p>A reunião teve lugar na residência do senhor e</p><p>da senhora Reed, cujos filhos, incluindo Eleanor</p><p>Oliphant, estavam na escola. A reunião foi</p><p>requisitada pelo senhor e pela senhora Reed, à</p><p>parte das sessões regulares programadas, para</p><p>discutir as suas preocupações crescentes com</p><p>Eleanor.</p><p>A senhora Reed informou que o comportamento de</p><p>Eleanor se deteriorara desde a última reunião,</p><p>cerca de quatro meses antes. O senhor</p><p>Brocklehurst pediu-lhe para dar alguns exemplos</p><p>e o senhor e a senhora Reed citaram os</p><p>seguintes:</p><p>• A relação de Eleanor com as outras crianças</p><p>degradou-se quase por completo, em particular</p><p>com John (14), o mais velho;</p><p>• Eleanor é insolente e mal-educada para com a</p><p>senhora Reed. Quando a senhora Reed tenta</p><p>discipliná-la, por exemplo mandando-a para o</p><p>quarto vazio no primeiro andar para refletir</p><p>sobre o seu comportamento, ela fica histérica e,</p><p>numa ocasião, foi mesmo fisicamente violenta;</p><p>• Eleanor fingiu desmaiar mais do que uma vez,</p><p>numa tentativa de escapar ao castigo ou como</p><p>reação ao castigo;</p><p>• Eleanor tem pavor do escuro e acorda a</p><p>família inteira com os seus gritos histéricos.</p><p>Foi-lhe dada uma luz de presença e ela reage com</p><p>pranto descontrolado e tremores a qualquer</p><p>sugestão de que não precisa dela por já ser</p><p>demasiado crescida;</p><p>• Eleanor recusa-se amiúde a comer o que lhe é</p><p>apresentado; as horas das refeições tornaram-se</p><p>um momento de conflito;</p><p>• Eleanor recusa-se terminantemente a ajudar</p><p>com simples tarefas domésticas, como acender a</p><p>lareira ou limpar as cinzas.</p><p>O senhor e a senhora Reed informaram estar</p><p>extremamente preocupados com os efeitos que o</p><p>comportamento de Eleanor podia ter nas outras</p><p>três crianças (John, de 14 anos, Eliza, de 9, e</p><p>Georgie, de 7) e, à luz destas preocupações e de</p><p>outras manifestadas em reuniões prévias, desejam</p><p>discutir a melhor maneira de prosseguir em</p><p>relação a Eleanor.</p><p>O senhor e a senhora Reed pediram de novo mais</p><p>informações sobre o passado de Eleanor e o</p><p>senhor Brocklehurst explicou que não seria</p><p>possível fornecê-las, ou melhor, que não era</p><p>permitido.</p><p>A menina Scatcherd solicitara um boletim de</p><p>notas de Eleanor à diretora de turma desta,</p><p>antes da reunião, e verificou-se que Eleanor está</p><p>a ter um bom desempenho, alcançando excelentes</p><p>notas em todas as disciplinas. A diretora de</p><p>turma comenta que Eleanor é uma criança</p><p>excecionalmente inteligente e articulada, com um</p><p>vocabulário impressionante. Os outros</p><p>professores informam que ela é sossegada e bem</p><p>comportada nas aulas, mas que não participa nas</p><p>discussões, embora seja uma ouvinte atenta.</p><p>Vários funcionários repararam que Eleanor é</p><p>muito distante e se isola nos intervalos, e não</p><p>parece conviver com os colegas.</p><p>Depois de uma demorada discussão, e perante as</p><p>preocupações levantadas e reforçadas pelo senhor</p><p>e pela senhora Reed sobre o impacto do</p><p>comportamento de Eleanor nas outras crianças,</p><p>decidiu-se que o mais adequado seria retirar</p><p>Eleanor desta família.</p><p>O senhor e a senhora Reed ficaram satisfeitos</p><p>com este desfecho e o senhor Brocklehurst</p><p>informou-os de que o departamento os contactaria</p><p>para discutir os passos seguintes.</p><p>NOTA: No dia 12 de novembro de 1999, teve</p><p>lugar uma Revisão de Ordem de Supervisão</p><p>Obrigatória do Painel para a Infância, em</p><p>relação a Eleanor Oliphant, na qual o senhor</p><p>Brocklehurst e a menina Scatcherd estiveram</p><p>presentes (atas em anexo).</p><p>O Painel concluiu que, devido ao comportamento</p><p>difícil de Eleanor nesta família de acolhimento</p><p>e nas anteriores, a sua colocação num ambiente</p><p>familiar não é o mais adequado no momento.</p><p>Decidiu-se assim que Eleanor seria colocada num</p><p>lar institucional e que esta decisão seria</p><p>revista dentro de um ano.</p><p>(Ação: Scatcherd investigará a disponibilidade</p><p>de vagas em instituições locais e informará o</p><p>senhor e a senhora Reed da data prevista para a</p><p>mudança.)</p><p>R. Scatcherd, 12/11/99</p><p>Mentirosos. Mentirosos, mentirosos, mentirosos.</p><p>7</p><p>O autocarro não estava muito cheio e consegui um lugar para me</p><p>sentar, com as compras do velhote em dois sacos reutilizáveis no banco</p><p>ao meu lado. Deitara fora as salsichas e o queijo, mas fiquei com o leite</p><p>para mim, depois de decidir que não era roubar porque ele não o poderia</p><p>consumir, de qualquer maneira. Custou-me um pouco deitar fora os</p><p>outros artigos perecíveis. Compreendo que há quem pense que o</p><p>desperdício é errado: após cuidadosa reflexão, de uma maneira geral,</p><p>concordo. No entanto, fui criada para pensar de forma muito diferente; a</p><p>mamã sempre afirmou que só camponeses e operariozinhos sujos se</p><p>preocupavam com essas ninharias.</p><p>A mamã achava que, em nossa casa, éramos imperatrizes, sultanas e</p><p>marajás, e que tínhamos o dever de levar uma vida de prazer indolente e</p><p>de autossatisfação. Segundo</p><p>ela, cada refeição devia ser um festim</p><p>epicurista para os sentidos e era preferível passar fome do que</p><p>conspurcar o palato com outra coisa que não os pratos mais requintados.</p><p>Contou-me como comera tofu frito com malaguetas nos mercados</p><p>noturnos de Kowloon, e que o melhor sushi fora do Japão se encontrava</p><p>em São Paulo. A refeição mais deliciosa da sua vida fora polvo grelhado</p><p>no carvão, que degustara ao pôr do sol de um dia de verão, numa taberna</p><p>modesta junto ao mar, em Naxos. Vira um pescador apanhar o polvo</p><p>nessa manhã e depois passara a tarde a beberricar ouzo enquanto, na</p><p>cozinha, batiam com o polvo repetidamente nas pedras do cais para</p><p>suavizar a sua carne pálida. Tenho de lhe perguntar como é a comida no</p><p>sítio onde está agora. Desconfio que não deve haver muito chá Lapsang</p><p>souchong nem biscoitos langues de chat.</p><p>Lembro-me de ser convidada para casa de uma colega, Danielle</p><p>Mearns, depois das aulas. Só eu. A ocasião era o «chá», o que, por si só,</p><p>se tornou um momento confuso. Como seria de esperar, eu pensava que</p><p>íamos tomar chá, mas a mãe dela preparara-nos uma espécie de jantar</p><p>antecipado na cozinha. Ainda o consigo ver, todo em laranja e bege: três</p><p>barrinhas de peixe luminosas, uma poça de feijões guisados e um</p><p>pequeno monte de batatas fritas. Eu nunca tinha visto tais artigos, muito</p><p>menos os provara, e tive de perguntar o que eram. No dia seguinte,</p><p>Danielle contou a toda a gente da turma, e todos se riram e me</p><p>chamaram Esquistoide Beanz Mean, abreviado para Beanzy, alcunha que</p><p>ainda durou uns tempos. (Não é importante; a escola foi uma</p><p>experiência de curta duração para mim. Houve um incidente com uma</p><p>professora demasiado curiosa, que sugeriu uma visita à enfermaria</p><p>escolar, após o qual a mamã decidiu que a professora em questão era</p><p>«uma cretina quase analfabeta, monolingue, cuja única habilitação digna</p><p>de nota era um certificado de primeiros-socorros». A partir daí, passei a</p><p>ter aulas em casa.)</p><p>Para sobremesa, a mãe de Danielle deu-nos um iogurte Munch</p><p>Bunch e eu enfiei o recipiente vazio na minha mochila para o poder</p><p>estudar mais tarde. Ao que parecia, fazia publicidade a um programa</p><p>televisivo para crianças sobre peças de fruta animadas. E eu é que era</p><p>esquisita! Para os outros miúdos, era chocante que eu não conseguisse</p><p>falar sobre os programas que viam. Não tínhamos televisão em casa; a</p><p>mamã chamava-lhe o «carcinogéneo catódico», um cancro para o</p><p>intelecto, e por isso líamos, ouvíamos música e às vezes jogávamos</p><p>gamão ou mah-jong se ela estivesse bem-disposta.</p><p>Estupefacta perante o meu desconhecimento de comida pronta</p><p>congelada, a mãe de Danielle perguntou-me o que costumava jantar às</p><p>quartas-feiras.</p><p>– Não é sempre a mesma coisa – respondi.</p><p>– Mas que tipo de coisas costumam comer, em geral? – insistiu ela,</p><p>verdadeiramente espantada.</p><p>Mencionei algumas delas: espargos velouté com ovo de pata</p><p>escalfado e óleo de avelã. Boullabaisse com rouille caseiro. Poussin com</p><p>cobertura de mel e fondants de aipo vermelho. Trufas frescas quando era</p><p>época delas, laminadas sobre cogumelos e linguine com manteiga. Ela</p><p>olhou para mim, pasmada.</p><p>– Parece tudo muito… sofisticado – comentou.</p><p>– Oh, não, às vezes é só uma coisa simples – contrapus –, como</p><p>torradas de pão caseiro com queijo manchego e marmelada.</p><p>– Certo – acrescentou ela, trocando um olhar com Danielle, que</p><p>estava a olhar para mim, também de boca aberta, deixando entrever os</p><p>feijões meio mastigados. Nenhuma delas proferiu qualquer palavra daí</p><p>em diante; a senhora Mearns pôs na mesa um frasco com um líquido</p><p>vermelho e espesso, que Danielle sacudiu violentamente e espalhou</p><p>sobre a comida laranja e bege.</p><p>Claro que depois de entrar no sistema de acolhimento me</p><p>familiarizei rapidamente com uma nova família culinária; as refeições</p><p>pré-cozinhadas Aunt Bessie, Captain Birdseye e Uncle Ben eram</p><p>presença regular, e hoje em dia consigo distinguir o molho castanho da</p><p>Daddies só pelo cheiro, como um sommelier. Apenas mais uma das</p><p>inúmeras diferenças entre a minha antiga e a minha nova vida. Antes e</p><p>depois do incêndio. Um dia estava a tomar um pequeno-almoço de</p><p>melancia, queijo feta e bagas de romã, e no dia seguinte estava a comer</p><p>pão de forma torrado com margarina. Pelo menos, foi essa a história que</p><p>a mamã me contou.</p><p>O autocarro parou mesmo em frente do hospital. Havia uma loja no</p><p>átrio onde vendiam um sortido eclético de artigos. Eu tinha consciência</p><p>de que era adequado levar um presente quando se visitava alguém no</p><p>hospital, mas o que havia de comprar? Não conhecia Sammy. Bens</p><p>comestíveis pareciam não fazer sentido, uma vez que o objetivo da</p><p>minha visita era devolver-lhe a comida que ele adquirira para si próprio.</p><p>Uma vez que se encontrava em coma, material de leitura também</p><p>parecia irrelevante. Contudo, não havia muito mais que me parecesse</p><p>indicado. Havia uma variedade limitada de artigos de toilette, mas</p><p>pareceu-me pouco apropriado que eu, uma desconhecida do sexo oposto,</p><p>lhe oferecesse artigos relacionados com funções corporais e, de qualquer</p><p>maneira, uma bisnaga de pasta de dentes ou um pacote de lâminas</p><p>descartáveis não constituem presentes muito atenciosos.</p><p>Tentei recordar a oferta mais simpática que alguma vez recebera.</p><p>Tirando Polly, a planta, não me conseguia lembrar de nada. De súbito,</p><p>veio-me à ideia Declan. O meu primeiro e único namorado, que eu</p><p>quase conseguira apagar por completo da minha memória, pelo que</p><p>aquela lembrança súbita era muito perturbadora. Ao ver o único postal</p><p>de aniversário que eu recebera nesse ano (de uma jornalista que me</p><p>conseguira localizar não sei bem como, com um bilhete anexo a</p><p>recordar-me que pagaria uma soma substancial por uma entrevista,</p><p>quando e onde eu quisesse), Declan afirmou que eu lhe escondera a</p><p>minha data de aniversário de propósito. Assim, como presente pelos</p><p>meus vinte e um anos, deu-me socos nos rins, pontapeou-me até eu</p><p>perder os sentidos e, quando voltei a mim, pôs-me um olho negro por</p><p>lhe «esconder informações». O único outro aniversário que recordo foi o</p><p>décimo primeiro. Recebi uma pulseira de prata da família com quem</p><p>vivia na altura, com um pequeno amuleto em forma de ursinho de</p><p>peluche. Fiquei muito grata por receber um presente, mas nunca a usei.</p><p>Não sou uma pessoa de ursinhos de peluche.</p><p>Perguntei a mim própria que presente o cantor bonito me daria num</p><p>aniversário ou no Natal. Não, esperem – no Dia dos Namorados, o dia</p><p>mais romântico e especial do ano. Escrever-me-ia uma canção bonita, e</p><p>depois tocá-la-ia na sua guitarra enquanto eu beberricava champanhe</p><p>gelado. Não, na guitarra não; era demasiado óbvio. Ele surpreender-me-</p><p>ia e aprenderia… fagote. Sim, tocaria a melodia para mim no seu fagote.</p><p>De volta a assuntos mais prosaicos. À falta de algo mais adequado,</p><p>comprei uns jornais e revistas para Sammy, pensando que pelo menos</p><p>podia ler-lhos em voz alta. Havia uma variedade razoável na pequena</p><p>loja. Pela aparência dele e pelo conteúdo dos seus sacos de compras,</p><p>presumi que Sammy gostaria mais do Daily Star do que do Telegraph.</p><p>Comprei alguns tabloides e decidi levar também uma revista. Esta</p><p>escolha foi mais difícil. Havia a Condé Nast Traveller (sobre viagens), a</p><p>Yachts e a Yachting, Now! (sobre barcos) – como saberia qual era a</p><p>melhor? Não fazia ideia quais eram os interesses de Sammy. Pensei</p><p>cuidadosa e racionalmente para deduzir a resposta. Ao certo, a única</p><p>coisa que sabia sobre aquele homem era que se tratava de um adulto;</p><p>tudo o resto não passava de especulação. Resolvi seguir a lei das</p><p>probabilidades: pus-me em bicos de pés e tirei um exemplar da revista</p><p>masculina Razzle. Problema resolvido.</p><p>Dentro do hospital a temperatura era demasiado elevada e o chão</p><p>rangia. Havia um distribuidor de gel desinfetante para as mãos à entrada</p><p>da enfermaria e um grande cartaz amarelo por cima a avisar: NÃO</p><p>BEBER. Haveria mesmo quem ingerisse gel desinfetante? Suponho que</p><p>sim – daí o cartaz. Parte de mim, uma parte muito pequena, pensou</p><p>brevemente em baixar a cabeça para provar</p><p>uma gota, só porque me</p><p>estavam a ordenar que não o fizesse. Não, Eleanor, disse a mim própria.</p><p>Controla essas tendências rebeldes. Limita-te ao chá, café e vodca.</p><p>Estava apreensiva em usar o gel nas mãos, com receio de que</p><p>inflamasse o meu eczema, mas acabei por o fazer. A higiene é muito</p><p>importante – Deus me livre de ser um veículo de infeção. A enfermaria</p><p>era grande, com duas filas compridas de camas encostadas às paredes.</p><p>Todos os pacientes pareciam idênticos: velhotes carecas e desdentados a</p><p>dormitar ou a olhar para o vazio, de cabeça baixa. Avistei Sammy,</p><p>mesmo ao fundo do lado esquerdo, mas só o identifiquei porque era</p><p>gordo. Os restantes eram apenas ossos embrulhados em pele pregueada e</p><p>cinzenta. Sentei-me na cadeira de plástico ao lado da cama dele. Não</p><p>havia sinais de Raymond.</p><p>Sammy tinha os olhos fechados, mas era evidente que não estava em</p><p>coma. Se fosse esse o caso, estaria numa enfermaria especial, ligado a</p><p>várias máquinas, não? Tentei perceber por que motivo Raymond mentira</p><p>a esse respeito. Percebi pelos movimentos regulares do peito de Sammy</p><p>que ele estava a dormir. Decidi não lhe ler, para não o acordar, e pus os</p><p>jornais e a revista em cima do armário ao lado da cama. Depois abri a</p><p>porta de baixo com a ideia de lá deixar os sacos de compras. Estava</p><p>vazio, à exceção de uma carteira e umas chaves. Pensei em espreitar a</p><p>carteira de Sammy para tentar encontrar alguma pista sobre ele, e estava</p><p>prestes a fazê-lo quando ouvi alguém pigarrear atrás de mim, um som</p><p>roufenho que indicava um fumador.</p><p>– Eleanor, sempre veio – notou Raymond, puxando uma cadeira do</p><p>outro lado da cama. Olhei para ele.</p><p>– Porque me mentiu, Raymond? O Sammy não está em coma. Está</p><p>apenas a dormir. São coisas muito diferentes.</p><p>Raymond riu-se.</p><p>– Ah, tenho excelentes notícias para si. Ele acordou há umas duas</p><p>horas. Ao que parece, tem um traumatismo grave e uma anca partida.</p><p>Foi operado ontem. Está muito cansado da anestesia, mas acham que vai</p><p>ficar bem.</p><p>Acenei com a cabeça e levantei-me de repente.</p><p>– Nesse caso, devíamos deixá-lo em paz – sugeri.</p><p>Para ser franca, sentia-me ansiosa por sair da enfermaria. Estava</p><p>demasiado quente e era-me demasiado familiar – o padrão dos</p><p>cobertores, os cheiros químicos e humanos, as superfícies duras da</p><p>estrutura da cama e das cadeiras de plástico. Tinha as mãos a arder</p><p>levemente por causa do gel, que se infiltrara nas gretas da minha pele.</p><p>Caminhámos juntos até ao elevador e descemos em silêncio. As portas</p><p>abriram-se no rés do chão e senti as pernas acelerarem por vontade</p><p>própria em direção à saída.</p><p>Estava um daqueles fins de tarde de verão maravilhosos – oito horas</p><p>e ainda havia luz e calor. Só anoiteceria completamente quase às onze</p><p>horas. Raymond despiu o casaco, revelando outra t-shirt ridícula. Esta</p><p>era amarela e tinha dois galos. Los Pollos Hermanos, dizia. Absurdo.</p><p>Olhou para o relógio.</p><p>– Vou passar pela loja de bebidas e depois sigo para a casa do meu</p><p>amigo Andy. Aos sábados à noite costumamos juntar-nos lá para jogar</p><p>PlayStation e beber umas cervejas.</p><p>– Parece encantador – respondi.</p><p>– E a Eleanor? – inquiriu Raymond.</p><p>Ia para casa, claro, ver um programa de televisão ou ler um livro.</p><p>Que outra coisa haveria de fazer?</p><p>– Vou voltar para o meu apartamento – respondi. – Penso que há um</p><p>documentário sobre dragões-de-komodo logo à noite, na BBC4.</p><p>Ele olhou outra vez para o relógio e a seguir para o céu azul</p><p>ilimitado. Houve um momento de silêncio e depois um melro começou a</p><p>exibir-se nas imediações, com um canto tão espetacular que raiava o</p><p>vulgar. Ambos escutámos e, quando sorri a Raymond, ele devolveu-me o</p><p>sorriso.</p><p>– Oiça, está uma noite demasiado agradável para ficar sentada em</p><p>casa sozinha. Quer ir beber uma cerveja a qualquer lado? Só tenho mais</p><p>ou menos uma hora antes de a loja fechar, mas…</p><p>O convite requeria uma reflexão cuidadosa. Eu não ia a um bar há</p><p>muitos anos, e Raymond dificilmente poderia ser descrito como uma</p><p>companhia interessante. Contudo, depressa concluí que seria útil por</p><p>dois motivos. Primeiro, seria bom para treinar; se as coisas corressem</p><p>bem, Johnnie Lomond quereria levar-me a um bar num dos nossos</p><p>encontros e, portanto, devia familiarizar-me de antemão com o ambiente</p><p>geral e os comportamentos adequados nesse tipo de estabelecimento.</p><p>Segundo, Raymond era um informático – alegadamente – e eu precisava</p><p>de conselhos. Esses conselhos podiam ser caros se os tentasse obter</p><p>pelos canais oficiais, mas podia pedir-lhos nessa noite, de graça. Tudo</p><p>somado, parecia conveniente aceitar o convite de Raymond. Ele estava a</p><p>olhar para a distância e reparei que tinha acendido um cigarro e fumado</p><p>quase metade enquanto eu pensava.</p><p>– Sim, Raymond. Vou consigo ao bar – acedi, com um aceno.</p><p>– Fantástico – alegrou-se Raymond.</p><p>Acabámos por ficar num bar a cinco minutos do hospital, numa rua</p><p>movimentada. Uma das mesas na esplanada encontrava-se vazia. O</p><p>tampo metálico estava coberto de manchas circulares e as pernas</p><p>pareciam pouco firmes, mas Raymond ficou encantado.</p><p>– Lugares cá fora! – exclamou, sentando-se com satisfação e pondo o</p><p>casaco nas costas da cadeira. – Muito bem, vou lá dentro. O que quer</p><p>beber, Eleanor?</p><p>Senti um estremecimento de apreensão. Primeiro, sentada ali fora</p><p>não veria o interior do bar e não poderia observar o que lá se passava.</p><p>Segundo, não sabia o que pedir. O que é que as pessoas normais bebem</p><p>num bar? Decidi assumir o controlo da situação.</p><p>– Raymond, eu vou buscar as bebidas. Insisto. O que quer que peça</p><p>para si? – Ele tentou discutir, mas finquei o pé e acabou por aceder,</p><p>embora com ar aborrecido. Fiquei sem perceber por que raio aquilo era</p><p>assim tão importante.</p><p>– Bom, nesse caso, quero uma Guinness. Mas preferia que me</p><p>deixasse ir lá eu, Eleanor.</p><p>Pousei ambas as mãos na mesa e inclinei-me até ficar com o rosto</p><p>muito próximo do dele.</p><p>– Raymond, eu vou comprar as bebidas. É importante para mim, por</p><p>motivos que não lhe quero explicar.</p><p>Ele encolheu os ombros, acenou em concordância e eu dirigi-me à</p><p>porta.</p><p>Depois da claridade exterior, o interior do bar parecia muito escuro e</p><p>barulhento – música de um género que não me era familiar brotava de</p><p>grandes colunas. Não estava muita gente e eu era a única cliente ao</p><p>balcão. Os empregados eram um rapaz e uma rapariga, que conversavam</p><p>um com o outro. De vez em quando, ela soltava um risinho ridículo e</p><p>sacudia o cabelo pintado de amarelo, ou ele tocava-lhe no braço e ria-se</p><p>de forma falsa e demasiado sonora. Os rituais de acasalamento humanos</p><p>são inacreditavelmente enfadonhos de observar. Pelo menos no reino</p><p>animal há, de vez em quando, um vislumbre de penas coloridas ou uma</p><p>exibição de violência espetacular. Sacudir o cabelo e palmadinhas nos</p><p>ombros não estão à altura disso.</p><p>Enfadada, bati no balcão de madeira com força, três vezes, como se</p><p>estivesse a bater a uma porta. Ambos os empregados ergueram os olhos.</p><p>Pedi uma Guinness, que o rapaz começou a tirar.</p><p>– Mais alguma coisa? – perguntou. Eu ainda estava indecisa, mas</p><p>pensei que parte do trabalho dele devia ser ajudar os clientes nestas</p><p>situações.</p><p>– O que é que me recomenda? – perguntei. Ele ergueu os olhos do</p><p>fio de líquido escuro que enchia o copo.</p><p>– Hã?</p><p>– Perguntei-lhe o que me recomenda? Não costumo beber em bares.</p><p>Ele olhou para a esquerda e para a direita, como se estivesse à espera</p><p>de ver alguém. Seguiu-se uma longa pausa.</p><p>– Ah… – tartamudeou. – Bem… a Magners é muito popular. Com</p><p>gelo? É uma boa bebida de verão.</p><p>– Certo, obrigada – disse. – Nesse caso, vou seguir a sua</p><p>recomendação. – O empregado abriu uma garrafa castanha e pousou-a</p><p>no balcão. A seguir, deitou gelo num copo alto, que colocou ao lado da</p><p>garrafa.</p><p>– O que é isso? – perguntei.</p><p>– Uma Magners.</p><p>– E o copo vazio é para quê?</p><p>– É para a Magners – respondeu.</p><p>– E eu é que tenho de despejar a bebida da garrafa para o copo? –</p><p>inquiri, confusa. – Esse não é o seu trabalho? – O rapaz olhou para mim</p><p>e depois, devagar, despejou o líquido castanho para cima do gelo</p><p>e</p><p>voltou a pousar a garrafa com força; na verdade, podia até tê-la partido.</p><p>– Oito e setenta – transmitiu, em tom nada amistoso. Dei-lhe uma</p><p>nota de cinco e quatro moedas de um, depois recolhi o troco e guardei-o</p><p>com cuidado na carteira.</p><p>– Por acaso tem um tabuleiro? – pedi. O empregado atirou-me um</p><p>tabuleiro imundo e peganhento e ficou a ver-me pôr as bebidas nele</p><p>antes de me virar costas. Há uma tremenda falta de boas maneiras no</p><p>chamado setor de serviços!</p><p>Raymond agradeceu-me a cerveja e bebeu um grande gole. A</p><p>Magners era bastante agradável, e fez-me alterar um pouco a opinião</p><p>sobre o jovem empregado. Sim, as suas capacidades de lidar com os</p><p>clientes eram fracas, mas pelo menos sabia fazer recomendações</p><p>adequadas. Sem que eu lhe perguntasse nada, Raymond começou a</p><p>falar-me sobre a mãe, comunicando que ia visitá-la no dia seguinte,</p><p>como fazia todos os domingos. Ela era viúva e estava adoentada. Tinha</p><p>muitos gatos e Raymond ajudava-a a cuidar deles. E por aí fora.</p><p>Interrompi-o.</p><p>– Raymond, posso fazer-lhe uma pergunta?</p><p>Ele bebeu um gole de cerveja.</p><p>– Claro.</p><p>– Se eu quisesse comprar um smartphone, o que me aconselharia?</p><p>Tenho andado a investigar os méritos relativos dos iPhones em</p><p>comparação com os aparelhos Android, e gostava de ter a perspetiva de</p><p>um entendido sobre a relação preço-qualidade, por assim dizer.</p><p>Ele pareceu surpreendido com a pergunta, o que não deixava de ser</p><p>estranho, tendo em conta que trabalhava em informática e, portanto,</p><p>devia receber pedidos semelhantes com muita frequência.</p><p>– Certo, bom… – abanou a cabeça de uma forma que me fez lembrar</p><p>vagamente um cão – … isso depende de muitos fatores.</p><p>Desenvolveu então em pormenor esses fatores – sem chegar a</p><p>qualquer conclusão útil – e depois olhou para o relógio.</p><p>– Merda! Tenho de me despachar. Fiquei de comprar cerveja antes de</p><p>ir para casa do Andy e já são quase dez horas. – Esvaziou o copo,</p><p>levantou-se e vestiu o casaco, apesar de não estar frio. – Tem como ir</p><p>para casa, Eleanor? – perguntou.</p><p>– Oh, sim – assegurei. – Vou a pé. Está uma noite muito agradável, e</p><p>ainda nem sequer está escuro.</p><p>– Muito bem. Até segunda – despediu-se. – Bom fim de semana.</p><p>– Raymond, espere! – chamei. Ele virou-se para mim, com um</p><p>sorriso.</p><p>– Sim, Eleanor?</p><p>– A Guinness, Raymond. Foi três libras e cinquenta. – Ele olhou</p><p>para mim. – Não há pressa – continuei. – Pode pagar-me na segunda-</p><p>feira, se lhe der mais jeito.</p><p>Ele tirou quatro moedas de uma libra da carteira e deixou-as em</p><p>cima da mesa.</p><p>– Fique com o troco – resmoneou, antes de se afastar. Que</p><p>extravagância! Guardei o dinheiro na carteira e acabei a minha Magners.</p><p>Encorajada pelas maçãs da bebida, decidi fazer um desvio no caminho</p><p>para casa. Sim. Porque não? Estava na altura de fazer um pouco de</p><p>reconhecimento.</p><p>8</p><p>O Inferno não existe, claro. Porém, se existisse, a banda sonora a</p><p>acompanhar os gritos, as torturas com forquilhas e os lamentos das</p><p>almas condenadas seria um medley em loop constante de «canções de</p><p>musicais» retiradas da história do teatro musical. A obra completa de</p><p>Lloyd Webber e Rice seria tocada, sem pausas, num palco dentro do</p><p>poço infernal, e um público de pecadores seria forçado a assistir – e a</p><p>ouvir – para toda a eternidade. Os piores deles, como os pedófilos e os</p><p>ditadores assassinos, teriam de tocar na orquestra.</p><p>À exceção do trabalho requintado de um certo senhor Lomond,</p><p>ainda não encontrei um género musical que me agrade; basicamente, a</p><p>música é física audível, ondas e partículas carregadas de energia, e, tal</p><p>como a maioria das pessoas sãs de espírito, não tenho qualquer interesse</p><p>em física. Assim, pareceu-me bizarro quando dei por mim a cantarolar</p><p>uma canção do musical Oliver. Acrescentei mentalmente o ponto de</p><p>exclamação, que, pela primeira vez, me parecia apropriado. «Quem</p><p>comprará esta noite maravilhosa?» Sim, quem?</p><p>Uma das famílias de acolhimento onde vivi tinha uma videoteca de</p><p>musicais que víamos e revíamos en famille aos fins de semana, e</p><p>portanto estava bem familiarizada – embora desejasse com fervor não</p><p>estar – com o trabalho de Lionel Bart, Rodgers e Hammerstein et al.</p><p>Saber que me encontrava na rua onde ele vivia estava a causar-me uma</p><p>sensação estranha; sentia-me nervosa, à beira da euforia. Quase</p><p>conseguia compreender por que motivo aquele palerma de sobrecasaca</p><p>em My Fair Lady sentira necessidade de berrar do lado de fora da janela</p><p>de Audrey Hepburn.</p><p>Descobrir onde o músico vivia fora fácil. Ele publicara no Twitter</p><p>uma fotografia de um bonito pôr do sol:</p><p>@johnnieLrocks</p><p>A vista da minha janela: sou ou não um</p><p>sortudo?</p><p>#verãonacidade #abençoado</p><p>Mostrava telhados, árvores e céu, mas havia também um bar ao</p><p>canto da fotografia, mesmo no fim da rua, com o nome claramente</p><p>visível. Encontrei-o em segundos, graças ao Google.</p><p>A rua, como a maioria nesta parte da cidade, era uma correnteza de</p><p>prédios, todos com as portas fechadas e campainhas no exterior, uma</p><p>para cada apartamento, tendo por baixo a indicação dos nomes dos</p><p>habitantes. Era a rua certa. Por que lado havia de começar? Pelos</p><p>números pares, decidi. Ele parecia-me um homem par, não ímpar. Tinha</p><p>um enigma para resolver. Cantarolei baixinho enquanto trabalhava, e não</p><p>me lembrava da última vez em que me sentira assim – leve, animada,</p><p>elétrica. Suspeitei que a felicidade devia ser isto.</p><p>Era fascinante ver os vários nomes nas campainhas e a forma como</p><p>estavam registados. Alguns tinham sido escrevinhados a esferográfica</p><p>num autocolante descuidadamente colado por cima do botão. Certas</p><p>pessoas escreviam o nome no computador, em letra maiúscula e</p><p>carregada, que depois imprimiam e afixavam com três camadas de fita</p><p>adesiva. Algumas tinham deixado o espaço para o nome vazio, ou não</p><p>tinham substituído a etiqueta depois de os elementos esborratarem a</p><p>tinta, deixando-a ilegível. Esperei que ele não fosse um desses, mas, pelo</p><p>sim, pelo não, apontei todas as localizações sem nome no meu bloco de</p><p>notas. Se eliminasse todos os nomes legíveis sem encontrar o dele, teria</p><p>de voltar atrás e percorrer a lista de ilegíveis ou vazios.</p><p>Ah, mas como podia ter duvidado dele? A meio da rua, no mais par</p><p>dos números pares, ali estava: Sr. J. Lomond. Parei em frente da</p><p>campainha e examinei as letras. Estavam escritas de forma bem legível,</p><p>mas artística, em tinta preta clássica, num cartão branco e grosso. Era</p><p>mesmo coisa dele.</p><p>Parecia pouco provável que ele, um homem popular e atraente com o</p><p>mundo aos seus pés, estivesse em casa num sábado à noite; por isso, só</p><p>para ver qual era a sensação, toquei ao de leve na campainha com a</p><p>ponta do indicador. Ouvi um crepitar e depois uma voz masculina. Fui</p><p>apanhada de surpresa, para dizer o mínimo.</p><p>– Quem é? – repetiu o homem.</p><p>Uma voz grave, bem articulada, cadenciada. Mel e fumo, veludo e</p><p>prata. Perscrutei rapidamente a lista de campainhas e escolhi outro nome</p><p>ao acaso.</p><p>– Piza para… McFadden? – perguntei. Ouvi-o suspirar.</p><p>– É no último andar – informou, desligando. A porta abriu-se com</p><p>um zumbido e um estalido. Sem parar para pensar muito, entrei.</p><p>O músico vivia no primeiro andar, no apartamento do lado direito.</p><p>Tinha uma placa metálica discreta com o nome por cima da campainha.</p><p>Parei, à escuta. Não ouvi qualquer som no interior; apenas o zumbido da</p><p>luz das escadas e sons distantes vindos da rua. No piso de cima, ouvia-</p><p>se uma televisão em altos berros. Peguei no meu bloco e arranquei uma</p><p>folha. Coloquei-a por cima da placa de metal, procurei o lápis e comecei</p><p>a riscar ao de leve. Poucos momentos depois tinha uma cópia</p><p>extraordinária da placa, que guardei com cuidado na mala, entre as</p><p>páginas do bloco. A porta exterior estava aberta e a interior, com um</p><p>design tipicamente vitoriano, de mogno e vidro opaco gravado, estava</p><p>tão perto que era uma tentação.</p><p>Aproximei-me o mais que me atrevia. Não ouvia nada lá dentro e</p><p>não se via qualquer movimento. Quase conseguia distinguir a silhueta de</p><p>uma estante e um quadro. Um homem culto. Tínhamos tanto em</p><p>comum!</p><p>De súbito,</p><p>fiquei tensa. Ali estava: dedos suaves, em aço a vibrar, e</p><p>um acorde tremeluziu no ar, nebuloso e leitoso, como luz de uma estrela</p><p>muito, muito antiga. Uma voz: quente e baixa e gentil, uma voz de lançar</p><p>feitiços, de encantar serpentes, de moldar o rumo dos sonhos. Só</p><p>consegui virar-me para aquela voz e aproximar-me mais. Encostei-me ao</p><p>vidro. Ele estava a compor uma canção, a criar tudo – palavras, música,</p><p>sentimentos. Que privilégio raro, poder estar à escuta no preciso</p><p>momento da criação! Ele cantava sobre a natureza, o meu belo Orfeu. A</p><p>sua voz. A sua voz!</p><p>Inclinei a cabeça para trás e fechei os olhos. Imaginei o céu. Era</p><p>azul-escuro, suave e denso como pelo. Através daquela expansão de</p><p>noite, nas suas profundezas de veludo, havia luzes espalhadas,</p><p>suficientes para iluminar mil escuridões. Os padrões revelaram-se; o</p><p>olhar, deslumbrado, procurou redemoinhos e espirais, pérolas</p><p>despedaçadas, deuses, bestas e planetas. Estávamos imóveis, mas, ao</p><p>mesmo tempo, girávamos, e, enquanto girávamos, movíamo-nos num</p><p>círculo cada vez mais largo, à volta do Sol, e… oh, o movimento</p><p>entontecedor…</p><p>A música parou e apercebi-me de um movimento súbito e desfocado.</p><p>Recuei e comecei a subir as escadas depressa, com o coração aos saltos.</p><p>Nada. Parei no patamar de cima e esperei alguns minutos. Nada.</p><p>Desci em bicos de pés e parei de novo do lado de fora da porta dele.</p><p>A música recomeçara, mas eu não o queria incomodar. Afinal, só estava</p><p>ali para ver onde ele vivia… não fazia mal nenhum olhar. Missão</p><p>cumprida.</p><p>Era uma loucura perdulária mas, depois de tornar a sair para a rua,</p><p>mandei parar um táxi para me levar a casa. Demorara a chegar, mas</p><p>agora era definitivamente de noite, e não gostava de estar na rua àquela</p><p>hora. É na escuridão que acontecem coisas más. Calculei que o táxi me</p><p>custaria cerca de seis libras, mas não tinha alternativa. Prendi o cinto de</p><p>segurança e fechei o painel de vidro que me separava do motorista. Não</p><p>tinha o menor desejo de saber a sua opinião sobre o futebol, o governo</p><p>ou qualquer outro assunto. Só tinha uma coisa na cabeça. Ou, para ser</p><p>mais exata, uma pessoa.</p><p>Ao fim de uma hora ou duas, percebi enfim que não conseguiria</p><p>adormecer depois da minha aventura dessa noite. Acendi a luz e olhei</p><p>para a camisa de dormir. Tenho duas, para poder alternar quando lavo</p><p>roupa. São idênticas: ambas pelos tornozelos, com a gola subida, feitas</p><p>de algodão confortável. São cor de limão (o tom faz-me lembrar</p><p>rebuçados, que, embora não tenham feito parte da minha primeira</p><p>infância, são, ainda assim, uma imagem reconfortante). Quando eu era</p><p>pequena e a mamã me queria dar uma guloseima, enfiava-me na boca</p><p>uma azeitona recheada com pimento ou, de longe a longe, uma anchova</p><p>oleosa, retirada de uma lata amarela e vermelha em forma de caixão.</p><p>Estava sempre a recordar-me que os palatos sofisticados preferiam</p><p>sabores salgados, que as guloseimas doces baratas eram a desgraça dos</p><p>pobres (e dos seus dentes). A mamã sempre teve dentes muito brancos e</p><p>afiados.</p><p>Segundo ela, os únicos doces aceitáveis eram trufas de chocolate</p><p>belga a sério (Neuhaus, nom de dieu; só os turistas compravam aqueles</p><p>frutos do mar de chocolate horrorosos) ou suculentas tâmaras Medjool</p><p>dos souks de Tunes, e tanto uma coisa como outra eram difíceis de</p><p>encontrar nas mercearias locais. Houve uma altura, pouco antes do…</p><p>incidente… em que ela só fazia compras nas elegantes lojas Fortnum &</p><p>Mason, e lembro-me de que, nessa mesma altura, se correspondia</p><p>regularmente com a Fauchon sobre as supostas imperfeições do seu</p><p>confiture de cerises. Lembro-me dos bonitos selos vermelhos nas cartas</p><p>vindas de Paris: Liberté, Egalité, Fraternité. Não era exatamente o lema</p><p>da mamã.</p><p>Dobrei a almofada ao meio para me encostar e sentei-me na cama. O</p><p>sono ainda me parecia distante e precisava de conforto. Enfiei a mão no</p><p>espaço entre o colchão e a parede e procurei o meu velho e fiel amigo,</p><p>com as arestas arredondadas e suavizadas por anos de manuseamento.</p><p>Jane Eyre. Podia abrir o romance em qualquer página e saber com</p><p>exatidão em que ponto estava da história, quase conseguindo visualizar a</p><p>próxima frase antes de lá chegar. Era uma velha edição Penguin Classic,</p><p>com o retrato da Sra. Brontë na capa. O ex-líbris no interior diz:</p><p>Catequese da Igreja da Paróquia de Santo Eustáquio. Oferecido a</p><p>Eleanor Oliphant por Assiduidade Perfeita, 1998. Tive uma educação</p><p>muito ecuménica, no geral, pois vivi em lares de acolhimento de</p><p>presbiteranos, anglicanos, católicos, metodistas e quakers, além de</p><p>alguns indivíduos que não reconheceriam Deus nem que este lhes</p><p>apontasse o seu dedo elétrico à Miguel Ângelo. Sujeitei-me a todas as</p><p>tentativas de educação espiritual com igual má vontade. A catequese, ou</p><p>o seu equivalente, servia pelo menos para me tirar da casa onde vivia, e</p><p>às vezes havia sanduíches ou, mais raramente, companheiros toleráveis.</p><p>Abri o livro ao acaso, como se fosse uma jogada de sorte. Este abriu-</p><p>se numa cena importante: aquela onde Jane encontra pela primeira vez o</p><p>Sr. Rochester, assustando-lhe o cavalo no bosque e fazendo-o cair. Pilot</p><p>também lá está, esse cão bonito, de olhos nobres. Se o livro tem um</p><p>defeito, é não falar o suficiente em Pilot. Nunca pode haver cão de mais</p><p>num livro.</p><p>Jane Eyre. Uma criança estranha, difícil de amar. Uma filha única,</p><p>solitária. Forçada a lidar com tanto sofrimento em tão tenra idade – o</p><p>rescaldo da morte, a ausência de amor. No fim, é o Sr. Rochester que</p><p>acaba queimado. Conheço bem a sensação. Todas aquelas sensações.</p><p>Nas horas escuras da madrugada, tudo parece pior; fiquei</p><p>surpreendida ao perceber que os pássaros ainda cantavam, embora</p><p>parecessem zangados. As pobres criaturas devem dormir muito mal no</p><p>verão, quando a luz do dia demora a desaparecer. Na penumbra, na</p><p>escuridão absoluta, recordo, recordo… Acordada nas sombras, dois</p><p>pequenos corações a bater depressa, a respiração como uma faca.</p><p>Lembro-me, lembro-me… Fecho os olhos. As pálpebras são, na</p><p>verdade, meras cortinas de pele. Os nossos olhos estão sempre ligados,</p><p>sempre a ver; quando os fechamos, estamos a olhar para a pele fina e</p><p>venosa do interior das pálpebras, em vez de olharmos para o mundo.</p><p>Não é um pensamento muito reconfortante. Na verdade, se pensasse</p><p>nisso durante tempo suficiente, acabaria por querer arrancar os olhos</p><p>para parar de olhar, para parar de ver constantemente. Não posso deixar</p><p>de ver aquilo que já vi. Tal como não posso desfazer aquilo que fiz.</p><p>«Pensa em qualquer coisa bonita», aconselhava uma das minhas</p><p>mães de acolhimento quando eu não conseguia dormir, ou nas noites em</p><p>que acordava a suar, a soluçar, a gritar. Um conselho trivial, mas às</p><p>vezes eficaz. Assim, pensei em Pilot, o cão.</p><p>Suponho que devo ter dormido – parece impossível não ter passado</p><p>pelas brasas pelo menos alguns momentos – mas não me sentia</p><p>repousada. Os domingos são dias mortos. Tento dormir o mais que</p><p>consigo para passar o tempo (um velho truque da prisão, ao que parece –</p><p>obrigada pela dica, mamã), mas não é fácil, sobretudo nas manhãs de</p><p>verão. Portanto, quando o telefone tocou, pouco depois das dez, estava</p><p>acordada há horas. Já tinha limpado a casa de banho e lavado o chão da</p><p>cozinha, levado a reciclagem para o contentor e arrumado as latas no</p><p>armário com as etiquetas para fora em ordem alfabética. Já tinha</p><p>engraxado ambos os meus pares de sapatos. Já lera o jornal e terminara</p><p>as palavras-cruzadas e os puzzles.</p><p>Pigarreei antes de falar, apercebendo-me de que não pronunciava</p><p>uma palavra há quase doze horas, quando indicara ao taxista onde me</p><p>deixar. Na verdade, isso até é bastante bom, para mim – na maioria dos</p><p>casos, não falo desde que explico ao motorista do autocarro para onde</p><p>vou, na sexta-feira à noite, até cumprimentar os meus colegas, na</p><p>segunda-feira de manhã.</p><p>– Eleanor? – Era Raymond, claro.</p><p>– Sim, a própria – respondi, de modo seco. Por amor de Deus, quem</p><p>é que ele esperava que fosse? Ouvi-o tossir; fumador nojento!</p><p>– Ah… Pois. Só queria dizer-lhe que</p><p>vou ver outra vez o Sammy</p><p>hoje… e pensei que talvez quisesse vir comigo?</p><p>– Porquê? – questionei.</p><p>Ele fez uma longa pausa – estranho. Não era propriamente uma</p><p>pergunta difícil.</p><p>– Bem… Liguei para o hospital e ele está muito melhor… Está</p><p>acordado… e foi transferido para a enfermaria geral. Pensei… acho que</p><p>pensei que seria simpático para ele conhecer-nos, caso tenha alguma</p><p>pergunta sobre o que lhe aconteceu.</p><p>Eu não estava a pensar muito depressa e, por conseguinte, não tive</p><p>tempo de pesar todas as ramificações. Antes que percebesse o que estava</p><p>a acontecer, já tínhamos combinado encontrar-nos no hospital à tarde.</p><p>Desliguei e olhei para o relógio na parede da sala, por cima da lareira</p><p>(comprei-o na loja da Cruz Vermelha: moldura circular, azul-elétrico,</p><p>dos Power Rangers; sempre achei que traz uma certa joie de vivre jovial</p><p>à sala). Tinha várias horas pela frente até lá.</p><p>Decidi preparar-me com calma e olhei com atenção para o meu</p><p>reflexo no espelho enquanto a água do duche aquecia. Será que alguma</p><p>vez me poderia tornar na musa de um músico? O que era uma musa,</p><p>afinal? Eu conhecia a alusão clássica, claro, mas em termos práticos e</p><p>modernos, uma musa parecia ser apenas uma mulher atraente com quem</p><p>o artista queria dormir.</p><p>Pensei em todos aqueles quadros; donzelas voluptuosas reclinadas</p><p>em esplendor curvilíneo, bailarinas delicadas com enormes olhos</p><p>límpidos, beldades afogadas com vestidos brancos colados ao corpo,</p><p>rodeadas por nenúfares flutuantes. Eu não era curvilínea nem delicada.</p><p>Tinha um tamanho normal e um rosto normal (de um dos lados, pelo</p><p>menos). Perguntei a mim própria se os homens também olhariam para o</p><p>espelho e se achariam incompletos em formas profundamente</p><p>fundamentais. Quando abriam um jornal ou viam um filme, deparar-se-</p><p>iam apenas com jovens excecionalmente atraentes e isso faria com que</p><p>se sentissem intimidados ou inferiores por não serem tão jovens nem tão</p><p>atraentes? Leriam artigos de jornal a ridicularizar esses mesmos homens</p><p>se estes ganhavam peso ou vestiam alguma coisa que não lhes ficasse</p><p>bem?</p><p>Eram, como é natural, apenas perguntas retóricas.</p><p>Olhei de novo para mim própria. Era saudável e o meu corpo, forte.</p><p>Tinha um cérebro que funcionava bem e uma voz, embora pouco</p><p>melodiosa; a inalação de fumo há tantos anos danificara de forma</p><p>irreparável as minhas cordas vocais. Tinha cabelo, olhos, orelhas e uma</p><p>boca. Era uma mulher humana: nem mais, nem menos.</p><p>Mesmo o lado «feira de aberrações» da minha cara – a minha</p><p>metade danificada – era melhor do que a alternativa, que teria sido</p><p>morrer queimada. Não ficara reduzida a cinzas. Emergira das chamas</p><p>como uma pequena fénix. Passei os dedos pelas cicatrizes, acariciando</p><p>os contornos. Não ardi, mamã, pensei. Atravessei o fogo e sobrevivi.</p><p>Tenho cicatrizes no coração, tão grossas e desfiguradoras como as do</p><p>rosto. Sei que estão lá. Espero que reste algum tecido incólume, um</p><p>pedacinho por onde o amor possa entrar e fluir. Espero que sim.</p><p>9</p><p>Raymond estava à espera à porta do hospital. Vi-o inclinar-se para</p><p>acender o cigarro de uma mulher numa cadeira de rodas, que trouxera o</p><p>suporte do soro com ela para poder destruir a saúde ao mesmo tempo</p><p>que o dinheiro dos contribuintes era usado para tentar recuperá-la.</p><p>Raymond e ela conversavam enquanto fumavam. Ele inclinou-se para a</p><p>frente e disse qualquer coisa que fez a mulher rir, uma risada esganiçada</p><p>que terminou num ataque de tosse. Aproximei-me com cautela, com</p><p>medo dos efeitos perniciosos caso a nuvem tóxica me envolvesse.</p><p>Raymond viu-me, apagou o cigarro e caminhou em direção a mim.</p><p>Vestia calças de ganga que lhe assentavam demasiado em baixo nas</p><p>nádegas. Muito desagradável. Quando se virou, vi uns indesejados</p><p>centímetros das suas cuecas – de um roxo imperial horroroso – e de pele</p><p>branca coberta de sardas, que me fez lembrar uma girafa.</p><p>– Viva, Eleanor – cumprimentou, esfregando as mãos nas coxas</p><p>como se as quisesse limpar. – Como está?</p><p>Horrorizada, vi-o inclinar-se como se me fosse abraçar. Recuei, mas</p><p>não a tempo de evitar sentir o cheiro do fumo de cigarro e um outro</p><p>odor: algo químico, pungente e desagradável. Desconfiei de que seria</p><p>uma marca barata de colónia para homens.</p><p>– Boa tarde, Raymond – respondi. – Vamos entrar?</p><p>Apanhámos o elevador até à enfermaria sete. Raymond descreveu-</p><p>me os eventos da noite anterior com um pormenor entediante; ele e os</p><p>amigos, ao que parecia, tinham «feito uma direta», o que quer que isso</p><p>significasse, a terminar uma missão de Grand Theft Auto e depois a</p><p>jogar póquer. Não percebi por que motivo me estava a contar isto. Eu</p><p>não lhe tinha perguntado nada. Por fim, parou de falar e quis saber como</p><p>decorrera o meu serão.</p><p>– Estive a fazer pesquisas – respondi, sem querer conspurcar a</p><p>experiência ao contá-la a Raymond. – Veja! – exclamei. – Enfermaria</p><p>sete. – Tal como uma criança ou um animal de estimação, ele distraía-se</p><p>com facilidade. Um de cada vez, servimo-nos do gel desinfetante para as</p><p>mãos antes de entrar. A segurança em primeiro lugar, embora a minha</p><p>pobre pele massacrada mal tivesse recuperado do anterior ataque</p><p>dermatológico.</p><p>Sammy estava na última cama, ao pé da janela, a ler o Sunday Post.</p><p>Olhou para nós por cima dos óculos quando nos viu aproximar; não</p><p>parecia muito amistoso. Raymond pigarreou.</p><p>– Olá, senhor Thom – começou. – Chamo-me Raymond, e esta é a</p><p>Eleanor. – Cumprimentei o velho com um aceno. Raymond continuou a</p><p>falar. – Fomos nós que… ah, que o encontrámos quando se sentiu mal, e</p><p>eu vim consigo na ambulância para o hospital. Quisemos passar por cá</p><p>hoje para o cumprimentar e ver como está…</p><p>Inclinei-me e estendi a mão. Sammy olhou para ela.</p><p>– Hã? – interrogou. – Quem é que disseram que são? – Parecia</p><p>bastante aborrecido e agressivo. Raymond começou outra vez a explicar-</p><p>se, mas Sammy levantou a mão, com a palma virada para fora, para o</p><p>silenciar. Tendo em conta que vestia um pijama às riscas e o seu cabelo</p><p>branco era fofo e fino como a penugem de um pombo bebé, era</p><p>surpreendente como conseguia ser uma figura autoritária.</p><p>– Espere aí, aguente um minuto – pediu, e inclinou-se para o armário</p><p>ao lado da cama, pegando em algo que estava na prateleira. Recuei um</p><p>passo sem querer; quem sabia o que ele ia tirar dali? Vi-o enfiar algo na</p><p>orelha e ajustar o objeto, até o apito agudo que se erguia da parte lateral</p><p>da cabeça parar. Por fim, sorriu.</p><p>– Muito bem – disse. – Assim está melhor. Agora o cão já consegue</p><p>ver o coelho, não é? Então qual é a vossa história? São da igreja? Ou</p><p>querem tentar outra vez alugar-me uma televisão? Não preciso de</p><p>televisão, rapaz… Já disse aos seus colegas. Nem pensem que vou pagar</p><p>um dinheirão para ficar aqui deitado a olhar para essa porcaria! Gordas a</p><p>dançar, homens adultos a fazer bolos, por amor de Deus!</p><p>Raymond pigarreou de novo e repetiu a sua apresentação, enquanto</p><p>eu me aproximava e apertava a mão de Sammy. A expressão dele mudou</p><p>instantaneamente e olhou para nós os dois com um sorriso radiante.</p><p>– Oh, então foram vocês? Fartei-me de perguntar às enfermeiras</p><p>quem é que me tinha salvado a vida… «Quem é que me trouxe? Como é</p><p>que vim aqui parar?» Mas não me sabiam responder. Sentem-se, vá,</p><p>sentem-se aqui ao pé de mim e contem-me tudo a vosso respeito. Não</p><p>tenho como lhes agradecer o que fizeram, de verdade. – Acenou com a</p><p>cabeça e ficou muito sério. – Hoje em dia, estamos sempre a ouvir que é</p><p>tudo uma desgraça, que são só pedófilos e bandidos, mas esquecemo-</p><p>nos de que o mundo está cheio de pessoas vulgares e decentes como</p><p>vocês os dois, bons samaritanos que são capazes de parar e ajudar quem</p><p>precisa. Esperem só até a minha família vos conhecer! Vão ficar</p><p>encantados, vão mesmo!</p><p>Recostou-se na almofada, cansado do esforço de falar. Raymond</p><p>puxou uma cadeira de plástico para mim e outra para si próprio.</p><p>– Então como se sente, senhor Thom? – perguntou-lhe. – Passou</p><p>bem a noite?</p><p>– Trate-me por Sammy, filho… não é preciso cerimónias. Estou bem,</p><p>obrigado; em menos de nada ficarei fino.</p><p>Mas você e a sua mulher</p><p>salvaram-me a vida; quanto a isso não há dúvidas.</p><p>Senti Raymond agitar-se na cadeira e resolvi intervir.</p><p>– Senhor Thom – comecei.</p><p>Ele ergueu as sobrancelhas e agitou-as de forma bastante</p><p>desconcertante.</p><p>– Sammy – corrigi, e vi-o acenar, satisfeito. – Receio ter de</p><p>esclarecer algumas incorreções factuais – continuei. – Primeiro, nós não</p><p>lhe salvámos a vida. Os créditos nesse aspeto devem ir para o serviço de</p><p>ambulâncias, cujos funcionários, embora um pouco bruscos, fizeram o</p><p>que era necessário para o estabilizar enquanto o transportavam para cá.</p><p>A equipa médica no hospital, incluindo o anestesista e o cirurgião</p><p>ortopédico que lhe operou a anca, bem como os muitos profissionais de</p><p>saúde que trataram dos cuidados pós-operatórios… Enfim, se alguém o</p><p>salvou, foram eles. O Raymond e eu limitámo-nos a chamar ajuda e</p><p>fizemos-lhe companhia até o Serviço Nacional de Saúde assumir a</p><p>responsabilidade.</p><p>– Oh, sim, Deus abençoe o SNS – interrompeu Raymond, de forma</p><p>bastante rude. Lancei-lhe um dos meus olhares mais severos.</p><p>– Além disso – prossegui –, tenho de esclarecer desde já que o</p><p>Raymond e eu somos apenas colegas de trabalho. Não somos casados</p><p>um com o outro, de forma nenhuma. – Olhei para Sammy com ar sério,</p><p>certificando-me de que não restavam quaisquer dúvidas. Sammy olhou</p><p>para Raymond. Raymond olhou para Sammy. Houve um silêncio que,</p><p>para mim, pareceu um pouco embaraçoso. Raymond chegou-se para a</p><p>frente na cadeira.</p><p>– Então, onde vive, Sammy? O que andava a fazer no dia em que</p><p>teve o seu acidente? – perguntou.</p><p>Sammy sorriu.</p><p>– Sou daqui mesmo, rapaz… nascido e criado – respondeu. – Vou</p><p>sempre às compras à sexta-feira. Já me tinha sentido esquisito de manhã,</p><p>mas pensei que fosse por causa da angina de peito. Nunca esperei</p><p>acordar e ver-me aqui!</p><p>Tirou um caramelo de um saco grande que tinha no colo e ofereceu-</p><p>nos. Raymond aceitou; eu recusei. A perspetiva de pôr na boca uma</p><p>guloseima mole, aquecida à temperatura do corpo nas virilhas de</p><p>Sammy (embora através do pijama de flanela e do cobertor) era</p><p>repugnante.</p><p>Tanto Sammy como Raymond faziam muito barulho a mastigar.</p><p>Enquanto davam aos dentes, olhei para as minhas mãos e reparei que</p><p>pareciam inflamadas, quase queimadas, mas dei graças por o álcool do</p><p>gel ter removido os germes e bactérias que havia por todo o lado no</p><p>hospital. E, presumivelmente, em mim.</p><p>– E vocês? Vieram de longe? – inquiriu Sammy. – Separadamente,</p><p>claro está – acrescentou depressa, lançando-me uma olhadela.</p><p>– Eu vivo no South Side – respondeu Raymond –, e a Eleanor… no</p><p>West End, não é? – Assenti com um aceno, pois não pretendia revelar</p><p>com mais precisão o local da minha residência. Sammy quis saber onde</p><p>trabalhávamos e deixei Raymond informá-lo, satisfeita em observar a</p><p>conversa. Sammy parecia bastante vulnerável, como acontece sempre</p><p>que uma pessoa tem de usar pijama em público, mas era mais novo do</p><p>que me parecera de início (não teria mais de setenta anos, calculei) e</p><p>tinha olhos de um azul extraordinariamente escuro.</p><p>– Não percebo nada de design gráfico – admitiu Sammy. – Parece</p><p>muito complicado. Fui carteiro a vida toda. Mas saí na altura certa; se</p><p>não fizer extravagâncias, consigo viver com a minha pensão. Agora está</p><p>tudo diferente… ainda bem que já lá não estou. Deram cabo daquilo. No</p><p>meu tempo, os correios eram um serviço público como deve ser…</p><p>– É verdade – concordou Raymond. – Lembra-se de quando</p><p>recebíamos o correio de manhã, antes de sair de casa, e ainda havia uma</p><p>entrega à hora de almoço? Agora chega a meio da tarde, quando chega…</p><p>Tenho de admitir que estava a achar a conversa sobre os serviços</p><p>postais um pouco enfadonha.</p><p>– Quanto tempo acha que vai ficar internado, Sammy? – questionei.</p><p>– Só pergunto porque as probabilidades de contrair uma infeção pós-</p><p>operatória aumentam bastante em pacientes com internamento</p><p>prolongado… gastroenterite, Staphylococcus aureus, Clostridium</p><p>difficile…</p><p>Raymond interrompeu-me outra vez.</p><p>– Pois, e aposto que a comida também não presta para nada, não é,</p><p>Sammy? – acrescentou.</p><p>Sammy riu-se.</p><p>– Pode ter a certeza – retorquiu. – Haviam de ver o que me deram</p><p>hoje ao almoço. Guisado irlandês, chamam-lhe eles… parecia mais</p><p>comida para cão. E cheirava a comida para cão.</p><p>Raymond sorriu.</p><p>– Precisa de alguma coisa, Sammy? Podemos ir lá abaixo à loja, ou</p><p>passar por cá durante a semana para lhe trazer o que quiser.</p><p>Olhou para mim em busca de confirmação e eu assenti em silêncio.</p><p>Não tinha razões para contrariar aquela sugestão. Na verdade, era uma</p><p>sensação bastante agradável, pensar que podia ajudar um idoso que</p><p>sofria por nutrição inadequada. Comecei a pensar no que poderia trazer-</p><p>lhe, os tipos de comida que conseguiria transportar com mais facilidade.</p><p>Perguntei a mim própria se Sammy gostaria de massa com pesto; podia</p><p>fazer uma dose dupla para o meu jantar, um dia, e trazer-lhe o resto no</p><p>dia seguinte numa Tupperware. Não tinha caixas dessas, pois nunca</p><p>precisara. Podia ir a uma loja comprar algumas. Parecia o tipo de coisa</p><p>que uma mulher da minha idade e circunstância sociais faria. Que</p><p>empolgante!</p><p>– Ah, é muito simpático – agradeceu Sammy, dissipando, com o seu</p><p>tom, a minha ilusão de objetivo –, mas não é preciso. A minha família</p><p>vem todos os dias, duas vezes por dia. – Proferiu esta última parte com</p><p>orgulho evidente. – Nem consigo acabar de comer o que eles me trazem.</p><p>Acabo por dar a maior parte – concluiu, indicando os outros homens na</p><p>enfermaria com um aceno.</p><p>– Quem é a sua família? – perguntei, um tanto ou quanto</p><p>surpreendida pela revelação. – Presumi que fosse solteiro e sem filhos,</p><p>como nós.</p><p>Raymond agitou-se na cadeira, pouco à vontade.</p><p>– Sou viúvo, Eleanor – explicou Sammy. – A Jean morreu há cinco</p><p>anos… Cancro. Foi muito rápido. – Fez uma pausa e endireitou-se. –</p><p>Tenho dois filhos e uma filha. O Keith é o mais velho; é casado e tem</p><p>dois miúdos. Uns macaquinhos atrevidos, aqueles rapazes – comentou,</p><p>com os olhos a brilhar. – O Gary é o meu outro filho. Ele e a namorada,</p><p>a Michelle, não são casados, mas vivem juntos. Parece que é como se faz</p><p>hoje em dia. E a Laura, a mais nova… Bem, sabe Deus. Aos trinta e</p><p>cinco anos já se divorciou duas vezes, imaginem! Tem um negócio</p><p>próprio, uma casa boa, um carro… só não parece conseguir encontrar</p><p>um homem decente. Ou, quando encontra, não o consegue manter.</p><p>Achei aquilo interessante.</p><p>– O meu conselho para a sua filha seria para não se preocupar –</p><p>declarei, em tom confiante. – Segundo a minha experiência recente, o</p><p>homem perfeito aparece quando menos o esperamos. O destino coloca-o</p><p>no nosso caminho e depois a Providência garante que acabemos juntos.</p><p>– Raymond fez um som estranho, algo entre uma tossidela e um espirro.</p><p>Sammy sorriu com ar bondoso.</p><p>– Não me diga? Bom, nesse caso, pode explicar-lhe isso em pessoa,</p><p>querida. Eles não devem demorar.</p><p>Uma enfermeira ia a passar quando ele disse isto e ouviu-o. Era</p><p>tremendamente gorda e calçava umas socas de plástico branco com</p><p>peúgas às riscas amarelas e pretas – os seus pés pareciam abelhas</p><p>gigantes. Tinha mesmo de lhe perguntar onde comprara as meias antes</p><p>de me ir embora.</p><p>– Cada pessoa só pode ter três visitantes em simultâneo – informou</p><p>–, e infelizmente hoje estamos a ser rigorosos com essa regra. – Não</p><p>parecia nada infeliz. Raymond levantou-se.</p><p>– Vamos andando, para deixar a sua família estar consigo, Sammy –</p><p>afirmou. Levantei-me também; parecia a coisa certa a fazer.</p><p>– Não há pressas – tranquilizou-nos Sammy.</p><p>– Quer que voltemos durante a semana? – perguntei. – Podemos</p><p>trazer-lhe alguma revista ou jornal?</p><p>– Eleanor, tal como já referi, vocês os dois salvaram-me a vida;</p><p>agora somos família. Venham visitar-me quando quiserem. Gostava</p><p>muito de a voltar a ver, minha querida. – Os olhos dele estavam</p><p>húmidos, como caramujos em água do mar. Estendi a mão e, em vez de</p><p>a apertar, ele segurou-a nas suas. Por norma, ficaria horrorizada, mas fui</p><p>apanhada de surpresa. As mãos dele eram grandes e quentes, como</p><p>– e costumam ser pessoas a querer vender seguros.</p><p>Sussurro-lhes: «Sei onde vives»; e desligo o telefone muito devagarinho.</p><p>Este ano ainda não esteve ninguém no meu apartamento além de</p><p>profissionais; não convidei nenhum ser humano a ultrapassar a ombreira</p><p>da porta, exceto para ler o contador. Parece impossível, não parece? Mas</p><p>é verdade. Eu existo mesmo, não existo? Muitas vezes, sinto-me como</p><p>se não estivesse aqui, como se fosse um fragmento da minha própria</p><p>imaginação. Há dias em que me sinto tão pouco ligada à Terra que as</p><p>amarras que me prendem ao planeta são finas como teias, como fios de</p><p>açúcar. Uma rajada mais forte de vento podia soltar-me completamente e</p><p>eu seria levada pelas correntes como uma semente de dente-de-leão.</p><p>Esses fios tornam-se um pouco mais fortes de segunda a sexta. As</p><p>pessoas ligam para o escritório para discutir linhas de crédito, enviam-</p><p>me emails sobre contratos e orçamentos. Os funcionários com quem</p><p>partilho o espaço – Janey, Loretta, Bernadette e Billy – reparariam se eu</p><p>não aparecesse. Ao fim de alguns dias (muitas vezes perguntei a mim</p><p>própria quantos seriam precisos), ficariam preocupados por eu não ter</p><p>dito nada – não é algo habitual em mim – e iriam procurar a minha</p><p>morada aos arquivos do pessoal. Calculo que acabariam por chamar a</p><p>polícia, não? As autoridades arrombariam a porta do meu apartamento e</p><p>entrariam, com a mão na boca, a conter os vómitos por causa do cheiro.</p><p>Isso daria motivo de conversa no escritório. Eles odeiam-me, mas não</p><p>me desejam a morte. Pelo menos, acho que não.</p><p>Ontem fui ao médico. Parece que a última vez tinha sido há séculos.</p><p>Apanhei o médico mais novo, o tipo pálido e ruivo, o que me deixou</p><p>satisfeita. Quanto mais novos são, mais recente é a sua formação, o que</p><p>só pode ser bom. Detesto quando tenho consulta com a velha doutora</p><p>Wilson; tem cerca de sessenta anos e não me parece que esteja muito a</p><p>par dos mais recentes medicamentos e avanços da medicina. Mal sabe</p><p>trabalhar com o computador.</p><p>O médico estava a fazer aquela coisa em que falam connosco sem</p><p>olhar para nós, a ler o meu processo no ecrã, a carregar com cada vez</p><p>mais frenesi nas teclas para andar para baixo.</p><p>– O que posso fazer por si desta vez, menina Oliphant?</p><p>– São as dores nas costas, doutor – informei. – Tenho estado muito</p><p>mal. – Continuou a não olhar para mim.</p><p>– Há quanto tempo? – inquiriu.</p><p>– Umas duas semanas – respondi.</p><p>Assentiu com a cabeça.</p><p>– Acho que sei o que está a causar o problema – continuei –, mas</p><p>queria pedir a sua opinião.</p><p>Ele parou de ler e lá olhou para mim.</p><p>– E o que acha que lhe está a causar as dores nas costas, menina</p><p>Oliphant?</p><p>– Acho que são os meus seios, doutor – expliquei-lhe.</p><p>– Os seus seios?</p><p>– Sim – confirmei. – Sabe, estive a pesá-los e pesam quase três</p><p>quilos… os dois juntos, não é cada um! – Ri-me. Ele olhou para mim</p><p>com uma expressão séria. – É muito peso para uma pessoa carregar</p><p>constantemente, não é? – perguntei. – Quer dizer, se eu lhe prendesse</p><p>três quilos de carne ao peito e o obrigasse a andar assim o dia todo, se</p><p>calhar também lhe doíam as costas, não acha?</p><p>O médico olhou para mim e pigarreou.</p><p>– Como… Como é que?…</p><p>– Na balança da cozinha – respondi, com um aceno. –</p><p>Simplesmente… pus uma em cima da balança. Não pesei as duas;</p><p>presumi que teriam mais ou menos o mesmo peso. Não é um método</p><p>muito científico, eu sei, mas…</p><p>– Vou passar-lhe uma receita para mais analgésicos, menina Oliphant</p><p>– interrompeu ele, começando a escrever no computador.</p><p>– Mais fortes desta vez, por favor – pedi, com firmeza –, e muitos.</p><p>Já me tinham tentado enganar com doses minúsculas de aspirina.</p><p>Precisava de medicamentos muitíssimo eficientes para juntar às minhas</p><p>reservas.</p><p>– Posso pedir-lhe também uma receita do remédio para o eczema,</p><p>por favor? Parece piorar em alturas de maior stress.</p><p>Ele nem se dignou a responder a este pedido educado, limitando-se a</p><p>assentir com um aceno. Nenhum de nós falou enquanto a impressora</p><p>cuspia a papelada, que ele me entregou. Olhou de novo para o ecrã e</p><p>recomeçou a escrever. Seguiu-se um silêncio embaraçoso. As</p><p>capacidades sociais deste médico eram penosamente inadequadas, em</p><p>particular tendo em conta que tinha de lidar com pessoas no seu</p><p>trabalho.</p><p>– Então adeus, doutor – despedi-me. – Muito obrigada pelo seu</p><p>tempo.</p><p>O meu tom passou-lhe completamente despercebido. Ao que parecia,</p><p>continuava absorvido nos seus apontamentos. É o único lado negativo</p><p>dos médicos mais novos: não têm jeito nenhum para lidar com pessoas.</p><p>Isto foi ontem de manhã, numa outra vida. Hoje, depois, o autocarro</p><p>estava a andar bem no caminho para o escritório. Chovia e todos os</p><p>passageiros pareciam infelicíssimos, encolhidos dentro dos seus</p><p>sobretudos, com o hálito matinal a embaciar as janelas. A vida cintilava</p><p>em direção a mim através das gotas de chuva no vidro, tremeluzindo,</p><p>perfumada, por cima do fedor a roupas molhadas e pés húmidos.</p><p>Sempre me orgulhei muito de conseguir gerir a minha vida sozinha.</p><p>Sou uma sobrevivente solitária: sou Eleanor Oliphant. Não preciso de</p><p>mais ninguém: não há nenhum grande vazio na minha vida, não falta</p><p>peça nenhuma no meu puzzle particular. Sou uma entidade autónoma.</p><p>Pelo menos, foi o que sempre assegurei a mim própria. Porém, ontem à</p><p>noite, encontrei o amor da minha vida. Quando o vi entrar em palco,</p><p>simplesmente soube. Ele trazia um chapéu muito elegante, mas não foi</p><p>isso que me atraiu. Não; não sou assim tão superficial. Vestia um fato de</p><p>três peças, com o botão de baixo do colete desabotoado. Um verdadeiro</p><p>cavalheiro nunca abotoa o último botão, foi o que a mamã sempre</p><p>garantiu – é um dos sinais a procurar, pois indica um homem sofisticado</p><p>e elegante, da classe e posição social apropriadas. O rosto atraente, a</p><p>voz… Enfim encontrara um homem que podia ser descrito, com algum</p><p>grau de certeza, como «um bom partido».</p><p>A mamã ia ficar felicíssima.</p><p>2</p><p>No escritório havia aquela sensação palpável de boa disposição das</p><p>sextas-feiras, com toda a gente a acreditar na mentira de que o fim de</p><p>semana seria espantoso e de que, para a semana, o trabalho seria</p><p>diferente, melhor. Esta gente nunca aprende. Para mim, contudo, as</p><p>coisas tinham mudado. Não dormira muito mas, apesar disso, sentia-me</p><p>bem, melhor, excelente. As pessoas dizem que quando encontramos «o</p><p>tal», simplesmente sabemos. E tudo nesta ideia é verdade, até o facto de</p><p>o destino o ter colocado no meu caminho numa quinta-feira à noite, pelo</p><p>que agora o fim de semana se estendia à minha frente, convidativo,</p><p>repleto de tempo e de promessas.</p><p>Era o último dia de um dos designers na empresa e, como de</p><p>costume, a ocasião seria assinalada com vinho barato, cerveja cara e</p><p>batatas fritas de pacote despejadas em tigelas de cereais. Com um pouco</p><p>de sorte, a festa começaria cedo e eu poderia comparecer e, mesmo</p><p>assim, sair a horas. Tinha de chegar às lojas antes da hora de fecho. Abri</p><p>a porta e o frio do ar condicionado fez-me estremecer, apesar de ter o</p><p>colete vestido. Billy estava a falar, rodeado pelos outros e de costas para</p><p>mim; os restantes pareciam demasiado atentos para darem pela minha</p><p>entrada.</p><p>– É maluca – declarou.</p><p>– Bom, que é maluca sabemos nós – acrescentou Janey –, isso nunca</p><p>esteve em dúvida. A questão é: o que terá ela feito desta vez?</p><p>Billy soltou uma risada desdenhosa.</p><p>– Sabem que me convidou para ir ao estúpido do concerto, certo?</p><p>Janey sorriu.</p><p>– A rifa anual que o Bob organiza com os brindes que os clientes lhe</p><p>dão. Primeiro prémio, dois bilhetes. Segundo prémio, quatro bilhetes…</p><p>Billy suspirou.</p><p>– Pois. Uma noite de quinta-feira absolutamente horrorosa… Um</p><p>concerto de caridade num pub, protagonizado pela equipa de marketing</p><p>do nosso maior cliente, mais vários grupinhos constrangedores de</p><p>amigos e família? E, para agravar a situação, com ela?</p><p>Todos se riram. Eu não pude discordar daquela avaliação; não fora</p><p>propriamente uma noite de glamour e excessos dignos de um Gatsby.</p><p>– Na primeira parte havia só uma banda… Johnnie qualquer coisa e</p><p>as</p><p>patas de um animal, e as minhas pareciam pequenas e frágeis dentro</p><p>delas. Sammy tinha as unhas bastante grandes e feias, e pelos cinzentos</p><p>encaracolados nas costas das mãos, que lhe subiam pelos braços até</p><p>desaparecerem dentro das mangas do pijama.</p><p>»Eleanor, oiça – pediu, fitando-me nos olhos e apertando-me as</p><p>mãos. – Obrigado mais uma vez, minha jovem. Obrigado por ter cuidado</p><p>de mim e por me trazer as compras. – Percebi que não queria remover as</p><p>mãos do calor e da força das mãos dele. Raymond tossiu, os pulmões</p><p>sem dúvida a reagirem à falta de carcinogéneos da última meia hora.</p><p>Engoli em seco, subitamente com dificuldade em falar.</p><p>– Então volto durante a semana, com comida – acabei por dizer. –</p><p>Prometo. – Sammy acenou com a cabeça.</p><p>– Até à próxima – despediu-se Raymond, pousando a mão</p><p>rechonchuda no ombro de Sammy. – Vemo-nos em breve.</p><p>Sammy acenou-nos com a mão enquanto saíamos da enfermaria e</p><p>ainda estava a acenar e a sorrir quando virámos a esquina e nos</p><p>dirigimos ao elevador.</p><p>Nenhum de nós falou até estarmos na rua.</p><p>– Que senhor simpático, não é? – perguntou Raymond, soando algo</p><p>redundante.</p><p>Concordei com um aceno, tentando agarrar-me à sensação das</p><p>minhas mãos nas de Sammy, confortáveis e seguras, e à expressão</p><p>calorosa e bondosa dos seus olhos. Para minha extrema consternação,</p><p>descobri que tinha os olhos cheios de lágrimas e virei-me para as limpar</p><p>antes que pudessem cair. Claro que Raymond, que em regra é o menos</p><p>observador dos homens, reparou.</p><p>– O que vai fazer o resto do dia, Eleanor? – perguntou em tom gentil.</p><p>Olhei para o relógio. Eram quase quatro horas.</p><p>– Acho que vou para casa, talvez ler um pouco – respondi. – Mais</p><p>logo há um programa de rádio em que as pessoas escrevem a pedir</p><p>excertos das coisas de que gostaram durante a semana. Costuma ser</p><p>razoavelmente divertido.</p><p>Estava também a pensar que podia comprar mais vodca, só uma</p><p>garrafa pequena, para juntar à que ainda tinha. Sentia necessidade</p><p>daquela sensação breve e intensa que me invade quando bebo – uma</p><p>impressão triste, ardente – e depois, abençoadamente, todos os</p><p>sentimentos desapareciam. Também vira a data no jornal de Sammy e</p><p>lembrara-me de que hoje era, por acaso, o meu aniversário. Estava</p><p>irritada porque me esquecera de perguntar à enfermeira onde comprara</p><p>as meias de abelha – podiam ter sido um presente para mim própria. Em</p><p>vez disso, decidi comprar um ramo de frésias. Sempre gostei do seu</p><p>perfume delicado e das cores suaves – têm uma luminosidade discreta</p><p>que é muito mais bonita do que um girassol vistoso ou as vulgares rosas</p><p>vermelhas.</p><p>Raymond ficara a olhar para mim.</p><p>– Vou a casa da minha mãe – informou.</p><p>Assenti com um aceno; assoei-me e fechei o colete, preparando-me</p><p>para o regresso a casa.</p><p>– Oiça… quer vir comigo? – perguntou Raymond, precisamente</p><p>quando eu me virava para o portão.</p><p>Nem pensar nisso, foi o meu pensamento imediato.</p><p>– Costumo lá ir quase todos os domingos – prosseguiu. – A minha</p><p>mãe não sai muito… Tenho a certeza de que ficaria contente por ver</p><p>uma cara nova.</p><p>– Mesmo uma como a minha? – perguntei. Não conseguia imaginar</p><p>que alguém retirasse grande prazer de olhar para a minha cara, quer</p><p>fosse pela primeira ou pela milionésima vez. Raymond ignorou-me e</p><p>começou a remexer nos bolsos.</p><p>Ponderei o convite enquanto Raymond acendia um cigarro. Afinal de</p><p>contas, podia comprar a vodca e as flores de aniversário no regresso a</p><p>casa, e seria interessante ver o interior da habitação de outra pessoa.</p><p>Tentei lembrar-me da última vez em que isso acontecera. Tinha estado</p><p>no vestíbulo do apartamento dos meus vizinhos de baixo há uns dois</p><p>anos, quando lhes fui devolver uma encomenda que me tinha sido</p><p>entregue por engano. A casa cheirava muito a cebolas e tinham um</p><p>candeeiro feio a um canto. Poucos anos antes disso, uma das</p><p>rececionistas do trabalho dera uma festa no seu apartamento e convidara</p><p>todas as mulheres do escritório. Era uma casa muito bonita, num prédio</p><p>tradicional, com vidro gravado, mogno e cornijas elaboradas. A «festa»,</p><p>contudo, fora apenas um pretexto, um ardil para lhe fornecer a</p><p>oportunidade de nos tentar vender brinquedos sexuais. Foi um</p><p>espetáculo muito pouco edificante: dezassete mulheres embriagadas a</p><p>comparar a eficácia de uma série de vibradores de tamanho alarmante.</p><p>Saí ao fim de dez minutos, depois de ter bebido um copo de Pinot</p><p>Grigio morno e ignorado uma pergunta escandalosamente impertinente</p><p>da prima da anfitriã sobre a minha vida privada.</p><p>Estou familiarizada com o conceito de bacanais e festas dionisíacas,</p><p>claro, mas parece-me perfeitamente bizarro que as mulheres queiram</p><p>passar uma noite juntas, a beber e a adquirir tais artigos, e que isso seja</p><p>considerado «diversão». A união sexual entre amantes deve ser uma</p><p>coisa sagrada e privada. Não devia ser tema de discussão com</p><p>desconhecidos enquanto admiram roupa interior comestível. Quando o</p><p>músico e eu passássemos a nossa primeira noite juntos, a junção dos</p><p>nossos corpos espelharia a união das nossas mentes, das nossas almas. A</p><p>sua alteridade; a sombra dos pelos escuros da sua axila, os ossos</p><p>salientes da sua clavícula. O cheiro a sangue no interior do seu cotovelo.</p><p>A suavidade quente dos seus lábios quando me tomasse nos braços e…</p><p>– Ah… Eleanor? Estava a dizer… se sempre vamos a casa da minha</p><p>mãe, temos de ir já para conseguirmos apanhar o autocarro.</p><p>De má vontade, forcei-me a voltar para o tempo presente e para a</p><p>figura atarracada do meu colega, com a sua camisola puída e os ténis</p><p>sujos. Talvez a mãe do meu colega fosse uma companhia inteligente e</p><p>encantadora. Duvidava muito, com base no que conhecia da sua</p><p>descendência, mas nunca se sabe.</p><p>– Sim, Raymond. Acompanho-o a casa da sua mãe – aceitei.</p><p>10</p><p>Como é óbvio, Raymond não possuía um automóvel. Calculei que</p><p>andaria pelos trinta e tal anos, mas havia nele algo adolescente, qualquer</p><p>coisa não formada na totalidade. Tal impressão era, em parte, provocada</p><p>pela forma como se vestia. Ainda não o vira com um calçado normal, de</p><p>pele; andava sempre de ténis e parecia possuí-los numa grande</p><p>variedade de cores e estilos. Já reparei que as pessoas que usam</p><p>regularmente roupa ou calçado desportivo são as que menos participam</p><p>em atividades atléticas.</p><p>O desporto é um mistério para mim. Na escola primária, o dia do</p><p>desporto era o único dia do ano em que os estudantes com menos dotes</p><p>académicos podiam triunfar e conquistar prémios por saltar mais</p><p>depressa dentro de uma saca, ou por correr do ponto A ao ponto B mais</p><p>depressa do que os colegas. Como eles gostavam de exibir as medalhas</p><p>nos casacos no dia seguinte! Como se o segundo lugar numa corrida</p><p>com uma colher e um ovo fosse algum tipo de compensação por não</p><p>saberem como usar um apóstrofo.</p><p>Na escola secundária, as aulas de Educação Física eram pura e</p><p>simplesmente incompreensíveis. Tínhamos de usar roupas especiais,</p><p>correr interminavelmente à volta de um campo e, de vez em quando,</p><p>levar um tubo de metal e passá-lo a outra pessoa. Quando não estávamos</p><p>a correr, estávamos a saltar para dentro de um poço de areia ou por cima</p><p>de uma trave. Havia uma forma especial de o fazer; não podíamos</p><p>apenas correr e saltar, tínhamos de dar um saltinho esquisito primeiro.</p><p>Perguntei porquê, mas nenhum dos professores da disciplina (que, na</p><p>sua maioria, tanto quanto eu conseguia perceber, teriam dificuldades até</p><p>em me dizer as horas) me conseguiu fornecer uma resposta lógica.</p><p>Todas aquelas atividades me pareciam estranhas ocupações para impor a</p><p>jovens sem qualquer interesse nelas e, na verdade, tenho a certeza de que</p><p>serviram apenas para afastar a maioria de nós de qualquer atividade</p><p>física para o resto da vida. Por sorte, sou de natureza esguia e elegante e</p><p>gosto de caminhar, pelo que sempre mantive uma forma física razoável.</p><p>A mamã tem um ódio particular às pessoas gordas («Olha para este</p><p>animal guloso e preguiçoso», comentava, quando passávamos por</p><p>alguém assim na rua) e talvez eu tenha interiorizado, até certo ponto,</p><p>esta opinião.</p><p>Raymond não era gordo, mas era flácido e tinha um pouco de</p><p>barriga. Nenhuns dos seus músculos eram visíveis, e suspeito de que os</p><p>dos antebraços eram os únicos que usava com regularidade. As suas</p><p>escolhas de indumentária também não favoreciam o físico pouco</p><p>atraente: calças de ganga descaídas, t-shirts largas com slogans e</p><p>imagens juvenis. Vestia-se mais como um adolescente do que como um</p><p>homem. A sua toilette era também pouco cuidada, e costumava andar</p><p>com a barba por fazer – aliás, aquilo nem era uma barba propriamente</p><p>dita, mas apenas alguns pelos distribuídos de modo irregular, o que só o</p><p>fazia parecer desmazelado. O cabelo, de um loiro sujo, sem vida, era</p><p>curto e alvo apenas de atenções mínimas – no máximo, uma esfregadela</p><p>com a toalha após o duche. A impressão geral era a de um homem que,</p><p>embora não fosse a típica imagem de um vagabundo, decerto dormira</p><p>em más condições na noite anterior, num albergue ou no chão de um</p><p>desconhecido.</p><p>– Aqui está o nosso autocarro, Eleanor – indicou Raymond,</p><p>empurrando-me com alguma brusquidão. Eu tinha o passe, pronto mas,</p><p>como seria de esperar, Raymond não tinha passe e preferia pagar muito</p><p>mais do que o necessário apenas por não se ter dado ao trabalho de</p><p>planear de antemão. Ainda por cima, não tinha o dinheiro certo e tive de</p><p>lhe emprestar uma libra. Não me podia esquecer de lha pedir amanhã,</p><p>no trabalho.</p><p>A viagem até casa da mãe dele levou cerca de vinte minutos, os</p><p>quais aproveitei para lhe explicar as vantagens de um passe para os</p><p>transportes, incluindo onde poderia adquiri-lo e quantas viagens teria de</p><p>fazer para o pagar ou, na verdade, para começar a viajar de graça. Ele</p><p>não me pareceu muito interessado e nem sequer me agradeceu quando</p><p>acabei. É um conversador nada sofisticado.</p><p>Depois de sairmos do autocarro atravessámos um pequeno bairro de</p><p>casinhas brancas quadradas; havia quatro modelos diferentes de casa,</p><p>intercalados num padrão previsível. Cada uma delas tinha um carro</p><p>relativamente novo à porta e provas da existência de crianças – pequenas</p><p>bicicletas com rodinhas de apoio, um cesto de basquetebol afixado na</p><p>parede de uma garagem – mas não havia sinais nem sons infantis. Todas</p><p>as ruas tinham nomes de poetas – Wordsworth Lane, Shelley Close,</p><p>Keats Rise – sem dúvida escolhidos pelo departamento de marketing da</p><p>empresa construtora. Eram todos poetas reconhecíveis pelo tipo de</p><p>pessoa que aspiraria a uma casa daquelas: poetas que escreviam sobre</p><p>urnas, flores e nuvens errantes. Com base na minha experiência passada,</p><p>eu acabaria provavelmente a viver em Dante Lane ou Poe Crescent.</p><p>Este género de zona era-me muito familiar, pois vivera em várias</p><p>casas semelhantes, em ruas quase idênticas – os meus lares de</p><p>acolhimento. Aqui não havia de certeza pensionistas, nem amigos a</p><p>partilhar uma casa, e ninguém que vivesse sozinho, exceto um ou outro</p><p>divorciado ocasional. Os carros seminovos estacionados pareciam ser à</p><p>ordem quase exata de dois por casa. As famílias iam e vinham, e tudo</p><p>tinha um ar temporário, por algum motivo, como o cenário de um teatro</p><p>montado à pressa e que podia ser mudado a qualquer momento.</p><p>Estremeci, afastando as memórias.</p><p>A mãe de Raymond vivia numa rua simpática por trás das casas mais</p><p>recentes, numa fila de pequenas casas geminadas. Era uma habitação</p><p>social; as ruas ali tinham os nomes de políticos locais. As casas</p><p>compradas pelos seus habitantes tinham portas reforçadas com vidros</p><p>duplos ou pequenos alpendres acrescentados a posteriori. A residência</p><p>da família de Raymond mantinha a traça original.</p><p>Raymond ignorou a porta da frente e contornou a casa. No quintal</p><p>havia um barracão com cortinas de rede na janela e um relvado</p><p>quadrado onde se erguiam os postes da corda da roupa. A roupa lavada</p><p>esvoaçava na corda, presa com precisão militar: uma fila de lençóis e</p><p>toalhas brancos, seguida de uma outra, de roupa interior de tamanho</p><p>assustador. Havia uma pequena horta com ruibarbos muitíssimo viçosos</p><p>e filas muito direitas de cenouras, alho-francês e couves. Admirei a</p><p>simetria e precisão com que tinham sido plantados.</p><p>Raymond empurrou a porta das traseiras sem bater e gritou um</p><p>«olá» ao entrar na pequena cozinha. Cheirava deliciosamente a sopa, um</p><p>aroma salgado e quente, que vinha da grande panela em cima do fogão.</p><p>O chão e todas as outras superfícies estavam imaculadamente limpas e</p><p>arrumadas e tive a certeza de que, se abrisse uma gaveta ou armário,</p><p>tudo no seu interior estaria impecável e organizado. A decoração era</p><p>simples e funcional, com apontamentos kitsch – um grande calendário</p><p>com uma fotografia em cores vivas de dois gatinhos num cesto, e,</p><p>pendurado no puxador da porta, um tubo de pano para guardar sacos de</p><p>plástico com o feitio de uma boneca antiga. No escorredor da loiça, vi</p><p>um copo, um prato e uma chávena.</p><p>Entrámos num pequeno corredor e segui Raymond até à sala que,</p><p>mais uma vez, estava impecável e cheirava fortemente a produto para</p><p>limpeza de madeiras. No parapeito da janela havia um vaso com</p><p>crisântemos e num armário antiquado, protegidas pelas portas de vidro</p><p>fumado, uma selva descontrolada de fotografias emolduradas e bibelots,</p><p>como relíquias sagradas. Uma mulher de idade, sentada numa poltrona,</p><p>estendeu a mão para o comando para silenciar a enorme televisão.</p><p>Estava a dar aquele programa onde as pessoas levam coisas velhas para</p><p>serem avaliadas e, se descobrirem que valem alguma coisa, fingem</p><p>gostar demasiado delas para as vender. No sofá estavam deitados três</p><p>gatos; dois deles olharam para nós com ar ameaçador e o terceiro</p><p>limitou-se a abrir um olho e voltou a adormecer, sem nos considerar</p><p>dignos de reação.</p><p>– Raymond, filho! Entrem, entrem! – convidou a senhora, apontando</p><p>para o sofá e inclinando-se na poltrona para enxotar as criaturas.</p><p>– Trouxe uma amiga do trabalho, mãe. Espero que não haja</p><p>problema – disse ele, aproximando-se para a beijar no rosto. Segui-o e</p><p>estendi a mão.</p><p>– Eleanor Oliphant, muito prazer – cumprimentei. Ela pegou-me na</p><p>mão e apertou-a nas suas, tal como Sammy fizera.</p><p>– Muito prazer, querida – respondeu. – Fico sempre contente por</p><p>conhecer os amigos do Raymond. Sente-se, por favor. Vai aceitar uma</p><p>chávena de chá, espero. Como o costuma beber? – Fez menção de se</p><p>levantar e reparei no andarilho com rodas ao lado da poltrona.</p><p>– Deixa-te estar, mãe, eu vou buscar – adiantou Raymond. –</p><p>Bebemos um chazinho?</p><p>– Seria agradável, filho – concordou a senhora. – Há bolachas,</p><p>também… de chocolate com recheio, as tuas preferidas.</p><p>Raymond desapareceu na cozinha e eu sentei-me no sofá à direita da</p><p>mãe dele.</p><p>– É um bom rapaz, o meu Raymond – comentou ela, orgulhosa. Não</p><p>sabia qual seria a resposta indicada, por isso optei por um leve aceno</p><p>com a cabeça. – Então são colegas de trabalho? Também arranja</p><p>computadores? Meu Deus, as raparigas hoje em dia podem fazer tudo,</p><p>não é?</p><p>Ela era tão limpa e arranjada como a casa, com a blusa presa no</p><p>pescoço por um broche com uma pérola. Calçava chinelos de veludo cor</p><p>de vinho com orla de pelo, que pareciam confortáveis. Teria setenta e tal</p><p>anos, calculei, e reparei, quando lhe apertei a mão, que tinha os nós dos</p><p>dedos inchados.</p><p>– Eu trabalho em contabilidade, senhora Gibbons – respondi. Falei-</p><p>lhe um pouco sobre o meu trabalho e ela pareceu fascinada, acenando</p><p>com a cabeça e dizendo «Não me diga?» e «Que interessante». Quando</p><p>terminei o meu monólogo, depois de esgotar as oportunidades de</p><p>conversa limitadas sobre o tema das contas a receber, ela sorriu.</p><p>– É de cá, Eleanor? – quis saber, em tom gentil. Por norma, detesto</p><p>ser interrogada desta maneira, mas era evidente que o interesse dela era</p><p>genuíno e sem maldade, por isso expliquei-lhe onde morava, sendo</p><p>deliberadamente vaga quanto à localização exata. Nunca devemos dizer</p><p>a nossa morada a desconhecidos.</p><p>– Mas não tem sotaque, pois não? – observou ela, em tom</p><p>interrogativo.</p><p>– Passei a parte inicial da infância no Sul – expliquei –, mas mudei-</p><p>me para a Escócia quando tinha dez anos.</p><p>– Ah, está explicado</p><p>– comentou ela. Parecia satisfeita. Já reparei</p><p>que a maior parte dos escoceses não querem saber mais do que «no Sul»</p><p>e presumo que, para eles, tal descrição engloba uma espécie de</p><p>Inglaterra genérica, com corridas de barcos e chapéus de coco, como se</p><p>Liverpool e a Cornualha fossem sítios idênticos, habitados pelo mesmo</p><p>tipo de pessoas. Por outro lado, são sempre inflexíveis quando afirmam</p><p>que todas as partes do seu país são únicas e especiais. Não sei porquê.</p><p>Raymond voltou com o chá, leite e um pacote de bolachas num</p><p>tabuleiro de plástico garrido.</p><p>– Raymond! – ralhou a mãe. – Podias ter posto o leite num bule, por</p><p>amor de Deus! Temos uma convidada!</p><p>– É só a Eleanor, mãe – respondeu Raymond, olhando para mim. –</p><p>Não se importa, pois não?</p><p>– De todo – garanti. – Em casa também uso sempre o pacote. É</p><p>apenas um recipiente de onde despejar o líquido para a chávena; na</p><p>verdade, talvez seja mais higiénico do que usar um bule destapado,</p><p>penso eu.</p><p>Estendi a mão para uma bolacha de chocolate. Raymond já</p><p>mastigava a sua. Ele e a mãe tagarelaram sobre assuntos genéricos e eu</p><p>recostei-me no sofá. Nenhum dos dois tinha uma voz particularmente</p><p>estridente, e ouvia-se muito bem o tiquetaque do relógio em cima da</p><p>lareira. A casa estava quente, quase de forma opressiva. Um dos gatos,</p><p>deitado de lado em frente da lareira, espreguiçou-se com um</p><p>estremecimento e voltou a adormecer. Havia uma fotografia ao lado do</p><p>relógio, com as cores esbatidas pela idade. Um homem, obviamente o</p><p>pai de Raymond, a sorrir com alegria, erguendo um copo de champanhe</p><p>num brinde.</p><p>– É o pai do Raymond – confirmou a mãe dele, ao reparar para onde</p><p>eu estava a olhar. Sorriu. – Foi tirada no dia em que o Raymond soube as</p><p>notas dos exames. – Olhou para o filho com orgulho evidente. – O nosso</p><p>Raymond foi o primeiro da família a ir para a universidade. O pai ficou</p><p>fora de si de alegria. Só gostava que ele cá tivesse estado para o ver</p><p>licenciar-se. Que dia maravilhoso, não foi, filho? – Raymond sorriu e</p><p>acenou que sim.</p><p>– O meu pai teve um ataque cardíaco pouco depois de eu começar a</p><p>universidade – explicou-me.</p><p>– Não chegou a gozar a reforma – acrescentou a mãe. – Acontece</p><p>muitas vezes. – Ambos ficaram em silêncio durante um momento.</p><p>– O que é que ele fazia? – perguntei. Não estava interessada, mas</p><p>achei que era apropriado.</p><p>– Era técnico de gás – respondeu Raymond.</p><p>A mãe acenou.</p><p>– Trabalhou a vida inteira – afirmou –, e nunca deixou que nos</p><p>faltasse nada, pois não, Raymond? Íamos de férias todos os anos,</p><p>tínhamos o nosso carrinho. Pelo menos chegou a ver a nossa Denise</p><p>casada… Já é qualquer coisa.</p><p>Ao ver a minha expressão de incompreensão, Raymond explicou:</p><p>– A minha irmã.</p><p>– Oh, por amor de Deus, Raymond! Imagino que só sabes falar de</p><p>futebol e computadores, e aposto que a Eleanor não quer sequer saber</p><p>dessas coisas. Homens, não é, Eleanor? – Abanou a cabeça e olhou para</p><p>mim com um sorriso.</p><p>Aquilo era confuso. Como é que uma pessoa se esquecia de que</p><p>tinha uma irmã? Calculei que Raymond não se esquecera – apenas</p><p>tomava a irmã como certa, um facto da vida imutável e natural, que nem</p><p>sequer merecia a pena mencionar. Para mim, era impossível imaginar tal</p><p>cenário, sozinha como estava. Só a mamã e eu habitamos o mundo</p><p>Oliphant.</p><p>A mãe de Raymond ainda estava a falar.</p><p>– A Denise tinha onze anos quando o Raymond nasceu… Uma</p><p>surpresa e uma bênção, o meu rapaz.</p><p>Fitou o filho com tanto amor que tive de afastar o olhar. Pelo menos</p><p>sei como é o amor, pensei. Já é qualquer coisa. Nunca ninguém olhara</p><p>para mim assim, mas ficara a saber que conseguiria reconhecê-lo se o</p><p>visse.</p><p>– Filho, vai lá buscar o álbum. Quero mostrar à Eleanor aquelas</p><p>fotografias das primeiras férias em Alicante, antes de começares a</p><p>escola. Ele ficou preso na porta giratória do aeroporto – contou-me em</p><p>voz baixa, inclinando-se para mim com ar cúmplice.</p><p>Ri-me alto perante a expressão horrorizada de Raymond.</p><p>– Mãe, a Eleanor não quer aborrecer-se de morte a ver as nossas</p><p>fotografias antigas – protestou, corando de uma forma que, suponho, há</p><p>quem ache encantadora. Pensei por um momento em insistir que adorava</p><p>vê-las, mas ele parecia tão infeliz que não tive coragem. De forma muito</p><p>conveniente, o meu estômago roncou bem alto. Só tinha comido a</p><p>bolacha desde o meu repasto ao almoço, torradas com massinhas em</p><p>molho de tomate. A senhora tossiu.</p><p>– Fica para jantar, não fica, Eleanor? Não é nada de especial, mas</p><p>teríamos todo o gosto.</p><p>Olhei para o relógio. Eram apenas cinco e meia – uma hora estranha</p><p>para comer, mas estava com fome e ainda teria tempo para passar pelo</p><p>Tesco antes de voltar para casa.</p><p>– Aceito com prazer, senhora Gibbons – respondi.</p><p>Sentámo-nos à volta da pequena mesa na cozinha. A sopa era</p><p>deliciosa; ela explicou que usara um joelho de porco para fazer o caldo,</p><p>e depois desfiado a carne na sopa, que estava também cheia de vegetais</p><p>da horta. Havia pão, manteiga e queijo e, a seguir, bebemos uma chávena</p><p>de chá e comemos bolo com creme. Enquanto comíamos, a Sra.</p><p>Gibbons entreteve-nos com histórias sobre as várias excentricidades e</p><p>doenças dos vizinhos, bem como atualizações sobre as atividades de</p><p>diversos familiares, que pareciam ter tão pouca relevância para Raymond</p><p>como para mim, a julgar pela expressão dele. Reparei que se metia</p><p>muitas vezes com a mãe de forma afetuosa, e ela, fingindo-se</p><p>aborrecida, respondia dando-lhe palmadas ao de leve no braço ou</p><p>repreendendo-o pela má educação. Senti-me quente, cheia e confortável,</p><p>como não me lembrava de alguma vez me ter sentido.</p><p>A mãe de Raymond levantou-se com esforço e apoiou-se no</p><p>andarilho. Tinha artrite severa nas ancas e nos joelhos, explicou</p><p>Raymond enquanto ela subia devagar as escadas para ir à casa de banho.</p><p>A casa não era adequada para uma pessoa com mobilidade limitada,</p><p>mas a mãe recusava-se a sair: passara ali toda a vida adulta e fora ali que</p><p>criara a família.</p><p>– Muito bem – disse ela, depois de voltar –, vou lavar estes pratinhos</p><p>e depois podemos sentar-nos a ver um bocadinho de televisão.</p><p>Raymond levantou-se logo.</p><p>– Senta-te, mãe, eu trato disso… não demora nada. A Eleanor ajuda-</p><p>me, não é, Eleanor?</p><p>Levantei-me e comecei a recolher os pratos. A Sra. Gibbons</p><p>protestou com veemência, mas acabou por se sentar, devagar e com</p><p>dificuldade; ouvi-a soltar um pequeno gemido de dor.</p><p>Raymond lavou e eu limpei. Foi sugestão dele – tinha reparado nas</p><p>minhas mãos vermelhas e sensíveis, apesar de eu não lhe ter dito nada.</p><p>Deu-me apenas um empurrãozinho para me afastar do lava-loiça e pôs-</p><p>me um pano (bastante garrido, com um cãozinho com um laço de xadrez</p><p>ao pescoço) nos dedos vermelhos.</p><p>O pano era macio e fibroso, como se tivesse sido lavado muitas</p><p>vezes, e fora engomado e dobrado num quadrado perfeito com todo o</p><p>esmero. Olhei para os pratos antes de os empilhar na mesa para</p><p>Raymond arrumar. A loiça era antiga mas de boa qualidade, com rosas</p><p>vermelhas e um traço dourado desbotado à volta. A Sra. Gibbons viu</p><p>que eu estava a examinar os pratos. Não havia problema nenhum com os</p><p>seus poderes de observação, isso era certo.</p><p>– É a loiça do meu casamento, Eleanor – afirmou. – Imagine! Ainda</p><p>dura, quase cinquenta anos depois!</p><p>– Tu ou a loiça? – brincou Raymond, e ela abanou a cabeça com um</p><p>sorriso. Instalou-se um silêncio confortável enquanto executávamos as</p><p>nossas tarefas.</p><p>– Diga-me, Eleanor, tem namorado? – perguntou ela.</p><p>Que aborrecido.</p><p>– De momento, não – respondi –, mas estou de olho numa pessoa. É</p><p>só uma questão de tempo. – Ouvimos um barulho no lava-loiça quando</p><p>Raymond deixou cair a concha com estrondo.</p><p>– Raymond! – exclamou a mãe. – Mãos de manteiga!</p><p>Eu estava a seguir o músico online, claro, mas ele andava bastante</p><p>silencioso, em termos virtuais. Uma ou duas fotografias no Instagram de</p><p>refeições que comera, algumas publicações no Twitter, atualizações</p><p>desinteressantes no Facebook sobre músicas de outras pessoas. Eu não</p><p>me importava. Era apenas uma questão de esperar. Se havia algo que</p><p>sabia sobre</p><p>romance, era que o momento perfeito para nos conhecermos</p><p>e apaixonarmos aconteceria quando eu menos esperasse, e nas</p><p>circunstâncias mais encantadoras. Ainda assim, se não acontecesse</p><p>depressa teria de tomar as rédeas da situação.</p><p>– E a sua família? – continuou ela. – Vivem perto? Tem irmãos?</p><p>– Não, infelizmente – respondi. – Gostava muito de ter crescido com</p><p>irmãos. – Pensei no assunto. – Na verdade, é uma das maiores tristezas</p><p>da minha vida – ouvi-me dizer. Nunca tinha pronunciado uma frase</p><p>assim e, na verdade, nunca tinha formulado tal sentimento até agora.</p><p>Surpreendi-me a mim própria. E de quem é a culpa? Uma voz a</p><p>sussurrar-me ao ouvido, fria e cortante. Zangada. A mamã. Fechei os</p><p>olhos, tentando livrar-me dela.</p><p>A Sra. Gibbons pressentiu o meu desconforto.</p><p>– Oh, mas estou certa de que isso significa que tem uma relação</p><p>muito próxima com os seus pais. Aposto que é tudo para eles, por ser</p><p>filha única.</p><p>Olhei para os sapatos. Porque é que os escolhera? Não me lembrava.</p><p>Tinham fechos de Velcro para ser mais fácil e eram pretos, uma cor que</p><p>dava com tudo. Eram rasos por uma questão de conforto e subidos no</p><p>tornozelo para maior apoio. Eram, apercebi-me, hediondos.</p><p>– Não sejas tão curiosa, mãe – repreendeu Raymond, limpando as</p><p>mãos no pano da loiça. – Pareces a Gestapo!</p><p>Pensei que ela ficaria zangada, mas foi pior do que isso; ficou</p><p>constrangida.</p><p>– Oh, Eleanor, desculpe, querida, não queria deixá-la nesse estado.</p><p>Por favor, amor, não chore. Peço muita desculpa.</p><p>Eu estava a chorar. A soluçar! Há anos que não cedia a um pranto</p><p>destes. Tentei lembrar-me da última vez; fora depois de eu e Declan nos</p><p>separarmos. Mesmo assim, essas não tinham sido lágrimas emocionais –</p><p>estava a chorar de dor porque ele me partira o braço e duas costelas</p><p>quando por fim lhe pedira para sair de casa. Isto era pura e simplesmente</p><p>inaceitável; a chorar desta maneira na cozinha da mãe de um colega! O</p><p>que diria a mamã? Tentei recompor-me.</p><p>– Por favor, não tem que pedir desculpa, senhora Gibbons –</p><p>assegurei-lhe, com voz rouca e desafinada como a de um rapaz</p><p>adolescente, enquanto tentava acalmar a respiração e limpava os olhos</p><p>no pano da loiça. Ela estava literalmente a torcer as mãos e parecia</p><p>também à beira das lágrimas. Raymond passou-lhe o braço pelos</p><p>ombros.</p><p>– Não fiques aflita, mãe. Ela sabe que não tiveste intenção de a</p><p>perturbar… Não é, Eleanor?</p><p>– Sim, claro! – exclamei e, por impulso, inclinei-me e apertei-lhe a</p><p>mão. – A sua pergunta foi razoável e apropriada. A minha reação,</p><p>contudo, não foi. Nem sei explicar o que aconteceu. Por favor, aceite as</p><p>minhas desculpas se a fiz sentir mal.</p><p>Ela pareceu aliviada.</p><p>– Graças a Deus, querida – disse. – Não esperava lágrimas na minha</p><p>cozinha hoje!</p><p>– Pois, por norma a única coisa que me faz chorar são os teus</p><p>cozinhados, mãe – brincou Raymond, e ela riu-se baixinho. Pigarreei.</p><p>– A sua pergunta apanhou-me desprevenida, senhora Gibbons –</p><p>expliquei. – Nunca conheci o meu pai, não sei nada sobre ele, nem</p><p>sequer o nome. De momento, a mamã está… digamos que se encontra</p><p>hors de combat. – Ambos me fitaram inexpressivamente; era evidente</p><p>que não estava entre francófonos. – Nunca a vejo; está… inacessível –</p><p>continuei. – Comunicamos uma vez por semana, mas…</p><p>– Claro. Isso deixaria qualquer pessoa triste, minha querida, claro</p><p>que sim – disse ela, com um aceno compreensivo. – Toda a gente precisa</p><p>da mãe de vez em quando, tenha a idade que tiver.</p><p>– Pelo contrário – afirmei –, no meu caso um contacto por semana já</p><p>é de mais. A mamã e eu… bom, é complicado…</p><p>A Sra. Gibbons continuou a acenar de forma compreensiva,</p><p>incentivando-me a continuar. Eu, por outro lado, sabia que estava na</p><p>altura de parar. Uma carrinha de gelados passou lá fora, a tocar Yankee</p><p>Doodle, penosamente abaixo do tom certo. A letra da canção («penas</p><p>em chapéus» e «homens elegantes») veio-me à memória, saída de algum</p><p>baú profundo e completamente inútil.</p><p>Raymond bateu palmas, com falsa animação.</p><p>– Bom, o tempo não para. Mãe, vai sentar-te, o teu programa está</p><p>quase a começar. Eleanor, pode ajudar-me e trazer a roupa para dentro?</p><p>Fiquei contente por poder ajudar e assim afastar-me da conversa</p><p>sobre a mamã. Havia várias tarefas com que a Sra. Gibbons precisava de</p><p>ajuda – Raymond escolhera mudar a areia dos gatos e esvaziar as suas</p><p>caixas de dejetos, pelo que eu ficara com a melhor, sem dúvida.</p><p>Lá fora, o sol do final do dia estava fraco e pálido. Havia uma fila de</p><p>quintais à esquerda e à direita, que se estendiam em ambas as direções.</p><p>Pus o cesto da roupa no chão, peguei no saco das molas (no qual, em</p><p>caligrafia trabalhada, alguém bordara de forma bastante prestável a</p><p>palavra «Molas») e pendurei-o na corda. A roupa estava seca e cheirava</p><p>a verão. Ouvi o baque sincopado de uma bola de futebol a embater numa</p><p>parede, e raparigas a cantar por cima do som da corda de saltar a bater</p><p>no chão. O cantarolar distante da carrinha de gelados era agora quase</p><p>inaudível. Uma porta bateu, algures, e uma voz de homem gritou uma</p><p>reprimenda furiosa a – esperava eu – um cão. Havia pássaros a cantar,</p><p>um contraponto aos sons da televisão através de uma janela aberta. Tudo</p><p>parecia seguro, tudo parecia normal. Como a vida de Raymond fora</p><p>diferente da minha: uma família a sério, uma mãe, um pai, uma irmã, ali</p><p>aninhados entre outras famílias a sério. Como era ainda diferente; todos</p><p>os domingos, aqui, isto.</p><p>Depois de voltar para dentro, ajudei Raymond a trocar os lençóis da</p><p>cama da mãe pelos lavados que trouxera da corda. O quarto dela era</p><p>muito cor-de-rosa e cheirava a pó de talco. Era limpo e impessoal – não</p><p>como um quarto de hotel e sim como um quarto de estalagem, imaginei.</p><p>Tirando um livro de bolso e um pacote de rebuçados de mentol na mesa</p><p>de cabeceira, não havia nada de pessoal ali, nenhuma pista quanto à</p><p>personalidade da sua ocupante. Ocorreu-me que, no melhor sentido</p><p>possível, ela não tinha de facto uma personalidade; era uma mãe, uma</p><p>mulher bondosa e simpática sobre quem nunca ninguém diria alguma</p><p>vez: «Era louca, aquela Betty!» ou: «Não imaginas o que a Betty fez</p><p>agora!»; ou: «Depois de revermos os relatórios psiquiátricos, recusamos</p><p>a liberdade condicional à Betty pelo facto de representar um risco</p><p>extremo para o público em geral.» Era apenas e só uma senhora</p><p>simpática que criara uma família e agora vivia, tranquila, com os seus</p><p>gatos, a cultivar vegetais. Isto era, ao mesmo tempo, nada e tudo.</p><p>– A sua irmã ajuda com a mãe, Raymond? – perguntei. Ele estava a</p><p>debater-se com a capa do edredão e tirei-lho das mãos. É preciso ter</p><p>jeito para estas coisas. E Raymond era um homem sem esse jeito. Em</p><p>vez disso, pôs as fronhas (com flores e folhos) nas almofadas.</p><p>– Não – respondeu, concentrado na tarefa. – Tem dois filhos</p><p>pequenos que dão muito trabalho. O Mark, o meu cunhado, trabalha no</p><p>estrangeiro, por isso a Denise está sozinha com os miúdos semanas</p><p>seguidas. Não é fácil. Segundo ela, será melhor quando estiverem na</p><p>escola.</p><p>– Ah – respondi. – E… gosta de ser tio?</p><p>O tio Raymond: um modelo masculino um bocadinho improvável,</p><p>parecia-me. Ele encolheu os ombros.</p><p>– Sim, são divertidos. Não dá muito trabalho, para ser franco. Dou-</p><p>lhes dinheiro nos anos e no Natal, levo-os ao parque uma ou duas vezes</p><p>por mês. Missão cumprida.</p><p>Eu nunca seria tia, claro. Provavelmente, ainda bem.</p><p>– Desta vez, escapou por sorte ao álbum de fotografias da minha</p><p>mãe, Eleanor – afirmou Raymond. – Para a próxima, vai azucrinar-lhe</p><p>os ouvidos com os netos, pode ter a certeza.</p><p>Estava a fazer uma série de presunções infundadas, pensei, mas não</p><p>o disse. Olhei para o relógio e fiquei surpreendida ao ver que passava</p><p>das oito.</p><p>– Tenho de ir andando, Raymond.</p><p>– Se quiser ficar mais uma hora, eu também vou e podemos apanhar</p><p>o autocarro juntos – sugeriu. Como é óbvio, recusei.</p><p>Desci e agradeci o jantar à Sra. Gibbons. Ela, por sua vez,</p><p>agradeceu-me profusamente por ter vindo e por ter ajudado com as</p><p>tarefas.</p><p>– Eleanor, foi um prazer, a sério – garantiu. – Há</p><p>meses que não vou</p><p>além deste jardim… os meus joelhos… por isso é um prazer ver uma</p><p>cara nova, e ainda por cima tão simpática. E foi uma grande ajuda aqui</p><p>em casa… Obrigada, querida, muito obrigada.</p><p>Sorri. Receber duas vezes no mesmo dia tantos agradecimentos e</p><p>palavras calorosas! Nunca me ocorreria que pequenas ações podiam ter</p><p>reações tão genuínas e generosas. Senti um pequeno calor a crescer</p><p>dentro de mim – não um braseiro, mais uma pequena vela.</p><p>– Volte quando quiser, Eleanor… estou sempre em casa. Não precisa</p><p>de vir com ele – apontou na direção de Raymond. – Venha sozinha, se</p><p>lhe apetecer. Agora já sabe onde moro. Não se acanhe.</p><p>Por impulso, inclinei-me e encostei a face (a normal, não a</p><p>cicatrizada) à dela. Não era um beijo nem um abraço, mas era o mais</p><p>próximo disso que eu conseguia.</p><p>– Adeus! – despediu-se ela. – Boa viagem até casa!</p><p>Raymond acompanhou-me até ao fundo da rua para me mostrar</p><p>onde era a paragem de autocarro. Explicou-me que se calhar teria de</p><p>esperar um bocadinho por ser domingo. Encolhi os ombros; estava</p><p>habituada a esperar e a vida ensinara-me a ser uma pessoa paciente.</p><p>– Então até amanhã, Eleanor – despediu-se Raymond.</p><p>Tirei o passe do bolso e mostrei-lho.</p><p>– Viagens ilimitadas! – exclamei. Ele acenou e sorriu. Por sorte, o</p><p>autocarro chegou nesse momento. Levantei a mão em despedida e entrei.</p><p>Olhei para a frente quando o autocarro arrancou para evitar mais acenos.</p><p>Fora um dia agitado. Sentia-me esgotada; porém, algo se cristalizara</p><p>na minha mente. Todas estas pessoas novas, aventuras novas… todo este</p><p>contacto. Achava tudo esmagador mas, para minha surpresa, não</p><p>desagradável. E lidara surpreendentemente bem com as diferentes</p><p>situações, pensei. Conhecera pessoas novas, apresentara-me a elas e</p><p>tínhamos passado tempo de convívio social juntos, sem problemas. Se</p><p>havia algo a retirar das minhas experiências de hoje era isto: estava</p><p>quase pronta para declarar as minhas intenções ao músico. O momento</p><p>do nosso memorável primeiro encontro aproximava-se.</p><p>11</p><p>Não vi Raymond na segunda nem na terça-feira. Não pensei nele,</p><p>embora me tenha lembrado de Sammy e da Sra. Gibbons algumas vezes.</p><p>Como é óbvio, podia visitá-los sem a presença de Raymond. Na</p><p>verdade, ambos o tinham frisado no domingo. Mas não seria melhor se</p><p>ele estivesse ao meu lado? Desconfiava que sim, em grande medida</p><p>porque Raymond conseguia sempre preencher os silêncios com</p><p>comentários disparatadas e perguntas banais, se fosse necessário.</p><p>Entretanto, eu fora ao empório de telefones móveis com a fachada</p><p>menos berrante nas imediações do escritório e, seguindo os conselhos</p><p>altamente suspeitos de um vendedor enfadado, acabei por comprar um</p><p>aparelho por um preço razoável e um «pacote» que me permitia</p><p>telefonar, aceder à Internet e fazer várias outras coisas, a maioria das</p><p>quais não tinha qualquer interesse para mim. Ele mencionara aplicações</p><p>e jogos; perguntei se tinha palavras-cruzadas, mas fiquei muito</p><p>desapontada com a resposta. Estava a familiarizar-me com o manual do</p><p>novo aparelho, em vez de inserir os pormenores do IVA na fatura do Sr.</p><p>Leonard, quando, contra minha vontade, me apercebi da conversa à</p><p>minha volta, devido ao volume excessivo da mesma. Era, imagine-se,</p><p>sobre o almoço de Natal anual.</p><p>– Sim, mas eles lá têm entretenimento! E há sempre muitos grupos</p><p>grandes, por isso podemos conhecer pessoas novas, divertirmo-nos –</p><p>estava Bernadette a dizer.</p><p>Entretenimento! Haveria alguma banda e, se assim fosse, seria a</p><p>banda dele? Um milagre de Natal antecipado? Estaria o destino a</p><p>interceder outra vez? Antes que pudesse pedir mais pormenores, Billy</p><p>interveio.</p><p>– O que tu queres é enrolar-te com um tipo bêbado qualquer da</p><p>Allied Carpets debaixo do azevinho – declarou. – Não penses que vou</p><p>pagar sessenta libras por pessoa para comer peru seco e por uma tarde</p><p>pirosa de discoteca, só para poderes procurar novos talentos!</p><p>Bernadette riu-se e deu-lhe uma palmada no braço.</p><p>– Não – negou –, não é nada disso. Só acho que seria mais divertido</p><p>se houvesse muita gente…</p><p>Janey olhou discretamente para os outros, convencida de que eu não</p><p>estava a ver. Vi-a lançar um olhar de relance para as minhas cicatrizes,</p><p>como costumava fazer.</p><p>– Vamos perguntar ali à Harry Potter – sugeriu, em voz não muito</p><p>baixa, e virou-se para falar comigo. – Eleanor! Eh, Eleanor! Você é uma</p><p>rapariga que gosta de se divertir, não é? O que acha? Onde devíamos</p><p>fazer o almoço de Natal da empresa este ano?</p><p>Levei algum tempo a olhar para o calendário na parede do escritório</p><p>que, este mês, mostrava uma fotografia de um camião verde.</p><p>– Estamos em pleno verão – lembrei. – Não posso afirmar que já</p><p>tenha pensado nisso.</p><p>– Sim, mas temos de reservar o sítio já, senão os bons esgotam e</p><p>ficamos limitados ao Wetherspoons ou a um restaurante italiano</p><p>manhoso qualquer – contrapôs Janey.</p><p>– É-me indiferente – retorqui. – Não tenciono comparecer, de</p><p>qualquer maneira. – Esfreguei a pele entre os dedos; estava a sarar, mas</p><p>o processo era penosamente lento.</p><p>– Ah, é verdade – discorreu Janey –, a Eleanor nunca vai, pois não?</p><p>Tinha-me esquecido. E também não participa na troca de prendas.</p><p>Eleanor, a Grinch, era o que lhe devíamos chamar. – Todos se riram.</p><p>– Não compreendo essa referência cultural – retorqui. – Contudo,</p><p>para que fique claro, sou ateia e não me considero consumista; por isso,</p><p>o festival comercial de inverno também conhecido como Natal não tem</p><p>grande interesse para mim.</p><p>Voltei ao trabalho, na esperança de que isso os inspirasse a fazer o</p><p>mesmo. São como crianças, distraem-se com facilidade e não se</p><p>importam de passar o que parecem ser horas a discutir trivialidades e a</p><p>falar de pessoas que não conhecem.</p><p>– Parece que alguém teve uma má experiência no colo do Pai Natal</p><p>em tempos idos – comentou Billy, e depois, felizmente, o telefone tocou.</p><p>Sorri com tristeza. Ele não conseguia sequer imaginar o tipo de más</p><p>experiências que eu tivera, «em tempos idos».</p><p>Era uma chamada interna: Raymond, a perguntar se eu queria ir</p><p>visitar Sammy com ele nessa tarde, depois do trabalho. Era quarta-feira.</p><p>Perderia a minha conversa semanal com a mamã. Por outro lado, o que é</p><p>que ela podia fazer a esse respeito, na verdade? Não faria grande mal se</p><p>não falássemos, só desta vez, e Sammy precisava de comida nutritiva.</p><p>Respondi que sim.</p><p>O nosso encontro estava marcado para as cinco e meia. Eu insistira</p><p>para que nos encontrássemos em frente aos correios, pois temia a reação</p><p>dos meus colegas se nos vissem sair juntos do trabalho. Estava uma</p><p>tarde amena e agradável, por isso decidimos ir a pé até ao hospital, uma</p><p>caminhada de apenas vinte minutos. Raymond estava sem dúvida a</p><p>precisar de exercício.</p><p>– Como foi o seu dia, Eleanor? – perguntou, fumando enquanto</p><p>andávamos. Troquei de lado, tentando posicionar-me para que o vento</p><p>não soprasse as toxinas nocivas para cima de mim.</p><p>– Bom, obrigada. Comi uma sanduíche de queijo e pickles com</p><p>batatas fritas salgadas e um batido de manga ao almoço.</p><p>Ele soprou o fumo pelo outro lado da boca e riu-se.</p><p>– Aconteceu mais alguma coisa? Ou só a sanduíche?</p><p>Pensei na pergunta.</p><p>– Houve uma discussão prolongada sobre locais para o almoço de</p><p>Natal – declarei. – Parece que as escolhas foram reduzidas ao TGI</p><p>Fridays porque «é só rir» – aqui, tentei agitar os dedos para indicar as</p><p>aspas, um gesto que vira Janey fazer uma vez e que arquivara para futura</p><p>referência; penso tê-lo reproduzido com estilo – ou o buffet de Natal do</p><p>Bombay Bistro.</p><p>– Porque nada faz lembrar mais o Natal do que borrego biryani,</p><p>certo?</p><p>Raymond apagou o cigarro, atirando-o para o chão. Chegámos ao</p><p>hospital e esperei enquanto ele, tipicamente desorganizado, ia à loja na</p><p>entrada. Não há mesmo desculpa para uma pessoa não estar preparada.</p><p>Eu já fora ao Marks and Spencer, antes de nos encontrarmos, e adquirira</p><p>alguns artigos selecionados, incluindo um pacote de pevides de abóbora.</p><p>Desconfiava que Sammy estaria a precisar muito de zinco. Raymond</p><p>reapareceu com um saco de compras na</p><p>mão. No elevador, abriu-o e</p><p>mostrou-me o que adquirira.</p><p>– Gomas, o Evening Times e uma embalagem grande de Pringles de</p><p>natas e cebolinho. Que mais pode um homem desejar, hã? – indicou,</p><p>com ar orgulhoso. Nem me dignei a responder.</p><p>Parámos à entrada da enfermaria; a cama de Sammy estava rodeada</p><p>por visitantes. Ele viu-nos e chamou-nos. Olhei em volta, mas a</p><p>enfermeira severa com as meias às riscas não estava por perto. Sammy</p><p>estava regiamente reclinado num monte de almofadas, a receber o seu</p><p>séquito.</p><p>– Eleanor, Raymond… que bom ver-vos! Venham conhecer a</p><p>família! Este é o Keith… os miúdos ficaram em casa com a mãe… e</p><p>estes são o Gary e a Michelle, e esta… – apontou para uma mulher loira</p><p>que estava a escrever qualquer coisa no telemóvel, muito concentrada – é</p><p>a minha filha Laura.</p><p>Apercebi-me de que estavam todos a sorrir e a acenar, e depois</p><p>apertaram-nos a mão e deram palmadas nas costas de Raymond. Foi</p><p>avassalador. Eu decidira calçar as luvas de algodão branco, em vez de</p><p>usar o gel desinfetante – podia fervê-las assim que chegasse a casa. Isto</p><p>causou alguma hesitação nos apertos de mão, o que me pareceu</p><p>estranho; com certeza que uma barreira de algodão entre a superfície das</p><p>nossas peles só podia ser uma coisa boa, não?</p><p>– Muito obrigado por terem cuidado do meu pai – agradeceu o filho</p><p>mais velho, Keith, limpando as mãos nas calças. – É muito bom saber</p><p>que ele não estava sozinho quando aconteceu, que tinha alguém com ele.</p><p>– Eh! – exclamou Sammy, dando-lhe uma cotovelada. – Não sou um</p><p>velho inválido, sabes. Consigo tomar conta de mim próprio. – Sorriram</p><p>um para o outro.</p><p>– Claro que sim, pai. Só estou a dizer que, às vezes, é bom ter um</p><p>rosto amigo por perto, não é?</p><p>Sammy encolheu os ombros, não admitindo a necessidade, mas</p><p>disposto a deixar passar o comentário.</p><p>– Tenho boas notícias para vocês os dois – anunciou, recostando-se</p><p>nas almofadas com ar satisfeito enquanto eu e Raymond depositávamos</p><p>os nossos sacos aos pés da cama, como se fossem incenso e mirra. –</p><p>Tenho alta no sábado!</p><p>Raymond deu-lhe um «mais cinco», depois de alguma atrapalhação</p><p>inicial porque Sammy não estava a perceber o motivo para ter uma mão</p><p>rechonchuda aberta à frente da cara.</p><p>– Ele vai ficar comigo uma ou duas semanas, só até ganhar confiança</p><p>com o andarilho – explicou a filha, Laura, erguendo finalmente os olhos</p><p>do telemóvel. – Vamos dar uma pequena festa para celebrar! Estão os</p><p>dois convidados, claro – acrescentou, de forma um pouco menos</p><p>entusiástica.</p><p>Estava a olhar fixamente para mim. Não me importei. Na verdade,</p><p>prefiro isso a olhares furtivos e disfarçados. Laura fez-me um exame</p><p>completo e franco, carregado de fascínio mas sem indícios de medo ou</p><p>repugnância. Afastei o cabelo da cara, para ela conseguir ver melhor.</p><p>– Este sábado? – perguntei.</p><p>– Eleanor, não se atreva a dizer que está ocupada! – avisou Sammy. –</p><p>Não aceito desculpas. Quero-vos lá aos dois. Ponto final.</p><p>– Quem somos nós para discutir? – retorquiu Raymond com um</p><p>sorriso.</p><p>Pensei no assunto. Uma festa. A última festa onde estivera – além</p><p>daquela infeliz festa de casamento – fora o décimo terceiro aniversário</p><p>de Judy Jackson. Incluíra patinagem no gelo e batidos de chocolate, e</p><p>não acabara bem. Mas com certeza que era pouco provável que alguém</p><p>vomitasse ou ficasse sem um dedo na festa de boas-vindas a casa de um</p><p>idoso inválido.</p><p>– Estarei presente – acedi, inclinando a cabeça.</p><p>– Aqui têm o meu cartão – indicou Laura, dando um a Raymond e</p><p>outro a mim. Era preto e brilhante, gravado a dourado, e dizia «Laura</p><p>Marston-Smith, Técnica de Estética, Cabeleireira, Consultora de</p><p>Imagem», com a morada e números de telefone por baixo.</p><p>– Às sete, no sábado, está bem? Não precisam de trazer nada.</p><p>Guardei o cartão na mala com cuidado. Raymond enfiara o seu no</p><p>bolso de trás das calças. Não conseguia tirar os olhos de Laura, reparei,</p><p>aparentemente hipnotizado, como um mangusto por uma cobra. Como é</p><p>óbvio, ela estava consciente disso. Desconfiei que, com a sua aparência,</p><p>estaria habituada. Cabelo loiro e seios grandes são um perfeito cliché.</p><p>Homens como Raymond, imbecis comuns, ficam sempre distraídos com</p><p>mulheres de tal aspeto, pois não possuem a inteligência ou a sofisticação</p><p>necessárias para ver além do cabelo oxigenado e das glândulas</p><p>mamárias.</p><p>Raymond arrancou os olhos do decote de Laura e desviou-os para o</p><p>relógio na parede. Depois virou-se para mim.</p><p>– Vamos embora – disse eu, em resposta ao olhar dele –, e</p><p>encontramo-nos no sábado.</p><p>Mais uma vez, seguiu-se um frenesim de saudações e apertos de</p><p>mão. Sammy, entretanto, estava a remexer nos sacos que nós lhe</p><p>tínhamos trazido. Levantou um pacote de couve frisada orgânica.</p><p>– Que raio é isto? – perguntou, incrédulo. «Zinco», murmurei entre</p><p>dentes. Raymond arrastou-me para fora da enfermaria de forma algo</p><p>abrupta, pareceu-me, antes de eu ter hipótese de informar que a salada</p><p>de lulas devia ser comida o mais depressa possível. A temperatura</p><p>ambiente na enfermaria do hospital era demasiado elevada.</p><p>12</p><p>No dia seguinte, enquanto esperava que a água na chaleira fervesse, o</p><p>meu olhar foi atraído por um folheto no saco de reciclagem do</p><p>escritório, ao lado de um monte de brochuras de férias e revistas de</p><p>mexericos muito folheadas. Era de uns armazéns na cidade, que eu não</p><p>costumava frequentar, e apresentava uma oferta francamente espetacular</p><p>de um terço de redução no preço de uma «manicure de luxo relaxante».</p><p>Tentei imaginar o que seria uma manicure de luxo relaxante, sem</p><p>sucesso. Como é que tencionavam introduzir «luxo» e «relaxamento» no</p><p>processo de limar e pintar as unhas? Estava, literalmente, para além da</p><p>minha imaginação. Senti um arrepio de excitação. Só havia uma maneira</p><p>de descobrir. Na continuação do meu regime de melhoramento, voltaria</p><p>agora a atenção para as mãos.</p><p>Ultimamente, os meus planos de automelhoramento tinham sido um</p><p>pouco negligenciados, devido ao acidente infeliz de Sammy e aos</p><p>eventos daí resultantes. Mas estava na altura de me voltar a concentrar</p><p>no objetivo: o músico. Cedi ao pecado do orgulho por um momento. As</p><p>minhas unhas crescem muitíssimo depressa e são fortes e brilhantes.</p><p>Atribuo este facto a uma dieta com elevado teor de vitaminas, minerais e</p><p>ácidos gordos essenciais, que obtenho através do meu regime de almoço</p><p>bem planeado. As minhas unhas são um tributo à excelência culinária da</p><p>zona comercial das cidades britânicas. Uma vez que não sou uma pessoa</p><p>vaidosa, só as corto com um corta-unhas quando estão demasiado</p><p>compridas para trabalhar no teclado de forma confortável, e limo as</p><p>arestas resultantes para não ficarem presas na roupa e não me</p><p>arranharem a pele quando tomo banho. Até aqui, era tudo perfeitamente</p><p>adequado. As minhas unhas estão sempre limpas – unhas limpas, tal</p><p>como sapatos limpos, são fundamentais para o autorrespeito. Embora</p><p>não seja elegante nem virada para a moda, estou sempre asseada; assim,</p><p>pelo menos, posso estar de cabeça erguida quando assumo o meu lugar</p><p>no mundo, por mais insignificante que seja.</p><p>Na hora de almoço, dirigi-me à cidade, comendo a minha sanduíche</p><p>pelo caminho para poupar tempo. Em retrospetiva, teria sido melhor</p><p>escolher um recheio menos complicado; ovo e agrião talvez não tenha</p><p>sido a escolha mais sensata para comer numa carruagem de comboio</p><p>cheia e quente, e tanto a sanduíche como eu estávamos a atrair olhares</p><p>desaprovadores dos outros passageiros. Detesto comer um público,</p><p>mesmo nas melhores alturas, por isso a viagem de oito minutos não foi</p><p>uma experiência agradável para nenhum dos envolvidos.</p><p>Encontrei o balcão de manicure ao fundo da área de beleza, um</p><p>espaço amplo, iluminado por candelabros, repleto de espelhos,</p><p>fragrâncias e sons. Senti-me como um animal encurralado – uma corça</p><p>ou um cão raivoso – e imaginei o caos que causaria se, numa corrida</p><p>desenfreada, me visse presa ali contra a minha vontade. Apertei o</p><p>folheto na mão fechada com força dentro do bolso do colete.</p><p>A Unhas Etcetera – a que extras se referiria o termo em latim?</p><p>–</p><p>parecia consistir de duas crianças entediadas com túnicas brancas, um</p><p>balcão com quatro bancos altos e um expositor de vernizes em todos os</p><p>tons possíveis, do transparente ao preto. Aproximei-me com cautela.</p><p>– Bem-vindaàUnhasEteceteraEmquepossoajudar? – anunciou a mais</p><p>pequena. Demorei um instante a traduzir.</p><p>– Boa tarde – respondi, devagar e em voz exageradamente modulada,</p><p>para lhe mostrar como se deve falar de modo a conseguir uma</p><p>comunicação eficaz.</p><p>Ela e a companheira ficaram ambas a olhar para mim, com</p><p>expressões de alarme e… bom, de alarme, basicamente. Sorri, de uma</p><p>forma que, esperava, fosse tranquilizadora. Afinal de contas, eram tão</p><p>jovens – talvez isto fosse uma espécie de experiência de trabalho e</p><p>aguardassem o regresso da professora.</p><p>– Queria uma manicure de luxo relaxante, por favor – pedi, o mais</p><p>claramente que consegui. Houve uma longa pausa silenciosa em que não</p><p>aconteceu nada. A rapariga mais baixa foi a primeira a despertar do seu</p><p>transe.</p><p>– Sente-se! – indicou, apontando para o banco mais próximo. A</p><p>companheira continuou como que hipnotizada. A mais baixa (Casey,</p><p>segundo a placa que tinha ao peito) mexeu em algumas coisas</p><p>distraidamente e depois sentou-se do outro lado do balcão, pousando</p><p>entre nós uma tigela em forma de rim cheia de água quente com sabão.</p><p>Fez girar o expositor de vernizes. – Que cor vai desejar?</p><p>Os meus olhos foram atraídos por um verde-vivo, do mesmo tom de</p><p>uma rã venenosa do Amazonas, aqueles animais minúsculos e</p><p>deliciosamente mortíferos. Tirei-o e entreguei-o a Casey. Ela assentiu</p><p>com um aceno. Não estava a mascar pastilha elástica, mas tinha todo o</p><p>ar de uma pessoa que costuma fazê-lo.</p><p>Pegou-me nas mãos e colocou as pontas dos dez dedos dentro da</p><p>água quente. Mantive-me vigilante, para me certificar de que mais</p><p>ninguém tocava nas substâncias detergentes desconhecidas, por medo de</p><p>inflamar o meu eczema. Fiquei ali sentada vários minutos, a sentir-me</p><p>como uma idiota, enquanto ela remexia numa gaveta e regressava com</p><p>uma série de instrumentos de aço inoxidável dispostos numa bandeja de</p><p>forma cuidadosa. A sua companheira catatónica lá regressara à vida e</p><p>tagarelava de modo bastante animado com uma colega de outro balcão;</p><p>não percebi o tema, mas parecia estar a causar muitos revirares de olhos</p><p>e encolheres de ombros.</p><p>Casey considerou que era o momento apropriado para remover as</p><p>minhas mãos da água e pousou-as em cima de uma flanela dobrada.</p><p>Com delicadeza, secou-me as pontas dos dedos. Perguntei a mim</p><p>própria por que razão não me teria simplesmente pedido para tirar as</p><p>mãos da água, usando a voz, e não me passara a toalha para eu as secar</p><p>com as minhas próprias mãos, uma vez que, neste momento, me</p><p>encontrava em pleno uso das minhas funções motoras em todos os</p><p>membros e extremidades. Por outro lado, talvez fosse a isto que se</p><p>referiam quando anunciaram «relaxante» – uma pessoa não tinha,</p><p>literalmente, de mexer um dedo.</p><p>Casey começou a trabalhar com os instrumentos, empurrando as</p><p>minhas cutículas e cortando-as quando necessário. Tentei fazer conversa</p><p>de circunstância, consciente de que era assim que se costumava agir</p><p>nestas ocasiões.</p><p>– Já trabalha aqui há muito tempo? – perguntei.</p><p>– Dois anos – respondeu Casey, para minha estupefação; não parecia</p><p>ter mais de catorze anos e, tanto quanto eu sabia, o trabalho infantil</p><p>ainda era proibido neste país.</p><p>– E sempre quis ser… – debati-me com a palavra correta – … uma</p><p>manicura?</p><p>– Técnica de unhas – corrigiu Casey. Estava concentrada no trabalho</p><p>e não olhou para mim enquanto falava, o que era merecedor da minha</p><p>total aprovação. Não há nenhuma necessidade de contacto visual quando</p><p>uma das pessoas está a manejar instrumentos afiados.</p><p>»Queria trabalhar com animais ou ser técnica de unhas – esclareceu.</p><p>Passara agora para uma massagem da mão. Mais relaxamento de luxo,</p><p>presumi, embora o achasse bastante inútil e ineficaz, e estivesse</p><p>preocupada com potenciais reações alérgicas. Ela tinha mãos</p><p>minúsculas, quase tão pequenas como as minhas (que, para minha</p><p>grande tristeza, são anormalmente pequenas, como as de um</p><p>dinossauro). Preferia, se pudesse escolher, ser massajada pelas mãos de</p><p>um homem: mais fortes, maiores, mais firmes. Mais peludas.</p><p>»Pois – continuou. – Não conseguia decidir entre animais e unhas,</p><p>por isso perguntei à minha mãe e ela aconselhou-me a ir para técnica de</p><p>unhas. – Pegou numa lima e começou a dar forma às minhas unhas. Era</p><p>um processo que, decididamente, teria corrido melhor se fosse eu a fazê-</p><p>lo a mim mesma.</p><p>– A sua mãe é economista ou uma conselheira profissional</p><p>habilitada? – inquiri. Casey olhou para mim. – Porque, caso contrário,</p><p>não sei se o conselho dela terá sido necessariamente baseado nos dados</p><p>mais recentes sobre projeções de rendimento e procura no mercado de</p><p>trabalho – concluí, preocupada com as suas perspetivas futuras.</p><p>– É agente de viagens – retorquiu Casey com firmeza, como se isso</p><p>resolvesse o assunto. Não insisti. Afinal de contas, não era problema</p><p>meu e a rapariga parecia satisfeita com o trabalho. Ocorreu-me, contudo,</p><p>enquanto Casey aplicava várias camadas de outros tantos vernizes, que</p><p>talvez pudesse ter combinado as duas profissões se optasse por trabalhar</p><p>como tosquiadora e tratadora de cães. No entanto, decidi guardar a</p><p>minha opinião para mim. Às vezes, quando tentamos ajudar com</p><p>sugestões, isso pode levar a mal-entendidos nem sempre agradáveis.</p><p>Ela colocou as minhas mãos numa pequena máquina que era,</p><p>presumi, um secador de unhas e, minutos depois, o relaxamento de luxo</p><p>estava concluído. De uma maneira geral, a experiência fora bastante</p><p>desapontante.</p><p>Ela informou-me do preço, que era, à falta de melhor definição, um</p><p>roubo.</p><p>– Tenho um folheto! – exclamei. Casey acenou com a cabeça e, sem</p><p>sequer me pedir para o ver, deduziu o terço devido e anunciou o valor</p><p>final, que mesmo assim me deixou chocada. Estendi a mão para a mala.</p><p>– Pare! – exclamou Casey, de forma alarmante. Obedeci. – Vai</p><p>estragar o verniz – explicou. Inclinou-se para a frente. – Se quiser, eu</p><p>tiro-lhe a carteira da mala.</p><p>Temi que isto pudesse ser um ardil elaborado para me roubar ainda</p><p>mais do dinheiro que tanto me custara a ganhar, por isso vigiei-a com</p><p>olhos de águia enquanto enfiava a mão na minha mala. Tarde de mais,</p><p>lembrei-me de que guardara lá o resto da sanduíche de ovo – Casey não</p><p>se esforçou por disfarçar o ar agoniado quando tirou a carteira. Um</p><p>bocadinho exagerada, a reação dela, na minha opinião – sim, o cheiro a</p><p>enxofre que emanava da mala era intenso, mas também não era preciso</p><p>tanto teatro. Mantive os olhos nos dedos dela (cujas unhas não estavam</p><p>pintadas, reparei) enquanto Casey retirava da carteira as notas</p><p>necessárias e a voltava a enfiar na mala com muito cuidado.</p><p>Levantei-me, pronta para partir. A companheira inicial de Casey</p><p>voltara e olhou para as minhas mãos, com as pontas de um verde</p><p>reluzente.</p><p>– Muito bonito – elogiou, embora o tom de voz e a linguagem</p><p>corporal fossem um forte indicador de que tinha pouco interesse no</p><p>assunto. Em comparação, Casey parecia agora um pouco mais animada.</p><p>– Gostaria de levar um cartão de cliente? – ofereceu. – Se fizer cinco</p><p>manicures, a sexta é de graça!</p><p>– Não, obrigada – agradeci. – Não voltarei a fazer uma manicure.</p><p>Posso fazer o mesmo em casa, ainda melhor, e de graça.</p><p>Elas entreabriram a boca, como que para protestar, mas eu virei</p><p>costas e afastei-me, abrindo caminho de regresso ao mundo, evitando os</p><p>funcionários que borrifavam perfumes e ofereciam amostras junto dos</p><p>balcões de perfumaria. Só queria estar de novo sob a luz natural e</p><p>respirar ar puro. O ambiente dourado da área de beleza não era o meu</p><p>habitat preferido; tal como a galinha que pusera os ovos para a minha</p><p>sanduíche, eu era mais uma criatura de ar livre.</p><p>Depois do trabalho, cheguei a casa e abri o roupeiro. O que vestir</p><p>para uma festa? Tinha dois pares de calças formais pretas e cinco blusas</p><p>brancas – bom, tinham sido brancas, originalmente – que usava para</p><p>trabalhar.</p><p>Tinha um par de calças casuais confortáveis, duas t-shirts e</p><p>duas camisolas de malha, que vestia aos fins de semana. Só sobrava o</p><p>meu conjunto das ocasiões especiais. Comprara-o para o casamento de</p><p>Loretta há anos e vestira-o apenas em meia dúzia de ocasiões desde</p><p>então, incluindo uma visita especial ao Museu Nacional da Escócia. A</p><p>exposição de um tesouro romano recém-descoberto fora monumental; a</p><p>viagem até Edimburgo, nem por isso. O interior do comboio parecia</p><p>mais um autocarro do que o Expresso do Oriente, repleto de tecidos</p><p>resistentes em cores pensadas para disfarçar as nódoas, e acessórios de</p><p>plástico cinzento. A pior parte, além dos outros passageiros – meu Deus,</p><p>a ralé anda por todo o lado hoje em dia, e comem e bebem em público</p><p>sem qualquer inibição – fora o barulho incessante dos altifalantes.</p><p>Parecia que de cinco em cinco minutos o mítico maquinista estava a</p><p>emitir um aviso, partilhando connosco maravilhas de sagacidade como:</p><p>«Os artigos maiores devem ser colocados nos suportes por cima dos</p><p>bancos»; ou «Os passageiros devem chamar a atenção dos funcionários</p><p>para quaisquer artigos abandonados o mais depressa possível.» Perguntei</p><p>a mim própria a quem seriam dirigidas estas pérolas de sabedoria: a</p><p>algum extraterrestre de passagem, talvez, ou a um pastor de iaques de</p><p>Ulan Bator que atravessara as estepes, navegara pelo Mar do Norte e</p><p>dera por si no comboio de Glasgow para Edimburgo sem qualquer</p><p>experiência anterior em transportes mecanizados.</p><p>O conjunto das ocasiões especiais estava, apercebi-me, um pouco</p><p>desatualizado. O amarelo-limão não era uma cor que me ficasse</p><p>particularmente bem – servia para camisas de dormir, usadas na</p><p>privacidade do quarto, mas não para uma reunião sofisticada. Amanhã</p><p>teria de ir comprar qualquer coisa; podia usar a roupa nova quando fosse</p><p>a um restaurante ou ao teatro com o meu verdadeiro amor, portanto não</p><p>seria um desperdício de dinheiro. Contente com esta decisão, fiz a</p><p>habitual pasta al pesto e ouvi The Archers no rádio. Havia uma história</p><p>rebuscada que envolvia um leiteiro de Glasgow muito pouco convincente</p><p>e não gostei particularmente do episódio. Fiz as minhas abluções e</p><p>instalei-me com um livro sobre ananases. Era surpreendentemente</p><p>interessante. Gosto de ler sobre uma ampla variedade de temas por</p><p>muitas razões, uma das quais é ampliar o meu vocabulário para ajudar a</p><p>resolver as palavras-cruzadas. Depois o silêncio foi rudemente</p><p>interrompido.</p><p>– Estou? – atendi, com alguma hesitação.</p><p>– Oh, então é «estou»? «Estou»… é tudo o que me tens a dizer? E</p><p>onde diabo estavas a noite passada, minha menina? Hum? – Ela estava</p><p>outra vez a exibir-se para o público.</p><p>– Mamã – disse. – Como estás?</p><p>Esforcei-me para manter a calma.</p><p>– Não te preocupes comigo. Onde é que tu estavas?</p><p>– Desculpa, mamã – pedi, tentando manter o tom de voz nivelado. –</p><p>Estava… com um amigo, a visitar outro amigo. No hospital.</p><p>– Oh, Eleanor – criticou ela, em tom untuoso –, tu não tens amigos,</p><p>querida. Vá lá, diz-me onde estavas mesmo, e desta vez quero a verdade.</p><p>Andaste a fazer alguma malandrice? Conta tudo à mamã, minha linda.</p><p>– Para falar com franqueza, mamã, fui com o Raymond – ouvi-a</p><p>soltar uma fungadela desdenhosa – visitar um senhor de idade muito</p><p>simpático ao hospital. Ele caiu na rua e nós ajudámo-lo, e…</p><p>– FECHA JÁ ESSA BOCA MENTIROSA!</p><p>Encolhi-me; deixei cair o livro e apanhei-o.</p><p>– Sabes o que acontece aos mentirosos, não sabes, Eleanor?</p><p>Lembras-te? – A voz da mamã voltara ao tom delicodoce. – Não</p><p>interessa quão má é a verdade, mas não tolero mentiras, Eleanor. Tu,</p><p>melhor do que ninguém, devias saber disso, mesmo depois deste tempo</p><p>todo.</p><p>– Mamã, lamento que não acredites em mim, mas esta é a verdade. O</p><p>Raymond e eu fomos ao hospital visitar um homem que ajudámos</p><p>quando ele teve um acidente. É verdade, juro!</p><p>– A sério? – questionou ela com sarcasmo. – Ora, que bonito. Não te</p><p>dás ao trabalho de falar com a tua própria mãe, mas passas a noite de</p><p>quarta-feira a visitar um velho desastrado qualquer que não conheces de</p><p>lado nenhum? Muito bem!</p><p>– Por favor, mamã, não vamos discutir. Como estás? Passaste um dia</p><p>bom?</p><p>– Não quero falar sobre mim, Eleanor. Já sei tudo sobre mim. Quero</p><p>falar sobre ti. Como está a correr o teu projeto? Tens alguma novidade</p><p>para a mamã?</p><p>Eu devia saber que a mamã não se esqueceria. O que havia de lhe</p><p>contar? Tudo, se calhar.</p><p>– Fui a casa dele, mamã – comecei. Ouvi o estalido do isqueiro e</p><p>uma expiração prolongada. Quase conseguia sentir o cheiro do fumo do</p><p>seu cigarro Sobranie.</p><p>– Ooooh! – exclamou a mamã. – Interessante. – Inspirou mais uma</p><p>golfada de fumo e expeliu-o com um suspiro. – Quem é esse «ele»?</p><p>– É músico, mamã. – Não queria dizer-lhe ainda o nome dele; dar</p><p>nome às coisas é um poder, e não estava disposta a concedê-lo por</p><p>enquanto; a ouvir aquelas sílabas preciosas na boca dela, que as cuspira</p><p>uma e outra vez. – E é atraente e inteligente e… bom, acho que é o</p><p>homem perfeito para mim, na verdade. Soube-o assim que o vi.</p><p>– Parece tudo maravilhoso, minha querida. E foste a casa dele?</p><p>Conta-me, o que encontraste lá?</p><p>Funguei.</p><p>– Bem, mamã… não estive mesmo… lá dentro. – Isto não ia ser</p><p>fácil. Ela gostava de fazer coisas más e eu não. Era tão simples como</p><p>isso. Falei depressa, na esperança de conseguir evitar as críticas</p><p>inevitáveis. – Só queria dar uma vista de olhos, certificar-me de que ele</p><p>vivia num local ap… apropriado – gaguejei, tropeçando nas palavras</p><p>com a pressa de as pronunciar.</p><p>A mamã suspirou.</p><p>– E como esperas sabê-lo se não entraste? Sempre foste demasiado</p><p>cautelosa e cobarde, minha querida – comentou, em tom enfadado.</p><p>Olhei para as mãos. As unhas verdes pareciam muito berrantes sob</p><p>esta luz.</p><p>– O que tens de fazer, Eleanor – continuou a mamã –, é agarrar no</p><p>touro pelos cornos. Sabes o que quero dizer com isto?</p><p>– Acho que sim – murmurei.</p><p>– Estou simplesmente a avisar-te de que não podes continuar a andar</p><p>com pezinhos de lã à volta do assunto, Eleanor. – Suspirou. – Na vida,</p><p>temos de empreender ações decididas, querida. Fazer o que queremos</p><p>fazer… agarrar aquilo que queremos. Quando queremos acabar com</p><p>alguma coisa, ACABAR. E viver com as consequências.</p><p>Começou a falar baixinho, tão baixo que quase não a conseguia</p><p>ouvir. Sabia por experiência própria que isto não augurava nada de bom.</p><p>– Esse homem… – murmurava a mamã – parece-me que tem</p><p>potencial, mas, como a maioria das pessoas, deve ser fraco. Isso</p><p>significa que tu tens de ser forte, Eleanor. A força conquista a</p><p>fraqueza… é um simples facto da vida, não é?</p><p>– Acho que sim – respondi, amuada, e fiz uma careta. Infantil, eu sei,</p><p>mas a mamã consegue trazer ao de cima o meu lado pior. O músico era</p><p>muito bonito e muito talentoso. Soube, assim que lhe pus os olhos em</p><p>cima, que estávamos destinados a ficar juntos. O destino trataria disso.</p><p>Não precisava de empreender mais… ações decididas, além de garantir</p><p>que os nossos caminhos se voltavam a cruzar. Depois de nos</p><p>conhecermos como deve ser, o resto estava com certeza escrito nas</p><p>estrelas. Suspeitava que a mamã não ficaria contente com esta</p><p>abordagem, mas estava mais do que habituada a isso. Ouvi-a inspirar,</p><p>expirar, e senti a ameaça suave através do éter.</p><p>– Não te distraias, ouviste, Eleanor? Não ignores a mamã. Oh, achas-</p><p>te muito esperta agora, não achas, com o teu emprego e os teus amigos</p><p>novos. Mas não és esperta, Eleanor. És alguém que está sempre a</p><p>desiludir os outros. Alguém em quem não se pode confiar. Alguém que</p><p>falha. Oh, sim, eu sei exatamente o que tu és. E sei como vais acabar.</p><p>Ouve, o passado não morreu. O passado é uma coisa viva. Essas tuas</p><p>cicatrizes encantadoras… são do passado, não são? E, contudo, ainda</p><p>vivem nessa tua carinha vulgar. Ainda te doem?</p><p>Abanei a cabeça, mas não falei.</p><p>– Oh, doem, sim… Eu sei que sim. Lembra-te de como as arranjaste,</p><p>Eleanor. Valeu a pena? Por ela? Oh, ainda tens espaço na outra face para</p><p>um bocadinho mais de dor, não tens? Dá a outra face à tua mamã,</p><p>Eleanor, linda menina.</p><p>E depois, apenas silêncio.</p><p>13</p><p>No autocarro para o trabalho, na sexta-feira, senti-me estranhamente</p><p>calma. Não bebera vodca depois da conversa com a mamã, mas só</p><p>porque não tinha nenhuma garrafa em casa e não queria sair sozinha, de</p><p>noite, para a comprar. Sempre sozinha, sempre na escuridão. Assim, em</p><p>vez disso, fizera uma chávena de chá e lera o meu livro, distraída de vez</p><p>em quando pelo verde-vivo das unhas quando virava a página. Estava</p><p>farta da fruta tropical e precisava de algo mais relacionado com questões</p><p>do coração. Sensibilidade e Bom Senso. É outro dos meus favoritos: um</p><p>dos cinco primeiros da lista, sem dúvida. Adoro a história de Elinor e</p><p>Marianne, a forma como se desenrola de forma tão cuidadosa. Acaba</p><p>tudo bem, o que é deveras irrealista mas, tenho de admitir, satisfatório</p><p>em termos narrativos, e compreendo por que motivo a menina Austen</p><p>aderiu a essa convenção. Curiosamente, apesar dos meus gostos</p><p>literários ecléticos, não encontrei muitas heroínas chamadas Eleanor, em</p><p>qualquer uma das suas variantes ortográficas. Talvez seja por isso que o</p><p>nome foi escolhido para mim.</p><p>Após alguns capítulos familiares, deitei-me, mas não preguei olho.</p><p>Contudo, uma noite sem repouso parecia não ter tido quaisquer efeitos</p><p>negativos e, de forma algo surpreendente, sentia-me alerta e animada</p><p>enquanto o autocarro avançava entre o tráfego matinal. Talvez fosse uma</p><p>daquelas pessoas, como a baronesa Thatcher, que simplesmente não</p><p>precisam de dormir. Peguei num jornal gratuito que alguém deixara no</p><p>banco do autocarro e folheei-o. Uma mulher cor de laranja de quem</p><p>nunca ouvira falar tinha casado pela oitava vez. Um panda em cativeiro,</p><p>ao que parecia, «reabsorvera» o seu próprio feto, interrompendo assim a</p><p>gravidez – olhei pela janela por um instante e, sem sucesso, tentei</p><p>compreender o sistema reprodutor dos ursos pandas – e, na página dez,</p><p>tinham sido descobertas provas de abuso e maus-tratos sistemáticos e</p><p>disseminados numa série de lares de acolhimento para crianças. Era esta</p><p>a ordem das notícias relatadas.</p><p>Abanei a cabeça e estava prestes a pôr o jornal de lado quando um</p><p>pequeno anúncio me chamou a atenção. The Cuttings, publicitava, com</p><p>o logótipo de um comboio a acelerar pela linha. Reparei nele porque a</p><p>resposta ao doze horizontal das palavras-cruzadas de ontem fora</p><p>Shinkansen, o comboio japonês de alta velocidade. Estas pequenas</p><p>coincidências conseguem tornar a vida mais interessante. Olhei para o</p><p>conteúdo do anúncio, que parecia ser o calendário de eventos próximos</p><p>no estabelecimento em questão. Ensanduichado entre dois artistas de</p><p>quem nunca ouvira falar estava o programa de sexta-feira. Esta noite.</p><p>Havia o nome de uma banda – como é óbvio, nunca ouvira falar</p><p>deles – e depois, em letra mais pequena, o músico! Com o choque até</p><p>deixei cair o jornal! Por sorte, ninguém reparou. Apanhei o jornal e</p><p>rasguei o anúncio, dobrando-o com cuidado e guardando-o no bolso</p><p>interior da mala. Era a oportunidade de que estava à espera. Escrita nas</p><p>estrelas, transmitida pelo Destino. Este autocarro, esta manhã… e esta</p><p>noite.</p><p>Quando cheguei ao escritório fui investigar o local. Parecia que ele</p><p>tocava às oito da noite. Tinha de ir comprar a roupa para a festa – e</p><p>agora para o concerto – depois do trabalho, o que não me deixava muito</p><p>tempo. A julgar pelo website, o The Cuttings parecia ser o tipo de lugar</p><p>onde uma pessoa se sentiria mais confortável se estivesse vestida de</p><p>forma elegante. Como, então, conseguiria lá estar às oito, e pronta? Para</p><p>o conhecer? Seria demasiado cedo? Deveria esperar até outra altura,</p><p>para me poder preparar como deve ser? Lera algures que só temos uma</p><p>oportunidade de causar uma boa primeira impressão – na altura,</p><p>considerara a frase uma banalidade, mas talvez contivesse alguma</p><p>verdade. Se o músico e eu íamos ser um casal, o nosso primeiro</p><p>encontro tinha de ser memorável.</p><p>Acenei, decidida. Iria às compras logo depois de sair do trabalho,</p><p>compraria uma roupa nova e usá-la-ia no concerto. Oh, Eleanor, não</p><p>pode ser tão fácil, pois não? Sabia por experiência própria que a vida</p><p>nunca era assim tão simples, por isso tentei antecipar quaisquer</p><p>potenciais problemas e a melhor reação possível aos mesmos. O que</p><p>faria com as roupas que usava neste momento? A resposta ocorreu-me</p><p>logo: a minha mala era bastante grande, caberiam lá dentro. E quanto ao</p><p>jantar? Não sou mulher que funcione bem de estômago vazio, e seria</p><p>embaraçoso desmaiar aos pés dele por outro motivo além de excesso de</p><p>emoção. Bom, não podia comprar alguma comida num café depois do</p><p>trabalho e mesmo assim conseguir chegar ao The Cuttings a um quarto</p><p>para as oito? Sim, podia. Isso dar-me-ia tempo mais do que suficiente</p><p>para escolher um lugar à frente de modo a ter a melhor visão possível. A</p><p>minha visão dele e a visão dele de mim, claro. Todos os problemas</p><p>resolvidos.</p><p>Não resisti a dar uma espreitadela online para ver se ele estava tão</p><p>entusiasmado como eu em relação a esta noite. Ah, obrigada, Twitter!</p><p>@johnnieLrocks</p><p>Soundcheck: feito. Corte de cabelo: feito.</p><p>Mexam esses rabos gordos até ao The Cuttings</p><p>esta noite, meus fdp.</p><p>#vaiseremgrande #soumesmogiro</p><p>Um homem de poucas palavras. Tive de procurar «fdp» no Google e</p><p>devo confessar que fiquei um pouquinho alarmada com os resultados da</p><p>busca. Mas o que sabia eu sobre a vida louca das estrelas de rock?</p><p>Usavam um calão desconhecido que ele me ensinaria com o tempo, com</p><p>certeza. Talvez as lições começassem esta noite? Custava-me a acreditar</p><p>que, dentro de poucas horas, estaria na presença dele. Ah, o frémito da</p><p>antecipação!</p><p>Tinha na mala uma missiva para ele que ainda não enviara. Mais um</p><p>sinal de que o destino me sorria hoje. No princípio da semana, copiara</p><p>um poema que sempre adorei, com uma esferográfica Bic. Que milagre</p><p>de engenharia com uma excelente relação preço-eficácia é este</p><p>instrumento! Selecionei o postal com muito cuidado: era branco e, na</p><p>parte da frente, tinha a gravura de uma lebre encantadora – orelhas</p><p>compridas, pernas fortes e um rosto surpreendentemente assertivo.</p><p>Estava a olhar para cima, para a lua e as estrelas, com uma expressão</p><p>inescrutável.</p><p>Os postais são escandalosamente caros, tendo em conta que não</p><p>passam de um pequeno pedaço de cartolina impressa. Bom, trazem</p><p>também o envelope, mas mesmo assim. Uma pessoa que ganhe o salário</p><p>mínimo teria de trabalhar quase meia hora para poder comprar um</p><p>postal bonito e um selo. Isto foi uma revelação para mim, pois nunca</p><p>enviei um postal a ninguém. Porém, agora que o ia ver esta noite, não</p><p>teria de gastar o selo. Podia entregar-lhe o meu humilde presente em</p><p>mão.</p><p>O poema, de Emily Dickinson, é lindo e chama-se Noites Loucas –</p><p>Noites Loucas!; combina dois elementos pelos quais tenho uma</p><p>apreciação tremenda: pontuação e o tema de encontrar, finalmente, uma</p><p>alma gémea.</p><p>Li o poema outra vez, lambi a cola do envelope com cuidado – era</p><p>deliciosamente amarga – e depois escrevi o nome dele na parte da frente</p><p>com a minha melhor caligrafia. Hesitei antes de o guardar na mala. Seria</p><p>esta a melhor noite para poesia? A minha relutância era estranha; o</p><p>postal estava comprado e pago, afinal de contas. Contudo, questionei se</p><p>não seria melhor esperar para ver o que acontecia no concerto antes de</p><p>elevar as coisas ao nível epistolar. Não havia necessidade de ser</p><p>imprudente.</p><p>As cinco horas demoraram uma eternidade a chegar. Apanhei o</p><p>metropolitano até à cidade, por ser mais rápido, e entrei nos grandes</p><p>armazéns mais perto da estação, os mesmos onde comprara o meu</p><p>computador. Eram cinco e vinte e as lojas fechavam daí a menos de uma</p><p>hora. A roupa de mulher ficava no primeiro andar (quando é que tinham</p><p>deixado de dizer «roupa de senhora» para lhe chamar «roupa de</p><p>mulher»?) e subi nas escadas rolantes, já que não conseguia encontrar as</p><p>escadas normais. Era um espaço muito grande e decidi pedir ajuda. A</p><p>primeira mulher que vi era corpulenta e de meia-idade e não parecia</p><p>qualificada para dar conselhos de moda. A segunda devia</p><p>ter à volta de</p><p>vinte anos e, portanto, era demasiado imatura para me aconselhar. A</p><p>terceira, a fazer lembrar a história da Caracóis Dourados, era perfeita –</p><p>mais ou menos da minha idade, bem arranjada, com ar sensato. Abordei-</p><p>a com cautela.</p><p>– Peço desculpa, posso pedir-lhe ajuda? – perguntei.</p><p>Ela parou de dobrar camisolas e virou-se para mim com um sorriso</p><p>pouco sincero.</p><p>– Vou assistir a um concerto num lugar elegante e gostaria de saber</p><p>se pode ajudar-me a selecionar uma indumentária adequada.</p><p>O sorriso dela abriu-se e pareceu tornar-se mais genuíno.</p><p>– Bom, temos um serviço de aconselhamento de compras</p><p>personalizado – informou. – Posso fazer uma marcação para si, se</p><p>desejar.</p><p>– Oh, não – respondi. – É para esta noite. Infelizmente, preciso</p><p>mesmo de alguma coisa agora.</p><p>Ela mirou-me de alto a baixo.</p><p>– Qual é o local?</p><p>– O The Cuttings – anunciei, com orgulho. Ela franziu os lábios e</p><p>acenou devagar com a cabeça.</p><p>– Veste o quarenta, não é?</p><p>Assenti, impressionada por ela ter conseguido calcular o meu</p><p>tamanho tão bem apenas com uma olhadela. Vi-a consultar o relógio.</p><p>– Siga-me – pediu.</p><p>Parecia haver uma variedade de lojas dentro dos grandes armazéns, e</p><p>ela levou-me à zona que menos me atraía.</p><p>– Bom, assim de repente – indicou –, estas… – um par de calças de</p><p>ganga pretas ridiculamente justas – … com isto – uma camisola preta,</p><p>parecida com uma t-shirt mas a imitar seda, com um buraco nas costas.</p><p>– A sério? – perguntei. – Estava mais a pensar num vestido bonito,</p><p>ou uma saia e blusa. – Ela mirou-me de novo de alto a baixo.</p><p>– Confie em mim – retorquiu.</p><p>O gabinete de provas era pequeno e cheirava a pés sujos e a</p><p>ambientador. As calças pareciam demasiado pequenas mas, como que</p><p>por milagre, esticaram-se à volta do meu corpo e consegui abotoá-las. A</p><p>camisola era larga, com gola subida. Sentia-me adequadamente tapada,</p><p>pelo menos, embora não conseguisse ver a parte aberta nas costas.</p><p>Estava exatamente igual a todas as outras pessoas. Era esse o objetivo,</p><p>presumi. Tirei as etiquetas da roupa e pousei-as no chão, depois dobrei a</p><p>roupa do trabalho e enfiei-a na mala. Peguei nas etiquetas para a</p><p>empregada passar na caixa registadora.</p><p>Ela estava à espera do lado de fora do gabinete.</p><p>– O que acha? – perguntou. – Fica bem, não fica?</p><p>– Vou levá-las – informei, entregando-lhe as etiquetas com os</p><p>códigos de barras.</p><p>Contudo, esquecera-me dos alarmes presos às roupas, e tivemos</p><p>alguma dificuldade em removê-los. Acabei por ter de passar para trás do</p><p>balcão e ajoelhar-me ao lado dela, inclinada para trás, para que os</p><p>conseguisse tirar com o aparelho magnético preso ao balcão. Na</p><p>verdade, ainda nos rimos com a situação. Acho que nunca me tinha rido</p><p>numa loja. Depois de pagar, tentando não pensar muito no dinheiro que</p><p>gastara, a funcionária saiu de trás do balcão.</p><p>– Importa-se que lhe diga uma coisa? É que… os sapatos.</p><p>Olhei para baixo. Tinha os meus sapatos de trabalho pretos, rasos,</p><p>confortáveis, com fechos de Velcro.</p><p>– Como se chama? – perguntou-me. Fiquei estupefacta. Em que</p><p>medida o meu nome era relevante para a aquisição de calçado? Ela</p><p>estava à espera de uma resposta.</p><p>– Eleanor – admiti, com grande relutância, depois de considerar a</p><p>hipótese de lhe dar um nome falso ou uma alcunha. De certeza que não</p><p>lhe ia dizer o meu apelido.</p><p>– O problema, Eleanor, é que com essas calças justas precisa mesmo</p><p>de uns botins – declarou, tão séria como se fosse uma médica a dar</p><p>conselhos de saúde. – Quer vir dar uma vista de olhos na secção de</p><p>calçado? – Hesitei. – Não ganho comissão, nem nada – acrescentou</p><p>calmamente. – Só que… acho mesmo que o conjunto ficaria mais</p><p>completo se tivesse os sapatos certos.</p><p>– Os acessórios é que fazem a mulher, não é? – comentei. Ela não</p><p>sorriu.</p><p>Mostrou-me umas botas que me fizeram rir de tão ridículas que</p><p>eram, tanto na altura do salto como na estreiteza à frente. Por fim,</p><p>concordámos num par que era suficientemente elegante, mas com o qual</p><p>eu conseguia andar sem correr o risco de fazer uma lesão na coluna,</p><p>satisfazendo assim as exigências de ambas. Sessenta e cinco libras! Meu</p><p>Deus, pensei, enquanto lhe estendia de novo o cartão, há pessoas que</p><p>vivem uma semana com essa quantia.</p><p>Enfiei os meus sapatos pretos na mala. Vi-a olhar para ela e depois</p><p>virar-se para a secção de malas.</p><p>– Oh, receio que não – apressei-me a dizer. – Esgotei os meus fundos</p><p>disponíveis para já.</p><p>– Enfim – rendeu-se ela –, deixe-a no vestiário e pronto.</p><p>Não percebi o que aquilo significava, mas a carruagem alada do</p><p>tempo aproximava-se a passos largos.</p><p>– Muito obrigada pela sua ajuda, Claire – agradeci, inclinando-me</p><p>para ler o nome na placa que ela tinha ao peito. – Foi muito valiosa.</p><p>– De nada, Eleanor – respondeu. – Uma última coisa: a loja fecha</p><p>daqui a dez minutos, mas se for rápida, ainda consegue ir lá abaixo pôr</p><p>um bocadinho de maquilhagem antes de sair… A secção de beleza fica</p><p>no rés do chão, ao lado da saída. Procure Bobbi Brown e diga-lhe que foi</p><p>a Claire que a mandou.</p><p>E, com estas palavras, afastou-se para esvaziar a caixa dos lucros do</p><p>dia, reforçados pela minha contribuição considerável.</p><p>Pedi para falar com a Bobbi e a mulher no balcão de maquilhagem</p><p>riu-se.</p><p>– Temos aqui uma das boas – comentou para ninguém em particular.</p><p>Havia tantos espelhos que pensei que talvez isso encorajasse as</p><p>pessoas a falarem sozinhas.</p><p>– Sente-se aqui, querida – pediu, apontando para um banco</p><p>ridiculamente alto.</p><p>Consegui içar-me para ele, mas não foi um processo muito digno, e</p><p>as botas novas atrapalhavam um bocadinho. Sentei-me em cima das</p><p>mãos, para as esconder – a pele vermelha e irritada parecia arder sob as</p><p>luzes fortes, que revelavam cada defeito, cada centímetro danificado.</p><p>Ela afastou-me o cabelo da cara.</p><p>– Muito bem – declarou, inspecionando-me, demasiado perto. –</p><p>Sabe, não há problema nenhum. A Bobbi tem umas bases maravilhosas</p><p>que condizem com qualquer tom de pele. Não posso fazê-la desaparecer,</p><p>mas posso com certeza minimizá-la.</p><p>Perguntei aos meus botões se ela se referiria sempre a si própria na</p><p>terceira pessoa.</p><p>– Está a falar da minha cara? – perguntei.</p><p>– Não, palerma, da cicatriz. A sua cara é ótima. Tem uma pele muito</p><p>boa, sabe? Agora veja isto. – Tinha um cinto de ferramentas à cintura,</p><p>como um canalizador ou um carpinteiro, e trabalhou com a ponta da</p><p>língua a espreitar ao canto da boca. – Só temos dez minutos até a loja</p><p>fechar – lembrou –, por isso vou concentrar-me em camuflagem e nos</p><p>olhos. Gosta do olho esfumado?</p><p>– Não gosto de nada que tenha a ver com fumo – respondi e,</p><p>curiosamente, ela riu-se outra vez. Que mulher tão estranha.</p><p>– Vai ver… – disse ela, empurrando-me a cabeça para trás e,</p><p>pedindo-me para olhar para cima, para baixo, para o lado… Estava</p><p>constantemente a tocar-me com vários instrumentos diferentes, e</p><p>encontrava-se tão perto que eu conseguia sentir o cheiro a menta da sua</p><p>pastilha elástica, que não conseguia esconder completamente o aroma do</p><p>café que bebera antes.</p><p>Por fim, ouviu-se uma sineta e ela praguejou. O altifalante anunciou</p><p>que a loja estava fechada.</p><p>– Acabou-se o tempo, receio – disse, recuando para admirar o seu</p><p>trabalho. Passou-me um espelho de mão. Mal me reconheci. A cicatriz</p><p>quase não se via, e os meus olhos estavam fortemente delineados com</p><p>algo cinzento-escuro, fazendo-me lembrar um programa que vira há</p><p>pouco tempo sobre lémures. Tinha os lábios pintados da cor de papoilas.</p><p>– Então? – perguntou ela. – O que acha?</p><p>– Pareço um pequeno primata de Madagáscar, ou talvez um</p><p>guaxinim norte-americano – respondi. – É muito bonito!</p><p>Bobbi riu-se tanto que teve de cruzar as pernas, e enxotou-me da</p><p>cadeira em direção à porta.</p><p>– Devia tentar vender-lhe os produtos e os pincéis – notou. – Se</p><p>quiser comprar alguma coisa, volte amanhã e pergunte pela Irene!</p><p>Assenti e acenei um adeus. No entanto, quem quer que fosse a Irene,</p><p>havia literalmente mais probabilidades de eu lhe comprar plutónio para</p><p>uma bomba do que maquilhagem.</p><p>14</p><p>O músico devia estar a viver um turbilhão</p><p>os Pilgrim Pioneers… e até nem eram maus de todo – continuou Billy. –</p><p>Tocaram originais e algumas covers também, músicas antigas e</p><p>clássicas.</p><p>– Eu conheço-o… Johnnie Lomond! – exclamou Bernadette. – Era</p><p>do mesmo ano do meu irmão mais velho. Veio a uma festa em nossa</p><p>casa uma vez, quando os meus pais estavam em Tenerife, mais alguns</p><p>amigos do meu irmão. Se bem me lembro, entupiram o lavatório da casa</p><p>de banho…</p><p>Virei costas, pois não queria ouvir falar das loucuras da juventude</p><p>dele.</p><p>– Seja como for – prosseguiu Billy (eu já tinha reparado que ele não</p><p>gostava de ser interrompido) –, ela detestou a banda. Ficou ali sentada,</p><p>paralisada; não se mexeu, não bateu palmas, nada. Assim que acabaram,</p><p>disse que tinha de ir para casa. Nem sequer aguentou até ao intervalo e</p><p>tive de ficar ali sentado sozinho o resto do concerto, literalmente</p><p>abandonado.</p><p>– Que pena, Billy… Sei que querias levá-la a beber um copo depois;</p><p>talvez até dar um pezinho de dança – escarneceu Loretta, dando-lhe uma</p><p>cotovelada.</p><p>– Muito engraçadinha, Loretta. Não, ela desapareceu num tiro. Já</p><p>devia estar enfiada na cama, com uma caneca de cacau e uma revista</p><p>feminina, antes de a banda acabar sequer de tocar.</p><p>– Oh, não sei porquê, mas não me parece que ela leia revistas</p><p>femininas – notou Janey. – Deve preferir coisas muito mais esquisitas,</p><p>muito mais estranhas. Sobre pesca? Autocaravanas?</p><p>– Não, cavalos – declarou Billy em tom firme –, e é assinante.</p><p>Todos se riram.</p><p>Na verdade, eu própria me ri desta.</p><p>Não estava à espera de que isto acontecesse ontem à noite, nem</p><p>pouco mais ou menos. Ainda me atingiu com mais força por esse</p><p>motivo. Sou uma pessoa que gosta de planear as coisas como deve ser,</p><p>de se preparar com tempo e de ser organizada. Isto surgiu do nada; foi</p><p>como uma bofetada, um murro no estômago, uma queimadura.</p><p>Tinha convidado Billy para ir ao concerto comigo porque, como é a</p><p>pessoa mais jovem do escritório, parti do princípio de que gostaria da</p><p>música. Ouvi os outros a meterem-se com ele por causa disso quando</p><p>pensavam que eu estava a almoçar. Eu nunca tinha ouvido falar de</p><p>nenhuma das bandas. Ia apenas por uma noção de dever; ganhara os</p><p>bilhetes nas rifas para caridade e sabia que as pessoas fariam perguntas</p><p>no escritório.</p><p>Beberricámos vinho branco oxidado, quente e de sabor alterado</p><p>pelos copos de plástico em que o pub nos obrigava a beber. Devem achar</p><p>que somos selvagens! Billy insistira em pagar, em agradecimento pelo</p><p>convite. Porém, eu não mantinha qualquer ilusão de que estávamos num</p><p>encontro romântico. Só a ideia era ridícula.</p><p>As luzes baixaram de intensidade. Billy não queria ver as bandas de</p><p>apoio, mas eu fui inflexível. Nunca se sabe se seremos testemunhas do</p><p>nascimento de uma nova estrela, se alguém vai subir ao palco e</p><p>incendiá-lo. E depois ele apareceu. Era luz e calor. Ardia. Tudo aquilo</p><p>em que tocava seria modificado. Inclinei-me para a frente na cadeira,</p><p>aproximando-me do palco. Finalmente. Encontrara-o.</p><p>Agora que o destino desvendara o meu futuro, eu tinha pura e</p><p>simplesmente de saber mais sobre ele; o cantor, a resposta. Antes de</p><p>atacar o horror que era as contas do final do mês, pensei em dar uma</p><p>espreitadela rápida a alguns sites para ver quanto custaria um</p><p>computador. Creio que podia ir ao escritório durante o fim de semana</p><p>para usar um dos computadores do trabalho, mas havia um elevado risco</p><p>de mais alguém aparecer e perguntar-me o que estava ali a fazer. Não</p><p>estaria propriamente a quebrar nenhuma regra, mas ninguém tem nada a</p><p>ver com a minha vida, e não queria ter de explicar ao Bob porque viera</p><p>trabalhar num fim de semana e mesmo assim não conseguira reduzir a</p><p>pilha de faturas à espera de processamento. Além disso, em casa podia ir</p><p>fazendo outras coisas ao mesmo tempo, como praticar os pratos que</p><p>cozinharia no nosso primeiro jantar juntos. Há muitos anos, a mamã</p><p>disse-me que os homens perdem a cabeça por folhados de salsicha. A</p><p>melhor forma de conquistar o coração de um homem, assegurou-me, é</p><p>um folhado de salsicha caseiro, a massa quente e estaladiça, carne de</p><p>boa qualidade. Há anos que não cozinho mais nada a não ser esparguete.</p><p>Nunca fiz um folhado de salsicha. No entanto, não me parece que seja</p><p>assim tão difícil. É apenas massa folhada e carne picada.</p><p>Liguei o computador e introduzi a minha palavra-passe, mas o ecrã</p><p>encravou. Desliguei e voltei a ligar o computador, e desta vez nem</p><p>chegou ao ecrã da palavra-passe. Que chatice! Fui falar com Loretta, a</p><p>gerente do escritório. Loretta tem ideias exageradas sobre as suas</p><p>próprias capacidades administrativas e, no tempo livre, faz joias</p><p>hediondas, que depois vende a idiotas. Informei-a de que o meu</p><p>computador não estava a funcionar e que não conseguia falar com</p><p>Danny da informática.</p><p>– O Danny foi-se embora, Eleanor – declarou Loretta, sem tirar os</p><p>olhos do ecrã. – Agora temos um técnico novo. O Raymond Gibbons?</p><p>Entrou o mês passado? – Disse-o como se eu devesse ter conhecimento.</p><p>Ainda sem erguer os olhos, escreveu o nome e a extensão telefónica num</p><p>Post-it e deu-mo.</p><p>– Muito obrigada, Loretta, foi extremamente prestável, como de</p><p>costume – agradeci-lhe. Como é óbvio, a ironia passou-lhe</p><p>despercebida.</p><p>Liguei para o número e atendeu-me o gravador:</p><p>– Olá, daqui fala o Raymond, mas não fala o Raymond. Como o gato</p><p>de Schrödinger. Deixe uma mensagem após o sinal.</p><p>Abanei a cabeça, indignada, e falei lenta e claramente para o</p><p>gravador.</p><p>– Bom dia, senhor Gibbons. Fala a menina Oliphant, a funcionária</p><p>da contabilidade. O meu computador não está a funcionar e agradecia-</p><p>lhe que arranjasse tempo para o ver ainda hoje. Se precisar de mais</p><p>pormenores, pode encontrar-me na extensão cinco-três-cinco.</p><p>Muitíssimo obrigada.</p><p>Esperava que a minha mensagem clara e concisa lhe servisse de</p><p>exemplo. Esperei dez minutos, arrumando a secretária para passar o</p><p>tempo, mas ele não ligou. Depois de duas horas a arquivar papelada sem</p><p>qualquer comunicação do Sr. Gibbons, decidi ir almoçar mais cedo.</p><p>Passara-me pela cabeça que devia preparar-me fisicamente para um</p><p>potencial encontro com o músico, nomeadamente com alguns</p><p>melhoramentos. Seria melhor uma transformação de dentro para fora, ou</p><p>deveria trabalhar de fora para dentro? Fiz uma lista mental de todo o</p><p>trabalho relacionado com a aparência que tinha a fazer: cabelos (cabeça</p><p>e corpo), unhas (mãos e pés), sobrancelhas, celulite, dentes, cicatrizes…</p><p>Todas estas coisas precisavam de ser atualizadas, realçadas, melhoradas.</p><p>Por fim, decidi começar por fora e trabalhar em direção ao interior –</p><p>afinal de contas, é o que acontece com mais frequência na natureza. A</p><p>muda da pele, o renascimento. Animais, aves e insetos podem fornecer-</p><p>nos revelações muito úteis. Sempre que não tenho a certeza do rumo a</p><p>seguir, penso O que faria um furão? ou Como é que uma salamandra</p><p>reagiria a esta situação? e encontro sempre a resposta certa.</p><p>Todos os dias, a caminho do trabalho, passo pelo salão de beleza</p><p>Julie’s Beauty Basket. Por sorte, tinham uma vaga de última hora.</p><p>Demoraria cerca de vinte minutos, seria atendida por uma Kayla e</p><p>custaria quarenta e cinco libras. Quarenta e cinco! Mas ele merecia-o,</p><p>recordei a mim própria enquanto Kayla me conduzia a uma sala no piso</p><p>de baixo. Tal como as demais funcionárias, Kayla vestia uma bata</p><p>branca que fazia lembrar a do equipamento cirúrgico e calçava socas</p><p>também brancas. Aprovei esta indumentária pseudomédica. Entrámos</p><p>numa sala acanhada e desconfortável, onde mal cabia uma marquesa,</p><p>uma cadeira e uma mesinha.</p><p>– Muito bem – disse ela –, agora tem de despir as suas… – fez uma</p><p>pausa e olhou para a metade inferior do meu corpo – … ah, calças e a</p><p>roupa interior, e subir para a marquesa. Pode ficar nua da cintura para</p><p>baixo ou, se preferir, pode vestir isto. – Pousou um pequeno pacote em</p><p>cima da marquesa. – Tape-se com a toalha e eu volto já, está bem?</p><p>Acenei afirmativamente. Não antecipara tanto veste e despe.</p><p>Depois de a porta se fechar, descalcei-me e despi as calças. Devia</p><p>ficar com as</p><p>de emoções neste</p><p>momento. Um homem tímido, modesto, discreto, que é forçado a atuar</p><p>por causa do seu talento, para o partilhar com o mundo, não porque</p><p>quer, mas porque simplesmente tem de o fazer. Ele canta como um</p><p>pássaro canta; a sua música é uma coisa doce e natural, como a chuva,</p><p>como o Sol, algo que pura e simplesmente existe, perfeito. Pensei nisso</p><p>enquanto comia o meu jantar improvisado. Estava num restaurante de</p><p>fast food pela primeira vez na minha vida adulta, um sítio enorme e</p><p>luminoso ao virar da esquina do local do concerto. Inexplicável e</p><p>incompreensivelmente, o restaurante estava a rebentar pelas costuras.</p><p>Custava-me a perceber por que motivo os humanos estariam dispostos a</p><p>fazer fila em frente de um balcão para comprar comida processada, que</p><p>depois levavam para uma mesa que nem sequer estava posta e comiam</p><p>diretamente do papel de embrulho. E a seguir, apesar de terem pagado,</p><p>os próprios clientes são responsáveis por levantar os restos. Muito</p><p>estranho.</p><p>Depois de alguma reflexão, optei por um quadrado de peixe branco</p><p>indeterminado, panado e frito e inserido dentro de um pão demasiado</p><p>adocicado, acompanhado, estranhamente, por uma fatia de queijo</p><p>processado, uma folha de alface sem vida e uma substância branca,</p><p>pastosa, salgada e acre que raiava a obscenidade. Apesar dos esforços da</p><p>mamã, não sou nenhuma gastrónoma; contudo, com certeza que é uma</p><p>verdade culinária universalmente aceite que peixe não combina com</p><p>queijo, certo? Alguém devia informar o Sr. McDonald. Não havia nada</p><p>que me tentasse na ementa de sobremesas, por isso optei por um café,</p><p>que era amargo e estava morno. Como é óbvio, estava preparada para me</p><p>servir a mim própria, mas, mesmo a tempo, vi o aviso impresso no copo</p><p>de plástico, alertando-me para o facto de os líquidos quentes poderem</p><p>causar queimaduras. Escapaste por pouco, Eleanor, pensei com os meus</p><p>botões, divertida. Começava a desconfiar que o Sr. McDonald era um</p><p>homem muito pouco inteligente, embora, a julgar pelo tamanho</p><p>constante da fila, bastante rico.</p><p>Olhei para o relógio, peguei na mala e vesti o colete. Deixei os restos</p><p>do jantar onde estavam – afinal de contas, de que serve comer fora se</p><p>nós é que temos de levantar a mesa? Assim, mais valia ficar em casa.</p><p>Estava na hora.</p><p>A falha no meu plano, a hamartia, era esta: não havia bilhetes</p><p>disponíveis. O homem na bilheteira até se riu.</p><p>– Está esgotado há alguns dias – informou.</p><p>Expliquei-lhe, lenta e pacientemente, que só queria ver a primeira</p><p>parte, a banda de apoio, e sugeri que podiam deixar entrar mais uma</p><p>pessoa, mas pelos vistos era impossível por causa dos regulamentos</p><p>contra incêndios. Pela segunda vez em poucos dias, senti as lágrimas</p><p>encherem-me os olhos. O homem riu-se outra vez.</p><p>– Não chore, querida – observou. – Para ser franco, eles nem sequer</p><p>são assim tão bons. – Inclinou-se para mim e acrescentou, em tom</p><p>confidencial: – Ajudei o vocalista a descarregar o material do carro, esta</p><p>tarde. Se quer que lhe diga, é um imbecil. Não se pode deixar um</p><p>bocadinho de sucesso subir à cabeça daquela maneira. A simpatia é uma</p><p>cena boa, não acha?</p><p>Acenei, sem perceber de que vocalista estava ele a falar, e afastei-me</p><p>na direção do bar para reorganizar os pensamentos. Não conseguiria</p><p>entrar sem bilhete, isso era óbvio. E não havia bilhetes disponíveis. Pedi</p><p>uma Magners, lembrando-me que, da última vez, queriam que fosse eu a</p><p>servi-la. O empregado media mais de um metro e oitenta e criara uns</p><p>buracos estranhos e enormes nas orelhas com pequenos círculos de</p><p>plástico preto que alargavam a pele. Por algum motivo, fez-me lembrar a</p><p>cortina do duche.</p><p>Este pensamento reconfortante acerca da minha habitação deu-me</p><p>coragem para examinar as tatuagens que lhe cobriam o pescoço e ambos</p><p>os braços. As cores eram muito bonitas, e as imagens, densas e</p><p>complexas. Como era maravilhoso poder ler a pele de alguém, explorar a</p><p>história da sua vida através do peito, dos braços, da pele macia da nuca.</p><p>O empregado de bar tinha rosas e uma clave de sol, uma cruz, o rosto de</p><p>uma mulher… tanto detalhe, tão pouca pele vazia. Ele viu-me a olhar e</p><p>sorriu.</p><p>– Tem alguma?</p><p>Abanei a cabeça, sorri também e dirigi-me a uma mesa com a</p><p>bebida. As palavras dele ecoaram-me na cabeça. Porque é que não tinha</p><p>nenhuma tatuagem? Nunca pensara no assunto, nunca decidira</p><p>conscientemente se devia ou não fazer uma. Quanto mais pensava nisso,</p><p>mais a ideia me atraía. Talvez pudesse fazer uma na cara, algo complexo</p><p>e intrincado que incorporasse a minha cicatriz. Ou, melhor ainda, podia</p><p>fazê-la num sítio secreto. Gostava dessa ideia. No interior da coxa, na</p><p>parte de trás do joelho ou na sola do pé, quem sabe.</p><p>Acabei de beber a Magners e o empregado veio levantar o copo.</p><p>– Outra? – perguntou.</p><p>– Não, obrigada – respondi. – Posso fazer-lhe uma pergunta? – Parei</p><p>de arrancar os restos do verniz verde. – Bom, duas, na verdade.</p><p>Primeira: dói muito? E segunda: quanto custa fazer uma tatuagem? – O</p><p>empregado acenou, como se já estivesse à espera disto.</p><p>– Dói como a porra, não lhe vou mentir – admitiu. – Quanto ao</p><p>preço, depende daquilo que quiser fazer… Há uma grande diferença</p><p>entre escrever «Mãe» no bíceps e fazer um tigre gigantesco nas costas,</p><p>percebe?</p><p>Acenei que sim com a cabeça; fazia todo o sentido.</p><p>– E também há por aí muitos artistas manhosos – avisou,</p><p>entusiasmado com o tema. – Se quiser mesmo fazer uma, vá à loja do</p><p>Barry, em Thornton Street. O Barry é de confiança.</p><p>– Muito obrigada – agradeci. Não esperava este desfecho para a</p><p>minha noite, mas a vida tem esta mania de nos surpreender, às vezes.</p><p>Lá fora, percebi que não valia a pena ficar à espera. O músico iria</p><p>sem dúvida a uma festa glamorosa depois do concerto, para celebrar,</p><p>algum sítio reluzente e pulsante. Neste momento eu só conhecia dois</p><p>locais, o McDonald’s e o bar desagradável que visitara com Raymond, e</p><p>dificilmente uma festa como essa teria lugar em qualquer um dos dois.</p><p>Vá lá, Eleanor, disse a mim própria. Não tinha de acontecer. O</p><p>postal ficaria por entregar na minha mala, até ver. Para me consolar,</p><p>pensei que o encontro, quando por fim acontecesse, seria perfeito, e não</p><p>um exercício irrefletido decidido em cima do joelho num clube musical</p><p>qualquer. Além disso, nessa altura já estaria habituada às botas novas e</p><p>conseguiria caminhar de modo normal. Já estava a ficar farta dos olhares</p><p>que atraía com o meu passo meio coxo.</p><p>@johnnieLrocks</p><p>Se calhar a minha música é de mais para</p><p>algumas pessoas, não? Não vão a concertos se ñ</p><p>aguentam sonoridades novas</p><p>#incompreendido #verdade</p><p>@johnnieLrocks</p><p>Mas acontece a todos os grandes quando começam</p><p>#Dylan #Springsteen #emconcerto</p><p>15</p><p>Acabei por apanhar um táxi para casa. Só depois de entrar me</p><p>lembrei de que não tinha vodca. Limitei-me a ir para a cama. No dia</p><p>seguinte, acordei cedo e decidi ir reabastecer-me à pequena mercearia do</p><p>bairro; a minha rotina habitual fora quebrada pela tentativa falhada de</p><p>conhecer o cantor na véspera. Comprei leite, um pacote de pão e uma</p><p>lata de argolinhas de massa em molho de tomate. Tencionava comprar</p><p>letrinhas mas, por impulso, optei pelas argolinhas. É bom manter a</p><p>mente aberta, apesar de eu saber perfeitamente que as argolinhas e as</p><p>letrinhas sabem ao mesmo. Não sou estúpida.</p><p>O dono da mercearia era um simpático homem do Bangladesh com</p><p>um sinal de nascença interessante. Ao fim destes anos todos já nos</p><p>tratávamos com cordialidade, claro, o que era agradável. Pousei as</p><p>compras no balcão e, enquanto ele as registava, perscrutei as prateleiras</p><p>atrás dele. Por fim, o homem sorriu e anunciou o total.</p><p>– Obrigada – agradeci, e apontei para as prateleiras. – Queria</p><p>também duas garrafas de litro de vodca Glen’s, por favor.</p><p>Ele ergueu as sobrancelhas brevemente e depois retomou a expressão</p><p>impassível.</p><p>– Infelizmente, não posso vender-lhe álcool, menina Oliphant –</p><p>informou, com ar bastante embaraçado. Sorri.</p><p>– Senhor Dewan, fico lisonjeada, ainda que preocupada com o estado</p><p>da sua visão – respondi. – Na verdade,</p><p>acabo de entrar no meu trigésimo</p><p>primeiro ano. – Senti uma pequena bolha de prazer a tremeluzir dentro</p><p>de mim. Bobbi Brown comentara que eu tinha uma pele muito boa (pelo</p><p>menos, as partes que estavam vivas) e agora o Sr. Dewan confundira-me</p><p>com uma adolescente!</p><p>– São nove e dez da manhã – notou ele, em tom seco; uma pequena</p><p>fila começava a formar-se atrás de mim.</p><p>– Sei perfeitamente que horas são – respondi. – Posso ter a ousadia</p><p>de sugerir que aquilo que os clientes escolhem beber ao pequeno-almoço</p><p>não é da sua conta?</p><p>Ele falou tão baixinho que tive de me inclinar para o ouvir.</p><p>– É ilegal vender álcool antes das dez da manhã, menina Oliphant.</p><p>Posso perder a minha licença.</p><p>– A sério? – observei, fascinada. – Não fazia a mais pequena ideia!</p><p>Receio que o meu conhecimento sobre as leis em questão seja</p><p>rudimentar, para dizer o mínimo.</p><p>O Sr. Dewan olhou para mim.</p><p>– São cinco e sessenta e nove – repetiu. Aceitou a minha nota de dez</p><p>libras e deu-me o troco, sempre de olhos firmemente postos no chão.</p><p>Senti uma mudança na nossa relação, até aqui tão cordial, mas não</p><p>percebi porquê. O Sr. Dewan nem sequer se despediu.</p><p>Para meu aborrecimento, isso significava que tinha de voltar a sair</p><p>mais tarde para comprar vodca. Por que raio não podíamos comprar</p><p>bebidas alcoólicas da mesma maneira que comprávamos, por exemplo,</p><p>leite? Ou seja, numa loja qualquer, a qualquer hora que estivesse aberta?</p><p>Ridículo. Suponho que é para garantir que os alcoólicos estão protegidos</p><p>de si próprios pelo menos durante algumas horas por dia; embora,</p><p>racionalmente, tal não faça sentido. Se eu fosse química e</p><p>psicologicamente viciada em álcool, faria questão de ter sempre um</p><p>abastecimento suficiente, comprando em quantidades elevadas e</p><p>armazenando em casa. Era uma lei ilógica; na verdade, qual era a</p><p>diferença entre comprar vodca às nove e dez da manhã ou às dez e dez?</p><p>A vodca é, para mim, apenas uma necessidade doméstica, como o</p><p>pão ou o chá. Principalmente, serve para me ajudar a dormir. Às vezes,</p><p>quando a noite chega, fico ali deitada, às escuras, e não consigo deixar</p><p>de me lembrar; medo e pressão, mas sobretudo medo. Nessas noites, a</p><p>voz da mamã sussurra-me na cabeça e outra voz, uma voz mais pequena</p><p>e tímida, aninha-se perto do meu ouvido, tão perto que consigo sentir-</p><p>lhe a respiração quente e assustada a agitar os pelos minúsculos que</p><p>transmitem o som, tão perto que mal precisa de sussurrar. Essa vozinha</p><p>desfaz-se numa súplica, Eleanor, ajuda-me, por favor, Eleanor… uma e</p><p>outra vez. Nessas noites preciso da vodca; caso contrário, desfaço-me</p><p>também.</p><p>Decidi continuar a andar até ao supermercado, que fica a cerca de</p><p>vinte minutos de caminho. Seria uma utilização mais eficiente do meu</p><p>tempo, pois compraria tudo de uma vez e não precisava de ir a casa e</p><p>voltar a sair. A minha mala estava bastante pesada, por isso pousei-a e</p><p>desdobrei a estrutura que se encontrava num dos compartimentos</p><p>interiores. Montei-a, encaixei a mala e voilá! Um trólei. Fazia um som</p><p>muito pouco harmonioso quando o puxava, mas isso era mais do que</p><p>compensado pela eficácia com que me permitia transportar coisas mais</p><p>pesadas.</p><p>O supermercado em questão tem uma grande variedade de artigos de</p><p>qualidade: não apenas comida e bebidas, mas também torradeiras,</p><p>camisolas, brinquedos e livros. Não é um Tesco Metro, é um Tesco</p><p>Extra. É, em suma, um dos meus locais preferidos em todo o mundo.</p><p>16</p><p>Tesco! Luzes fortes, rótulos claros, «3 pelo preço de 2», «2.ª unidade</p><p>é de graça» e «3 por 5 libras». Levei um carrinho, porque gosto de os</p><p>empurrar. Pus a mala com o suporte de rodinhas no banco das crianças,</p><p>o que me obstruía um pouco a visão, mas tornava a expedição mais</p><p>divertida. Não fui logo buscar a vodca; em vez disso, percorri cada</p><p>corredor, começando no piso de cima, na secção de artigos elétricos, e</p><p>depois, cá em baixo, passeei-me com calma entre tampões e fertilizante</p><p>e cuscuz Ainsley Harriot’s Spice Sensation.</p><p>Deambulei até à padaria e estaquei junto do pão acabado de sair do</p><p>forno, sem querer acreditar no que via. O músico! Como sou abençoada</p><p>por viver numa cidade compacta, onde as vidas podem cruzar-se com</p><p>tanta facilidade. Ah, mas quem sabe se foi mesmo acidental? Tal como</p><p>já mencionei, as maquinações do Destino estão muitas vezes para além</p><p>do entendimento humano, e talvez houvesse aqui em movimento forças</p><p>superiores, a lançarem-nos no caminho um do outro nas circunstâncias</p><p>mais improváveis. Impelida pelo Destino, senti-me como uma heroína de</p><p>Thomas Hardy (embora suplicasse silenciosa e fervorosamente ao</p><p>Destino para não engendrar qualquer encontro nas imediações de</p><p>ovelhas explosivas).</p><p>Sem tirar os olhos do músico, encolhi-me atrás da mala no</p><p>banquinho das crianças e empurrei devagar o carrinho na direção dele.</p><p>Aproximei-me o mais que me atrevi. O músico parecia cansado e pálido,</p><p>mas ainda atraente, embora de um modo descontraído e rude. Vi-o atirar</p><p>um saco de pão fatiado para o cesto e afastar-se na direção do talho.</p><p>Mais uma vez, dei por mim em desvantagem. Não estava fisicamente</p><p>preparada para me apresentar, encontrando-me um pouco menos do que</p><p>soignée a esta hora num fim de semana, e não tinha a roupa nova nem as</p><p>botas. Sequer preparara uma introdução para a conversa. Também não</p><p>tinha o postal na mala para lhe entregar. Lição: estar sempre preparada.</p><p>Decidi que seria sensato deixar de o seguir, apesar da minha</p><p>curiosidade esmagadora sobre o que ele compraria, pois temia que o</p><p>meu carrinho dentro de um carrinho desse nas vistas. Em vez disso,</p><p>dirigi-me à secção de bebidas alcoólicas e comprei três garrafas grandes</p><p>de vodca boa. Só tencionava comprar duas garrafas de Glen’s, mas a</p><p>promoção de Smirnoff era demasiado tentadora. Oh, Sr. Tesco, nunca</p><p>consigo resistir às suas maravilhosas pechinchas!</p><p>Por sorte, o músico estava na fila para a caixa quando eu lá cheguei.</p><p>Tinha uma pessoa atrás, por isso refugiei-me na mesma fila, com esta</p><p>proteção conveniente entre nós os dois. Que seleção de compras tão bem</p><p>feita! Ovos, bacon, sumo de laranja («com polpa» – polpa de quê?) e</p><p>comprimidos de Nurofen. Tive de fazer um esforço para não me inclinar</p><p>para a frente e explicar-lhe que estava a deitar dinheiro fora – esta marca</p><p>de medicamento anti-inflamatório não-esteroide era, na verdade, apenas</p><p>ibuprofeno 200mg, cujo genérico se vendia por talvez um quarto do</p><p>preço. Mas não podia ser essa a minha abertura de conversa. Precisava</p><p>de algo mais sedutor, mais memorável, para a nossa primeira troca de</p><p>palavras.</p><p>Ele tirou do bolso uma carteira de pele usada e pagou com cartão de</p><p>crédito, embora eu tenha reparado que o total era inferior a oito libras.</p><p>Suponho que, como os membros da família real, seja demasiado</p><p>importante para andar com dinheiro. Durante a sua interação com a</p><p>caixa – uma mulher de meia-idade que, estranhamente, parecia</p><p>indiferente ao charme óbvio do homem atraente que tinha à frente –</p><p>reparei noutra oportunidade perdida. Desta vez, não resisti. Peguei no</p><p>telemóvel novo, acedi à minha conta de Twitter por inaugurar e esperei</p><p>até ele pagar e sair da loja. Depois escrevi rapidamente e carreguei em</p><p>«Enviar».</p><p>@eloliph</p><p>O Cartão de Fidelidade da Tesco é uma</p><p>maravilha e uma eterna fonte de alegria. Devia</p><p>MESMO pedir um. Uma amiga preocupada. Bjs</p><p>@johnnieLrocks</p><p>Tesco: parem de impingir cartões de</p><p>espião/fidelidade à Big Brother. É como viver num</p><p>estado policial</p><p>#ressaca #deixemmeempaz #combateropoder</p><p>17</p><p>Claro que já sabia que não vivíamos muito longe um do outro, mas</p><p>não me ocorrera que as nossas vidas se poderiam cruzar de forma</p><p>inesperada. Por vezes, Glasgow parece mais uma aldeia do que uma</p><p>cidade. Portanto, partilhávamos o amor pelo Tesco. Não admirava.</p><p>Perguntei a mim própria em que outras áreas as nossas existências se</p><p>sobreporiam. Talvez frequentássemos a mesma estação de correios, por</p><p>exemplo, ou aviássemos as nossas receitas na mesma farmácia? Refleti</p><p>de novo na importância de estar preparada para um encontro a qualquer</p><p>altura,</p><p>de estar sempre no meu melhor e de ter algo apropriado para</p><p>dizer. Ia precisar de mais do que um conjunto de roupa.</p><p>A festa de regresso a casa de Sammy era hoje, às sete, e Raymond</p><p>oferecera-se para se encontrar comigo perto da residência de Laura.</p><p>Primeiro, pensei que estava a ser surpreendentemente atencioso, o que</p><p>não era muito característico dele, mas depois percebi que, na verdade,</p><p>não queria era chegar sozinho. Há pessoas, as mais fracas, que temem a</p><p>solidão. O que não compreendem é que há nela algo de muito libertador;</p><p>assim que percebemos que não precisamos de ninguém, podemos cuidar</p><p>de nós próprios. É precisamente essa a questão: é melhor cuidarmos só</p><p>de nós próprios. Não podemos proteger as outras pessoas, por mais que</p><p>tentemos. Tentamos, e falhamos, e o mundo desmorona-se à nossa volta,</p><p>reduzindo-se a cinzas.</p><p>Dito isto, às vezes perguntava a mim própria como seria ter alguém –</p><p>um primo, por exemplo, ou um irmão – a quem recorrer em alturas de</p><p>necessidade, ou mesmo com quem passar algum tempo. Alguém que me</p><p>conhecesse, que gostasse de mim, que quisesse o melhor para mim.</p><p>Infelizmente, uma planta, por mais bonita e resistente que seja, não</p><p>preenche bem todos esses requisitos. Contudo, de nada servia especular.</p><p>Não tinha ninguém e era inútil desejar que fosse de outra maneira.</p><p>Afinal de contas, tinha o que merecia. E, na verdade, eu estava bem,</p><p>muito bem, mais do que bem. Afinal de contas, não estava aqui, no</p><p>mundo, a caminho de uma festa? Vestida com as minhas melhores</p><p>roupas, à espera de um conhecido? Atenção, sábado à noite, aí vem a</p><p>Eleanor Oliphant! Achei que merecia um pequeno sorriso.</p><p>No fim, tive de esperar vinte e cinco minutos por Raymond, o que</p><p>azedou um pouco a minha boa disposição. Acho a falta de pontualidade</p><p>de uma extrema má-criação; é uma grande falta de respeito, pois sugere,</p><p>sem margem para dúvidas, que a pessoa se considera, a si própria e ao</p><p>seu tempo, mais valiosa do que os outros. Raymond saiu de um táxi às</p><p>sete e um quarto, precisamente quando eu estava a preparar-me para me</p><p>ir embora.</p><p>– Viva, Eleanor! – cumprimentou-me, muito animado. Trazia na mão</p><p>um saco de compras e um ramo de cravos baratos. Laura dera-nos</p><p>instruções específicas para não trazermos nada. Porque é que ele</p><p>ignorara o pedido?</p><p>– Raymond, o convite era para as sete horas – lembrei. –</p><p>Combinámos encontrar-nos aqui às dez para as sete e agora, por causa</p><p>da sua falta de pontualidade, estamos atrasadíssimos. É uma enorme e</p><p>injustificada falta de respeito para com a anfitriã!</p><p>Mal conseguia olhar para ele. Inexplicavelmente, Raymond riu-se.</p><p>– Calma, Eleanor! – exclamou.</p><p>Com fraqueza! Pedir-me para ter calma!</p><p>– Ninguém chega a horas às festas. Acredite que isso é uma falta de</p><p>educação maior do que aparecer um quarto de hora atrasado. – Mirou-</p><p>me de cima a baixo. – Está bonita – elogiou. – Diferente…</p><p>Não gostei da tentativa óbvia de mudar de assunto.</p><p>– Vamos? – perguntei, em tom seco. Ele caminhou ao meu lado, a</p><p>fumar, como de costume.</p><p>– Eleanor, a sério, não se preocupe – insistiu. – Quando as pessoas</p><p>dizem sete horas, isso significa, no mínimo, sete e meia. Se calhar</p><p>vamos ser os primeiros a chegar!</p><p>Fiquei surpreendida.</p><p>– Mas porquê? – questionei. – Porque hão de dizer uma hora se</p><p>querem dizer outra completamente diferente? E como é que uma pessoa</p><p>há de adivinhar?</p><p>Raymond apagou o cigarro e atirou-o para a sarjeta. Inclinou a</p><p>cabeça com ar pensativo.</p><p>– Agora que me fala nisso, não sei bem como é que sei – admitiu. –</p><p>Simplesmente é assim. – Refletiu um pouco mais. – Sabe como é: por</p><p>exemplo, quando convida pessoas para sua casa e lhes diz que venham</p><p>às oito, e é quase um pesadelo se… se alguém aparece mesmo às oito,</p><p>porque ainda não está pronta, ou não teve tempo de arrumar tudo, ou de</p><p>levar o lixo para a rua, seja o que for. É quase… passivo-agressivo se</p><p>alguém chega mesmo a horas ou… pior ainda, antes da hora. Sabe a que</p><p>me refiro?</p><p>– Não faço a mais pequena ideia – respondi. – Se eu convidasse</p><p>pessoas e lhes pedisse para virem às oito horas, estaria pronta para as</p><p>receber às oito. De outra forma, é só má gestão do tempo.</p><p>Raymond encolheu os ombros. Não fizera qualquer esforço para se</p><p>vestir bem para a festa, e trazia o habitual uniforme de ténis (verdes) e</p><p>uma t-shirt. Nesta podia ler-se Carcetti para Presidente.</p><p>Incompreensível. Vestia um blusão de ganga num tom mais claro do que</p><p>as calças, que eram do mesmo material. Nunca me ocorrera que podia</p><p>haver fatos feitos de ganga, mas ali estava.</p><p>A casa de Laura ficava ao fundo de uma rua sem saída de casas</p><p>pequenas e modernas. Havia vários carros à entrada. Dirigimo-nos à</p><p>porta e reparei que ela tinha gerânios vermelhos em canteiros nas</p><p>janelas. Os gerânios incomodam-me um pouco; aquele aroma denso e</p><p>peganhento quando roçamos neles, um cheiro estagnado e vegetal que é</p><p>o oposto de floral.</p><p>Raymond tocou à campainha, que entoou os primeiros acordes da</p><p>Terceira Sinfonia de Beethoven. Um menino muito pequeno, com a cara</p><p>suja de algo que, esperava eu, era chocolate, abriu e olhou para nós.</p><p>Devolvi o olhar. Raymond inclinou-se.</p><p>– Estás bom? – perguntou. – Viemos ver o teu avô.</p><p>O menino continuou a olhar para nós com ar pouco entusiasmado.</p><p>– Tenho sapatos novos – disse, por fim, a propósito de nada. Nesse</p><p>momento, Laura apareceu atrás dele no corredor. – Tia Laura – chamou</p><p>a criança sem se virar, com ar claramente pouco impressionado –, são</p><p>mais pessoas para a festa.</p><p>– Estou a ver, Tyler – respondeu Laura. – E se fosses procurar o teu</p><p>irmão? Vejam se conseguem encher mais alguns balões, está bem? – Ele</p><p>assentiu com um aceno e desapareceu a correr pelas escadas acima. –</p><p>Entrem – convidou, com um sorriso para Raymond. – O meu pai vai</p><p>ficar contente de vos ver. – Não me dirigiu qualquer sorriso, o que é</p><p>normal na maior parte das interações que tenho com outras pessoas.</p><p>Raymond limpou muito bem os pés no tapete antes de entrar. Fiz o</p><p>mesmo. De facto, era algo inesperado estar a seguir o exemplo de</p><p>Raymond em termos de comportamento social.</p><p>Ele entregou as flores e o saco, dentro do qual ouvi vidro a tilintar, e</p><p>Laura pareceu ficar satisfeita. Percebi que, apesar do seu pedido no</p><p>hospital, devia ter trazido também qualquer coisa. Ia começar a explicar</p><p>a razão pela qual não o fizera mas, antes que conseguisse abrir a boca,</p><p>Raymond disse:</p><p>– É da parte de nós os dois.</p><p>Laura espreitou para dentro do saco – rezei para que não fosse outra</p><p>vez gomas e Pringles – e agradeceu-nos. Inclinei a cabeça em</p><p>reconhecimento.</p><p>Fomos conduzidos à sala, onde Sammy se encontrava com a família.</p><p>Havia música pop banal a tocar e uma mesa baixa coberta de taças com</p><p>aperitivos em tons de bege. Laura trazia um vestido enrolado à volta do</p><p>corpo, como ligaduras pretas, e estava equilibrada em sapatos de salto</p><p>alto com uma plataforma de quatro centímetros. O cabelo loiro era –</p><p>desconhecia as palavras exatas – alto e largo, e caía-lhe sobre os ombros</p><p>em ondas reluzentes. Até Bobbi Brown diria que a quantidade de</p><p>maquilhagem que ela usava era de trop. Raymond tinha a boca um</p><p>pouco aberta, como a ranhura de uma caixa de correio, e parecia</p><p>deslumbrado. Laura aparentava total indiferença à reação dele.</p><p>– Raymond! Eleanor! – gritou Sammy, acenando-nos das</p><p>profundezas de uma poltrona de veludo enorme. – Laura, dá-lhes</p><p>qualquer coisa para beber, está bem? Estamos a tomar um prosecco –</p><p>acrescentou, em tom confidencial.</p><p>– Mas tu não bebes mais, pai – advertiu o filho mais velho. – Estás a</p><p>tomar medicamentos.</p><p>– Oh, vá lá, filho… só se vive uma vez! – exclamou Sammy, bem-</p><p>disposto. – Afinal de contas, há formas piores de morrer, não é, Eleanor?</p><p>Assenti com um aceno. Ele tinha toda a razão, claro. Se alguém o</p><p>sabia, era eu.</p><p>Laura apareceu com dois copos altos e finos de um líquido</p><p>gaseificado cor de urina – que, para minha surpresa, esvaziei em três</p><p>goles. Era seco, adocicado e muitíssimo delicioso. Perguntei a mim</p><p>própria se seria muito caro e se não poderia vir a substituir</p><p>a vodca</p><p>como a minha bebida de eleição. Laura reparou e reabasteceu-me o</p><p>copo.</p><p>– Já vi que é como eu… Só bebo espumante – confidenciou-me, em</p><p>tom aprovador.</p><p>Olhei em volta.</p><p>– Tem uma casa muito bonita – comentei.</p><p>Ela acenou.</p><p>– Demorei uns aninhos a pôr tudo como gosto, mas agora estou</p><p>satisfeita – admitiu.</p><p>Era impressionante como tudo estava coordenado, limpo e reluzente.</p><p>Havia texturas por todo o lado – penas e lã, veludo, seda – e cores de</p><p>pedras preciosas.</p><p>– É como o ninho de uma ave maravilhosa – elogiei. – Um quetzal,</p><p>ou uma águia imperial.</p><p>Estranhamente, pareceu-me que ela estava com dificuldade em</p><p>encontrar uma resposta apropriada. Com certeza que um simples</p><p>«obrigada» bastava?</p><p>Após um silêncio, não demasiado desconfortável graças à bebida</p><p>gaseificada, ela perguntou-me onde trabalhava e eu expliquei-lhe o que</p><p>fazia e de onde conhecia Raymond. Olhámos para ele – estava</p><p>empoleirado no braço da poltrona de Sammy, a rir de qualquer coisa que</p><p>um dos irmãos dissera.</p><p>– Podia ter arranjado pior, sabe – insinuou ela, com um sorriso</p><p>malicioso. – Isto é, se lhe der um jeitinho; talvez um corte de cabelo</p><p>decente…</p><p>Demorei um momento a perceber aonde é que ela queria chegar.</p><p>– Oh, não, compreendeu mal – esclareci. – Já tenho uma pessoa. É</p><p>um homem atraente, sofisticado e talentoso… culto e educado.</p><p>Laura sorriu.</p><p>– Que sorte! Como é que o conheceu?</p><p>– Bom, ainda não nos conhecemos – expliquei –, mas é apenas uma</p><p>questão de tempo.</p><p>Ela atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada rouca e</p><p>profunda, que não parecia combinar com uma mulher tão delicada e</p><p>feminina.</p><p>– A Eleanor é hilariante – retorquiu. – Tem de vir beber um copo</p><p>comigo um destes dias. E, se decidir cortar o cabelo, lembre-se de mim,</p><p>está bem? Faço-lhe um preço para amigos.</p><p>Pensei nisso. Andava a desleixar-me um pouco com a minha</p><p>renovação de visual, depois da experiência francamente desconcertante</p><p>da depilação e as mudanças pouco impressionantes nas minhas unhas.</p><p>Se calhar não era má ideia adiantar mais qualquer coisa. Regra geral,</p><p>não me interesso nada pelo cabelo, que não corto desde os treze anos.</p><p>Dá-me pela cintura, é liso e castanho-claro – apenas cabelo, nada mais,</p><p>nada menos. Para falar com franqueza, mal reparo nele. No entanto,</p><p>sabia que se queria que o cantor se apaixonasse por mim, teria de fazer</p><p>um esforço maior.</p><p>– Na verdade, a sua oferta não podia vir em melhor altura, Laura –</p><p>respondi, bebendo mais um golo do delicioso espumante; como que por</p><p>milagre, o meu copo voltara a ficar cheio. – Ando a planear uma espécie</p><p>de reinvenção. Tem tempo para me fazer uma mudança de penteado</p><p>durante a semana?</p><p>Ela pegou no telemóvel e começou a mexer no ecrã.</p><p>– Pode ser na terça-feira, às três? – perguntou.</p><p>Temos vinte e cinco dias de férias anuais e eu ainda só usara três –</p><p>um dia de recuperação depois de desvitalizar um dente, outro para uma</p><p>das visitas semestrais da assistente social e um dia extra que juntara a</p><p>um fim de semana prolongado para poder acabar de ler um volume</p><p>particularmente longo, mas muito interessante, sobre a história de Roma</p><p>Antiga.</p><p>– Terça-feira seria esplêndido – respondi.</p><p>Ela afastou-se na direção da cozinha e reapareceu pouco depois com</p><p>um tabuleiro de petiscos quentes e malcheirosos que passou entre os</p><p>convidados. A sala enchera-se de pessoas e o nível de ruído era muito</p><p>elevado. Estive alguns minutos a examinar os bibelots e objets que ela</p><p>dispusera harmoniosamente pela sala. Mais por tédio do que por</p><p>necessidade, fui à casa de banho, uma pequena divisão por baixo das</p><p>escadas, que também era quente e reluzente, em tons de branco e com</p><p>um estranho aroma a figos – acabei por perceber que o cheiro vinha de</p><p>uma vela acesa num frasco na prateleira por baixo do espelho. Velas</p><p>numa casa de banho! Começava a desconfiar de que Laura era uma</p><p>sibarita.</p><p>Entrei na divisão ao fundo do corredor que era, como eu calculara, a</p><p>cozinha. Também se encontrava cheia de pessoas e barulho, mas</p><p>consegui ver os balcões de mármore preto, os armários de cor creme e</p><p>muitos cromados. A casa dela era tão… brilhante. E a própria Laura</p><p>também o era – a pele, o cabelo, os sapatos, os dentes. Nunca me tinha</p><p>apercebido antes, mas eu sou mate, baça e gasta.</p><p>Sentindo uma necessidade imperiosa de escapar por momentos ao</p><p>som e ao calor, abri a porta das traseiras e saí para o pátio. O jardim era</p><p>pequeno e continha pouca coisa em termos de vida botânica, sendo</p><p>maioritariamente pavimentado com lajes de betão ou madeira</p><p>escorregadia. O crepúsculo estava a instalar-se mas o céu parecia</p><p>pequeno, aqui, e senti-me encurralada pela cerca alta que rodeava o</p><p>espaço. Inspirei fundo, ansiosa pelo ar fresco da noite. Em vez disso, as</p><p>minhas passagens nasais foram atacadas por alcatrão, nicotina e outros</p><p>venenos.</p><p>– Bela noite, não está? – perguntou Raymond, que se encontrava</p><p>oculto pelas sombras e, para variar, a fumar. Acenei com a cabeça que</p><p>sim. – Vim apanhar ar – explicou, sem vestígios de ironia. – Não posso</p><p>beber espumante, fico logo KO.</p><p>– Acho que estou pronta para ir para casa – informei. Apercebi-me</p><p>de que também me sentia um pouco cambaleante, uma sensação muito</p><p>agradável.</p><p>– Venha sentar-se aqui um bocadinho – sugeriu Raymond,</p><p>conduzindo-me até duas cadeiras de madeira. Fiquei-lhe grata, pois as</p><p>botas novas tornavam o meu equilíbrio precário, mesmo totalmente</p><p>sóbria. Raymond acendeu outro cigarro: parecia estar a tornar-se um</p><p>fumador em cadeia.</p><p>– São uma família simpática, não são? – perguntou.</p><p>– A Laura vai cortar-me o cabelo – respondi, não sei porquê.</p><p>– Vai? – Ele sorriu.</p><p>– Você gosta dela – declarei, com um aceno entendido. Afinal de</p><p>contas, eu era uma mulher do mundo.</p><p>Raymond riu-se.</p><p>– Ela é deslumbrante, Eleanor, mas não é propriamente o meu</p><p>género.</p><p>O cigarro reluziu, vermelho, na semiobscuridade.</p><p>– E qual é o seu género? – inquiri, surpreendida ao perceber que</p><p>estava de facto interessada em saber.</p><p>– Não sei. Alguém menos… sofisticada, talvez. Alguém… espere aí.</p><p>Não me importei de ficar ali sentada enquanto ele se afastava e</p><p>regressava minutos depois com uma garrafa de vinho e dois copos de</p><p>plástico colorido, com desenhos de roedores animados em cima de</p><p>skates.</p><p>– «Rastamouse» – li, devagar. – Que diabo vem a ser isto?</p><p>– Dê cá – pediu Raymond, e serviu-nos a ambos. Tocámos com os</p><p>copos um no outro, sem qualquer tinido. – Pensei que já tinha</p><p>encontrado a pessoa perfeita para mim – disse, de olhos postos no fundo</p><p>do jardim. – Mas não resultou.</p><p>– Porquê? – perguntei, embora conseguisse pensar em muitas razões</p><p>pelas quais uma mulher podia não querer estar com Raymond.</p><p>– A verdade é que ainda não tenho bem a certeza. Gostava de</p><p>saber… Seria muito mais fácil…</p><p>Acenei com a cabeça; parecia a coisa adequada a fazer.</p><p>– Na altura, a Helen assegurou-me de que o problema não era eu, era</p><p>ela. – Riu-se, mas não era um riso divertido. – Nem acredito que me</p><p>veio com essa velha desculpa esfarrapada. Ao fim de três anos… seria de</p><p>pensar que já teria percebido há mais tempo que as coisas não estavam a</p><p>resultar. Não sei o que mudou. Não fui eu… pelo menos, acho que</p><p>não…</p><p>– As pessoas conseguem ser… incompreensíveis – ajuntei,</p><p>tropeçando um pouco na palavra. – Muitas vezes não consigo perceber</p><p>porque fazem e dizem as coisas.</p><p>Ele acenou em sinal de concordância.</p><p>– Tínhamos um apartamento bonito, fizemos férias maravilhosas. Eu</p><p>estava… estava mesmo a pensar em pedi-la em casamento. Céus…</p><p>Olhou para as pedras do chão enquanto eu tentava, sem sucesso,</p><p>imaginar Raymond de fato, cartola e gravata. Ou, pior ainda, de kilt.</p><p>– Está tudo bem – disse ele, por fim. – É divertido partilhar casa com</p><p>os rapazes, e agora tenho este emprego novo. Está tudo a correr bem. É</p><p>só que… não sei. Ela achava que eu era demasiado bonzinho. O que é</p><p>que hei de fazer com uma informação destas? Ser mais filho da mãe?</p><p>Será que devia ter-lhe batido, ou tê-la traído?</p><p>Apercebi-me de que ele não estava, na realidade, a falar comigo; era</p><p>como numa peça, quando</p><p>uma das personagens começa a falar em voz</p><p>alta sem motivo aparente. No entanto, sabia a resposta à pergunta dele.</p><p>– Não, Raymond – retorquiu. – Nunca poderia fazer nenhuma dessas</p><p>coisas. – Esvaziei o copo e servi-me de mais um pouco. – Vivi com um</p><p>homem chamado Declan durante uns dois anos. Ele dava-me socos nos</p><p>rins, bofetadas… No total, fraturou-me doze ossos. Às vezes passava a</p><p>noite fora e, quando voltava, falava-me sobre as mulheres com quem</p><p>tinha estado. A culpa era minha, toda minha. Mesmo assim, sei que ele</p><p>não devia ter feito isso. Pelo menos, agora sei.</p><p>Raymond olhou para mim.</p><p>– Credo, Eleanor. Quando foi isso?</p><p>– Há uns anos – respondi. – Quando ainda estava na universidade.</p><p>Ele viu-me no Jardim Botânico, um dia, aproximou-se e meteu conversa</p><p>comigo. Sei que parece ridículo, em retrospetiva. No fim dessa semana,</p><p>estávamos a viver juntos.</p><p>– Ele também era estudante? – perguntou Raymond.</p><p>– Não. Achava que ler livros era uma perda de tempo, um</p><p>aborrecimento. Também não trabalhava; ao que parece, não conseguia</p><p>encontrar um emprego que lhe agradasse. Suponho que isso não seja</p><p>fácil para ninguém, correto?</p><p>Raymond fitou-me com uma expressão estranha.</p><p>– O Declan queria ajudar-me a aprender a ser uma pessoa melhor –</p><p>expliquei. Raymond acendeu outro cigarro.</p><p>– Como é que acabou? – perguntou, sem olhar para mim, enquanto</p><p>soprava o fumo para o ar como um dragão muito pouco assustador.</p><p>– Bom – respondi –, ele partiu-me o braço mais uma vez, e quando</p><p>fui ao hospital, os médicos perceberam que aquilo não tinha acontecido</p><p>como eu estava a contar. O Declan mandara-me dizer-lhes que partira o</p><p>braço numa queda, mas não acreditaram em mim. – Bebi mais um</p><p>grande gole de vinho. – Seja como for, uma enfermeira muito simpática</p><p>veio falar comigo e explicou-me que as pessoas que nos amam a sério</p><p>não nos fazem mal, e que não estava certo eu continuar com uma pessoa</p><p>assim. Explicou-mo de uma forma que fazia sentido. Na verdade, devia</p><p>tê-lo percebido sozinha. Quando cheguei a casa, pedi-lhe que saísse e,</p><p>quando ele se recusou, chamei a polícia, como a enfermeira me</p><p>aconselhou. E pronto. Ah, e mudei a fechadura.</p><p>Ele não disse nada, fitando os próprios sapatos com ar muito</p><p>concentrado. Sem olhar para mim, levantou a mão e deu-me uma</p><p>palmadinha hesitante no braço, como se estivesse a fazer festas a um</p><p>cavalo ou a um cão (e fosse o género de homem que tem medo de</p><p>cavalos ou cães). Abanou a cabeça durante muito tempo, mas parecia</p><p>incapaz de articular uma resposta. Não fazia mal; eu não estava à espera</p><p>de uma. Tudo aquilo era história antiga. Estava muito bem sozinha.</p><p>Eleanor Oliphant, única sobrevivente – sou eu.</p><p>– Tenho de ir para casa, Raymond – informei, levantando-me</p><p>depressa. – Vou apanhar um táxi.</p><p>– Boa ideia – concordou Raymond, terminando a bebida. Pegou no</p><p>telemóvel. – Mas não vai pôr-se a vaguear pela rua sozinha à procura de</p><p>táxi, a esta hora. Eu chamo-lhe um… Olhe, tenho uma aplicação! –</p><p>Mostrou-me o telemóvel, com um sorriso orgulhoso.</p><p>– Uma quê? – questionei, olhando para o ecrã. Ele ignorou-me e</p><p>verificou a mensagem. – Estará aqui dentro de cinco minutos –</p><p>informou.</p><p>Esperou comigo no corredor até o táxi chegar e depois acompanhou-</p><p>me à viatura e abriu a porta para eu entrar. Vi-o a olhar para a</p><p>condutora, uma mulher de meia-idade com ar cansado e enfadado,</p><p>enquanto eu entrava para o banco de trás.</p><p>– Também vem? – perguntei, sem perceber por que motivo ele</p><p>hesitava. Raymond viu as horas, passou a mão pelo cabelo e olhou na</p><p>direção da casa.</p><p>– Não – respondeu. – Acho que vou ficar mais um bocadinho. Para</p><p>ver o que acontece.</p><p>Quando o carro arrancou, virei-me para olhar para trás. Raymond</p><p>cambaleava um pouco a subir o caminho e vi Laura, emoldurada pela</p><p>porta, com dois copos nas mãos, um estendido para lho oferecer.</p><p>18</p><p>Na semana seguinte, Raymond enviou-me uma mensagem para a</p><p>caixa de correio eletrónico do trabalho – era muito estranho, ver o seu</p><p>nome na minha caixa de entrada. Tal como eu esperava, ele parecia</p><p>semianalfabeto.</p><p>Olá E., espero q esteja td bem. Preciso de lhe</p><p>pedir um favor. O Keith, filho do Sammy,</p><p>convidou-me para a festa dos seus 40 anos este</p><p>sábado (acabei por ficar até tarde naquela noite,</p><p>foi só rir). Quer vir cmg? É no clube de golfe,</p><p>tem buffet. Não faz mal se ñ quiser – diga qq</p><p>coisa. R.</p><p>Um buffet. Num clube de golfe. O Senhor dá com uma mão e tira</p><p>com a outra. E duas festas num mês! Mais reuniões sociais do que eu</p><p>frequentara nas últimas duas décadas. Respondi:</p><p>Caro Raymond,</p><p>Será um prazer acompanhá-lo à celebração de</p><p>aniversário.</p><p>Melhores cumprimentos,</p><p>Eleanor Oliphant</p><p>Momentos depois, recebi uma resposta:</p><p>A comunicação do século vinte e um. Temo pelos padrões de</p><p>alfabetismo da nação.</p><p>Nesse dia tinha planeado tirar a tarde para ir à cabeleireira, mas</p><p>almocei primeiro na sala dos funcionários, como de costume, com as</p><p>palavras-cruzadas do Telegraph, uma sanduíche de atum e milho doce,</p><p>batatas fritas com sal e vinagre e sumo de laranja, com polpa. Quando</p><p>for oportuno, tenho de agradecer ao músico por me ter apresentado ao</p><p>prazer da polpa no sumo. Depois deste repasto delicioso, e com um</p><p>pequeno sorrisinho de triunfo ao pensar nos meus colegas que tinham de</p><p>ficar nas suas secretárias o resto da tarde, apanhei o autocarro para a</p><p>cidade.</p><p>O salão Heliotrope ficava numa rua elegante no centro, no rés do</p><p>chão de um edifício vitoriano. Não era o tipo de local que eu</p><p>frequentaria normalmente: música alta, funcionários agressivamente</p><p>elegantes e espelhos a mais. Imaginei que seria o sítio onde o músico</p><p>cortaria o cabelo, o que me fez sentir um pouco melhor. Talvez um dia</p><p>estivéssemos sentados lado a lado naquelas cadeiras de cabedal preto, de</p><p>mãos dadas debaixo dos secadores.</p><p>Esperei que a rececionista terminasse o telefonema e afastei-me da</p><p>enorme jarra com lírios brancos e rosa em cima do balcão. O cheiro</p><p>colou-se à minha garganta, como pelo ou penas. Contive um vómito; não</p><p>era coisa destinada a seres humanos.</p><p>Tinha-me esquecido de como podem ser barulhentos os salões de</p><p>cabeleireiro, com o zumbido constante dos secadores e a conversa de</p><p>circunstância, e posicionei-me num lugar junto à janela, depois de enfiar</p><p>um quimono preto de nylon que, fiquei alarmada ao perceber, já estava</p><p>coberto de pequenas aparas de cabelo de uma cliente anterior. Sacudi-as</p><p>o mais depressa que consegui.</p><p>Laura apareceu, tão encantadora como sempre, e conduziu-me até</p><p>uma cadeira em frente de uma fila aterrorizadora de espelhos.</p><p>– Divertiu-se no sábado? – perguntou, ajustando a altura de um</p><p>banco no qual se sentou atrás de mim. Não olhou diretamente para mim,</p><p>mas sim para o espelho, onde se dirigiu ao meu reflexo; dei por mim a</p><p>fazer o mesmo. Era estranhamente relaxante.</p><p>– Sim – respondi. – Foi um serão esplêndido.</p><p>– O meu pai está no quarto de hóspedes. Já está a dar comigo em</p><p>doida e ainda faltam duas semanas – comentou, com um sorriso. – Não</p><p>sei como vou aguentar.</p><p>Acenei com a cabeça.</p><p>– Os pais podem de facto ser complicados, segundo a minha</p><p>experiência – admiti. Trocámos um olhar solidário.</p><p>– Muito bem, então o que vamos fazer? – perguntou ela, tirando o</p><p>elástico na ponta da minha trança e desfazendo-a. Olhei para o meu</p><p>reflexo. Tinha cabelo de um castanho sem graça, com risco ao meio, liso</p><p>e não particularmente grosso. Cabelo humano, a fazer o que o cabelo</p><p>humano faz; a crescer na minha cabeça.</p><p>– Qualquer coisa diferente – respondi. – O que me sugere?</p><p>– Está preparada para ser muito corajosa, Eleanor? – quis saber</p><p>Laura. Era a pergunta certa. Eu sou corajosa. Sou a forte e corajosa</p><p>Eleanor Oliphant.</p><p>– Faça o que quiser – respondi. Ela ficou encantada.</p><p>– Cor também?</p><p>Pensei no assunto.</p><p>– Desde que seja uma cor normal de cabelo humano. Acho que não</p><p>gostaria de azul ou rosa, ou algo do género.</p><p>– Vamos cortar pelos ombros, escadear um pouco, com madeixas cor</p><p>de caramelo e mel e uma franja comprida, para o lado – sugeriu Laura. –</p><p>Que lhe parece?</p><p>– Parece-me uma data de</p><p>definições incompreensíveis – respondi.</p><p>Laura riu-se para o meu reflexo e depois parou, talvez por ver que eu</p><p>estava séria.</p><p>– Confie em mim, Eleanor – acrescentou, com ar sincero. – Vai ficar</p><p>muito bonita.</p><p>– Bonita não é uma palavra que costume ser associada à minha</p><p>aparência – respondi, em tom cético. Ela deu-me uma palmadinha no</p><p>braço.</p><p>– Espere e vai ver – garantiu. – MILEY! – berrou, quase me fazendo</p><p>cair da cadeira. – Anda cá ajudar-me a preparar a cor!</p><p>Uma rapariga baixa e rechonchuda, com problemas de pele e olhos</p><p>bonitos, apareceu a correr. Laura deu-lhe uma receita com percentagens</p><p>e códigos, que bem podia ser a lista de ingredientes para preparar</p><p>pólvora.</p><p>– Chá? Café? Uma revista? – ofereceu-me.</p><p>Cinco minutos depois, quando me vi a beberricar um cappuccino e a</p><p>folhear o número mais recente da revista OK!, nem quis acreditar.</p><p>Olhem para mim, pensei.</p><p>– Pronta? – perguntou Laura. Senti a mão dela, quente e macia,</p><p>roçar-me na nuca quando me pegou no cabelo e o torceu para formar</p><p>uma corda. O som lento da tesoura a cortar era como o som de brasas a</p><p>estalarem numa fogueira; perigoso, ameaçador. Num instante, estava</p><p>acabado. Laura ergueu o meu cabelo cortado no ar, como uma Dalila</p><p>triunfante.</p><p>– Depois de pôr a cor, faço o corte como deve ser – explicou. – Nesta</p><p>fase ainda só precisamos de ter um tamanho aproximado.</p><p>Uma vez que estava sentada, imóvel, não me senti diferente. Ela</p><p>deixou cair o cabelo no chão, onde ficou, como um animal morto. Um</p><p>rapazinho escanzelado, com ar de quem preferia estar em todo o lado</p><p>menos ali, varreu muito, muito devagar, e empurrou a minha criatura de</p><p>cabelo para a pá com uma vassoura de cabo comprido. Observei o seu</p><p>progresso pelo salão através do espelho. O que aconteceria a todo aquele</p><p>cabelo? Pensar nos cabelos cortados de um dia ou de uma semana,</p><p>naquele cheiro, no saco de lixo cheio e mole, deixou-me um pouco</p><p>agoniada.</p><p>Laura aproximou-se com um carrinho e começou a aplicar várias</p><p>pastas espessas em madeixas selecionadas do meu cabelo, alternando</p><p>entre duas tigelas. Depois de aplicar cada secção, cobria o cabelo</p><p>pintado em quadrados de papel de alumínio dobrado. Era um processo</p><p>fascinante. Trinta minutos depois, deixou-me ali sentada com a cabeça</p><p>cheia de alumínio, corada, e voltou com uma lâmpada quente presa a um</p><p>suporte, que colocou atrás de mim.</p><p>– Vinte minutos e está pronto – indicou.</p><p>Trouxe-me mais revistas, mas o prazer dissipara-se – fartara-me</p><p>depressa dos mexericos sobre celebridades e parecia que o salão não</p><p>comprava as revistas Which? ou BBC History, para minha desilusão.</p><p>Havia um pensamento que me estava a incomodar, e ignorei-o. Eu a</p><p>escovar o cabelo de alguém? Sim. Mais pequena do que eu, sentada</p><p>numa cadeira enquanto, de pé atrás dela, eu desembaraçava os nós, com</p><p>cuidado para não a magoar. Ela detestava quando eu puxava. Era</p><p>precisamente para eliminar este tipo de pensamentos – vagos,</p><p>misteriosos, perturbadores – que a vodca servia mas, infelizmente, ali só</p><p>me tinham oferecido chá ou café. Porque será que os salões de</p><p>cabeleireira não têm nada mais forte para as clientes beberem? Afinal de</p><p>contas, uma mudança de visual pode ser enervante, e é difícil relaxar</p><p>num ambiente tão iluminado e ruidoso. Provavelmente encorajaria os</p><p>clientes a dar gorjetas melhores. Menos tino, mais gorjetas, pensei, e ri-</p><p>me sozinha.</p><p>Quando a lâmpada de calor apitou, a rapariga que misturara as cores</p><p>veio ter comigo e levou-me para a «lavagem», que era, na verdade, um</p><p>lavatório. Deixei-a tirar-me o alumínio da cabeça. Ela passou-me o</p><p>cabelo por água morna, depois aplicou champô. Os seus dedos eram</p><p>firmes e hábeis e admirei a generosidade dos seres humanos que</p><p>prestavam estes serviços tão íntimos aos outros. Desde que me</p><p>lembrava, nunca ninguém me lavara o cabelo. Suponho que a mamã o</p><p>deve ter feito quando eu era bebé, mas era difícil imaginá-la a efetuar</p><p>gestos tão ternos.</p><p>Depois de enxaguar o champô, a rapariga fez-me uma «massagem</p><p>shiatsu». Nunca tinha sentido nada tão maravilhoso. Massajou-me o</p><p>couro cabeludo com suavidade, mas com firmeza e precisão, e senti os</p><p>pelos dos braços arrepiados e uma corrente elétrica percorrer-me a</p><p>espinha. A massagem terminou cerca de nove horas antes do que eu</p><p>gostaria.</p><p>– Tinha muita tensão no couro cabeludo – comentou a rapariga com</p><p>sagacidade, enquanto enxaguava o amaciador. Não fazia ideia do que</p><p>devia responder e optei por um sorriso, que costuma servir na maioria</p><p>das ocasiões (menos se o assunto for morte ou doença, claro – já aprendi</p><p>isso).</p><p>Depois de voltar à cadeira anterior, com o cabelo pintado e mais</p><p>curto já lavado, Laura reapareceu com a sua tesoura afiada.</p><p>– Ainda não se consegue perceber bem a cor final porque está</p><p>molhado – observou. – Espere e já verá!</p><p>No fim, o corte não demorou mais de dez minutos. Admirei a</p><p>destreza dela e a confiança com que lançou mãos à tarefa. A secagem</p><p>demorou muito mais tempo, com muitos movimentos elaborados da</p><p>escova. Li a minha revista, obedecendo à sugestão de Laura, de só me</p><p>ver ao espelho quando estivesse pronta. Por fim o secador desligou-se,</p><p>fui borrifada com químicos, examinada de vários ângulos e submetida a</p><p>mais alguns pequenos retoques aqui e ali com a tesoura. Ouvi o riso</p><p>deliciado de Laura.</p><p>– Pode olhar, Eleanor!</p><p>Ergui a cabeça da reportagem da Marie Claire sobre mutilação</p><p>genital feminina. O reflexo no espelho mostrava uma mulher muito mais</p><p>jovem, uma mulher confiante com cabelo brilhante a roçar nos ombros,</p><p>com uma franja para o lado que encobria a cicatriz na face. Era eu?</p><p>Virei-me para a direita e para a esquerda. Olhei para o espelho de mão</p><p>que Laura segurava atrás da minha cabeça para eu conseguir ver a parte</p><p>de trás, lisa e brilhante. Engoli em seco.</p><p>– Tornou-me brilhante, Laura – disse. Tentei impedi-la, mas uma</p><p>lágrima deslizou-me pelo lado do nariz. Limpei-a com as costas da mão</p><p>antes que molhasse as pontas do meu cabelo novo. – Obrigada por me</p><p>ter tornado brilhante.</p><p>19</p><p>Bob chamara-me para uma reunião. Olhou fixamente para mim</p><p>quando entrei no gabinete dele. Não percebi porquê.</p><p>– O seu cabelo! – exclamou, por fim, como se estivesse a adivinhar a</p><p>resposta a uma pergunta. Não tinha sido fácil penteá-lo naquela manhã,</p><p>mas achei que não me saíra mal de todo. Levei as mãos à cabeça.</p><p>– O que é que tem? – perguntei.</p><p>– Nada de mal. Está… está bonito – respondeu Bob, com um sorriso</p><p>e um aceno. Houve um momento embaraçoso. Nenhum de nós estava</p><p>habituado a que Bob fizesse comentários sobre a minha aparência.</p><p>– Cortei-o – expliquei –, como é óbvio.</p><p>Bob acenou.</p><p>– Sente-se, Eleanor.</p><p>Olhei em volta. Dizer que o gabinete de Bob estava desarrumado era</p><p>subestimar o nível de caos em que se encontrava sempre. Tirei um monte</p><p>de brochuras da cadeira em frente da secretária dele e pousei-as no chão.</p><p>Bob inclinou-se para a frente. Envelheceu muito mal desde que o</p><p>conheço; o cabelo caiu-lhe quase todo e ganhou bastante peso. Parece</p><p>um bebé dissoluto.</p><p>– Já trabalha aqui há muito tempo, Eleanor – começou ele. Assenti</p><p>com um aceno; era um facto incontestável. – Sabia que a Loretta vai tirar</p><p>uma licença por tempo indeterminado? – Abanei a cabeça. Não estou</p><p>interessada nos mexericos mesquinhos do quotidiano do escritório. A</p><p>menos que sejam sobre um «determinado» cantor, claro.</p><p>– Não posso afirmar que isso me surpreenda – respondi. – Sempre</p><p>duvidei dos seus conhecimentos sobre os princípios básicos do Imposto</p><p>sobre o Valor Acrescentado. – Encolhi os ombros. – Se calhar é melhor</p><p>assim.</p><p>– O marido dela tem cancro testicular, Eleanor – explicou Bob. – Ela</p><p>quer cuidar dele.</p><p>Pensei naquela informação por um momento.</p><p>– Deve ser muito difícil para ambos – admiti. – Porém, se for</p><p>detetado cedo, a taxa de recuperação e sobrevivência do cancro dos</p><p>testículos é muito boa. Para um homem que tenha o azar de ter cancro,</p><p>esse é provavelmente o melhor para se ter.</p><p>Bob pôs-se a brincar com uma das suas canetas elegantes.</p><p>– Portanto – continuou –, vou precisar de uma nova</p><p>gerente para o</p><p>escritório, pelo menos durante uns meses. – Assenti. – Estaria</p><p>interessada no cargo, Eleanor? Significa um aumento de ordenado, e</p><p>também um pouco mais de responsabilidade. Mas eu acho que está</p><p>preparada para isso.</p><p>Pensei no assunto.</p><p>– De quanto é o aumento? – perguntei. Ele escreveu um número num</p><p>post-it, tirou-o do bloco e passou-mo. Contive uma exclamação. – Além</p><p>do meu salário atual?</p><p>Tive visões de apanhar táxis para o trabalho em vez de vir de</p><p>autocarro, de começar a comprar as melhores marcas no Tesco e de</p><p>beber o tipo de vodca que vem em garrafas pesadas e opacas.</p><p>– Não, Eleanor – negou Bob. – Esse valor seria o seu novo salário.</p><p>– Ah!</p><p>Nesse caso, precisava de calcular com muito cuidado a relação risco-</p><p>recompensa. Compensaria este aumento de salário o acréscimo de</p><p>trabalho administrativo enfadonho que me seria exigido, os níveis mais</p><p>elevados de responsabilidade pelo funcionamento adequado do</p><p>escritório e, pior ainda, o grau de interação significativamente maior que</p><p>teria de ter com os meus colegas?</p><p>– Posso pensar no assunto durante uns dias, Bob?</p><p>Ele acenou que sim com a cabeça.</p><p>– Claro, Eleanor. Calculei que me fosse pedir isso.</p><p>Olhei para as mãos.</p><p>– É uma boa funcionária, Eleanor – elogiou Bob. – Há quanto tempo</p><p>está connosco? Oito anos?</p><p>– Nove – corrigi.</p><p>– Nove anos, e nunca meteu um dia de baixa, nunca usou as férias</p><p>anuais todas. Isso é dedicação, sabe. Não é algo fácil de encontrar nos</p><p>dias que correm.</p><p>– Não é dedicação – respondi. – Limito-me a possuir uma</p><p>constituição robusta e não tenho ninguém com quem ir de férias.</p><p>Bob desviou o olhar e eu levantei-me, preparada para sair. Ele</p><p>pigarreou.</p><p>– Oh, mais uma coisa, Eleanor. Como a Loretta está muito ocupada a</p><p>preparar a transição… Posso pedir-lhe ajuda com uma coisa?</p><p>– Peça à vontade, Bob.</p><p>– O almoço de Natal da empresa… acha que poderia ser a Eleanor a</p><p>organizá-lo este ano? – questionou. – Ela não vai ter tempo para isso</p><p>antes de se ir embora e já ouvi pessoas a queixarem-se de que se não</p><p>marcarmos um local já…</p><p>– … acabaremos no Wetherspoons – concluí, com um aceno</p><p>compreensivo. – Sim, estou familiarizada com esse problema, Bob. Se</p><p>quiser, com certeza que estou disposta a organizar o almoço. Tenho</p><p>carte blanche no que diz respeito ao local, à ementa e ao tema?</p><p>Bob assentiu, distraído, já a olhar para o computador.</p><p>– Claro – retorquiu. – A empresa contribui com dez libras por</p><p>pessoa… a partir daí, é com vocês quanto querem gastar a mais.</p><p>– Obrigada, Bob – agradeci. – Não o vou desapontar.</p><p>Ele já não estava a ouvir, concentrado no ecrã. Eu tinha a cabeça a</p><p>andar à roda. Duas decisões importantes para tomar. Outra festa aonde</p><p>ir. E o belo e talentoso Johnnie Lomond, chanteur extraordinaire e</p><p>potencial companheiro de vida, no meu horizonte amoroso. A minha</p><p>vida era muito intensa.</p><p>Quando me sentei de novo ao computador, olhei para o ecrã durante</p><p>algum tempo, sem conseguir ler as palavras. Sentia-me um pouso</p><p>agoniada ao pensar em todos os dilemas que enfrentava, ao ponto de,</p><p>apesar de ser quase hora de almoço, não ter vontade nenhuma de ir</p><p>comprar e comer a minha refeição pronta do Tesco. Percebo que talvez</p><p>ajudasse conversar com alguém sobre o assunto. Lembrava-me disso, do</p><p>passado. Pelos vistos, falar era bom; ajudava a colocar as ansiedades em</p><p>perspetiva. As pessoas estavam sempre a aconselhar-mo. Fale com</p><p>alguém. Quer falar sobre o assunto? Diga-me como se sente. Tem</p><p>alguma coisa que queira partilhar com o grupo, Eleanor? Não precisa</p><p>de dizer nada, mas pode prejudicar a sua defesa se não mencionar</p><p>durante o interrogatório algo que possa depois confirmar em tribunal.</p><p>Menina Oliphant, consegue contar-nos por palavras suas o que recorda</p><p>dos eventos daquela noite?</p><p>Senti uma gota de suor a deslizar pelas costas e uma palpitação no</p><p>peito, como um pássaro preso. O computador fez aquele apito irritante</p><p>que indica a chegada de uma mensagem de correio eletrónico. Cliquei</p><p>nela sem pensar. Como desprezo estas reações pavlovianas em mim</p><p>própria!</p><p>Olá, E., tudo de pé para sábado? encontro na</p><p>estação pelas 8? R.</p><p>Tinha anexado um gráfico: uma fotografia do rosto de um político</p><p>famoso, ao lado da fotografia de um cão parecidíssimo com o próprio</p><p>Raymond. Soltei uma risada – a semelhança era extraordinária. Por</p><p>baixo, escrevera «LOL de quarta-feira de manhã», o que quer que isso</p><p>significasse.</p><p>Por impulso, respondi de imediato:</p><p>Bom dia, Raymond. O gráfico do cão/ministro é</p><p>muito engraçado. Por acaso está livre para</p><p>almoçar às 12h30?</p><p>Cumprimentos, Eleanor</p><p>Não tive resposta durante quase quinze minutos, e já começava a</p><p>arrepender-me da minha decisão espontânea e irrefletida. Nunca</p><p>convidara ninguém para se juntar a mim ao almoço. Fiz as minhas</p><p>verificações habituais de atualizações do músico – nada de novo no</p><p>Facebook, Twitter ou Instagram, infelizmente. Ficava ansiosa quando ele</p><p>estava silencioso. Temia que significasse que estava muito triste ou, mais</p><p>preocupante ainda, muito contente. Namorada nova?</p><p>Senti-me agoniada e já estava a pensar que talvez fosse melhor não</p><p>comprar a refeição completa hoje, só um batido antioxidante e um</p><p>pacotinho de amendoins com wasabi, quando recebi outra mensagem.</p><p>Desculpe – tive de atender uma chamada de</p><p>ajuda técnica. Sugeri que desligasse e voltasse</p><p>a ligar. LOL. Sim, almoço é boa ideia. Vemo-nos</p><p>à porta daqui a 5 min? R.</p><p>Respondi:</p><p>Parece-me bem. Obrigada.</p><p>Corajosamente, não assinei o meu nome, porque percebi que</p><p>Raymond saberia que era eu.</p><p>Raymond demorou oito minutos em vez dos prometidos cinco, mas</p><p>desta vez decidi ignorar o atraso. Ele sugeriu que fossemos a um café</p><p>próximo de que gostava.</p><p>Não era o tipo de local que eu frequentasse habitualmente, já que era</p><p>bastante boémio e com ar pouco cuidado, com mobílias desirmanadas e</p><p>muitas almofadas e mantas. Uma pessoa tinha de questionar a</p><p>frequência com que estas seriam lavadas. Reduzida, com certeza.</p><p>Estremeci ao pensar em todos aqueles micróbios; o calor do café e as</p><p>fibras densas das almofadas seriam o ambiente perfeito para ácaros e</p><p>talvez até piolhos. Sentei-me a uma mesa com cadeiras de madeira</p><p>normais e sem adereços macios.</p><p>Raymond parecia conhecer o empregado, que o cumprimentou pelo</p><p>nome quando trouxe as ementas. Os funcionários pareciam pertencer ao</p><p>mesmo tipo de pessoa de Raymond: ar desleixado, desmazelados e mal</p><p>vestidos, tanto os homens como as mulheres.</p><p>– O falafel costuma ser bom – sugeriu Raymond – ou a sopa. –</p><p>Apontou para o quadro onde estavam discriminados os pratos do dia.</p><p>– «Creme de couve-flor com cominhos» – li, em voz alta. – Oh, não.</p><p>Não me parece.</p><p>Ainda tinha a barriga às voltas depois do meu encontro com Bob e,</p><p>assim, pedi apenas um café com leite e um scone de queijo. A refeição</p><p>de Raymond, o que quer que fosse, cheirava terrivelmente, como vómito</p><p>reaquecido. Ele comia com a boca aberta e a fazer muito barulho, pelo</p><p>que tive de desviar o olhar. Tornava mais fácil abordar o tema da oferta</p><p>de Bob e da tarefa que ele me confiara.</p><p>– Posso perguntar-lhe uma coisa, Raymond? – comecei. Ele sorveu a</p><p>Coca-Cola e assentiu com a cabeça. Desviei de novo o olhar. O homem</p><p>que nos servira estava encostado ao balcão, a abanar a cabeça ao ritmo</p><p>da música. Era uma barulheira cacofónica, com demasiadas guitarras e</p><p>muito pouca melodia. Era, pensei, o som da loucura, o tipo de música</p><p>que os malucos ouvem na cabeça antes de decapitarem raposas e</p><p>atirarem as cabeças para o quintal dos vizinhos.</p><p>– Ofereceram-me uma promoção, para o cargo de gerente do</p><p>escritório – contei-lhe. – Acha que devo aceitar?</p><p>Raymond parou de mastigar e bebeu mais um gole.</p><p>– Isso é fantástico, Eleanor – admirou-se, com um sorriso. – Porquê</p><p>a hesitação?</p><p>Mordisquei o meu scone – era inesperadamente delicioso, muito</p><p>melhor do que aqueles que se vendem no Tesco. Nunca imaginei fazer</p><p>tal declaração.</p><p>– Bem – comecei –, pelo lado positivo, teria um aumento salarial.</p><p>Não muito grande, mas… o suficiente para me permitir melhorar a</p><p>minha</p><p>qualidade de vida. Por outro lado, implicaria mais trabalho e</p><p>responsabilidade. E os funcionários do escritório são, na sua maioria,</p><p>preguiçosos e idiotas, Raymond. Posso garantir-lhe que geri-los e ao seu</p><p>trabalho seria um grande desafio.</p><p>Ele soltou uma risada e depois tossiu; parecia que se engasgara com</p><p>a bebida.</p><p>– Estou a ver – retorquiu. – Portanto, está a ponderar se o dinheiro a</p><p>mais compensa as chatices.</p><p>– Exatamente – concordei. – Resumiu muito bem o meu dilema.</p><p>Raymond fez uma pausa e mastigou mais um pouco.</p><p>– Quais são os seus planos, Eleanor?</p><p>Não percebi o que queria dizer, o que deve ter sido evidente na</p><p>minha expressão.</p><p>– Tenciona ficar no trabalho administrativo a longo prazo? Se assim</p><p>for, talvez um novo cargo e um salário melhor seja bom para si. Quando</p><p>chegar a altura de dar o passo seguinte, estará numa posição mais</p><p>confortável para avançar.</p><p>– Como assim, «o passo seguinte»? – Este homem é incapaz de falar</p><p>com clareza.</p><p>– Quando se candidatar a outro trabalho, noutra empresa – explicou</p><p>Raymond, agitando o garfo. Encolhi-me, com receio de ser atingida por</p><p>microgotículas de saliva. – Não quer trabalhar na By Design para</p><p>sempre, pois não? – continuou. – Que idade tem? Vinte e seis, vinte e</p><p>sete?</p><p>– Fiz trinta há pouco tempo, Raymond – respondi,</p><p>surpreendentemente satisfeita.</p><p>– A sério? Bom, não tenciona passar o resto da vida a tratar da</p><p>contabilidade do Bob, pois não?</p><p>Encolhi os ombros; na verdade, nunca pensara nisso.</p><p>– Acho que sim – respondi. – Que outra coisa poderia fazer?</p><p>– Eleanor! – exclamou Raymond, parecendo chocado por alguma</p><p>razão. – É inteligente, é escrupulosa, é… muito organizada – enunciou.</p><p>– Há muitos outros trabalhos que podia vir a ter.</p><p>– A sério? – questionei, não muito convencida.</p><p>– Claro! – insistiu Raymond, com um aceno vigoroso. – Sabe lidar</p><p>com números, certo? E é eloquente. Fala mais alguma língua?</p><p>Assenti.</p><p>– Por acaso, tenho bons conhecimentos de latim.</p><p>Raymond franziu a boca.</p><p>– Hum – resmungou, chamando o empregado com um gesto. Este</p><p>aproximou-se e levantou a mesa, voltando pouco depois com dois cafés</p><p>e um pires com trufas de chocolate que ninguém pedira.</p><p>– Bom apetite! – desejou, pousando o prato com um floreado.</p><p>Abanei a cabeça, sem querer acreditar que alguém pronunciasse</p><p>mesmo uma frase tão batida.</p><p>Raymond regressou à conversa anterior.</p><p>– Há muitos sítios que estariam interessados em contratar uma</p><p>gerente administrativa com experiência, Eleanor. E não só na área do</p><p>design gráfico… pode ser um consultório médico, ou uma empresa de</p><p>informática, ou… bem, montes de sítios! – Enfiou uma trufa na boca. –</p><p>Quer ficar em Glasgow? Podia mudar-se para Edimburgo, ou para</p><p>Londres, ou… enfim; o mundo está aos seus pés, não é?</p><p>– Ai está? – admirei-me.</p><p>Mais uma vez, nunca me tinha passado pela cabeça mudar de cidade,</p><p>viver noutro lado. Bath, com as suas fabulosas ruínas romanas, York,</p><p>Londres… era tudo um pouco de mais.</p><p>– Vejo que há muitas coisas na vida que nunca me ocorreu fazer,</p><p>Raymond. Suponho que ainda não me tinha apercebido de que tenho</p><p>controlo sobre elas. Sei que parece ridículo… – admiti.</p><p>Raymond, muito sério, inclinou-se para a frente.</p><p>– Eleanor, com certeza que não teve uma vida fácil. Não tem irmãos,</p><p>o seu pai nunca esteve presente e contou-me que a sua relação com a sua</p><p>mãe… é complicada?</p><p>Assenti.</p><p>– Está a sair com alguém neste momento? – perguntou.</p><p>– Sim – respondi.</p><p>Raymond fitou-me com ar expectante; estranhamente, parecia</p><p>precisar de uma resposta mais detalhada. Suspirei e abanei a cabeça.</p><p>Falei de forma clara e lenta.</p><p>– Neste momento estou a sair consigo, Raymond. Estamos aqui os</p><p>dois no café.</p><p>Ele soltou uma risada.</p><p>– Sabe muito bem o que quero dizer, Eleanor. – Depressa percebeu</p><p>que eu não sabia. – Tem namorado? – perguntou, em tom paciente.</p><p>Hesitei.</p><p>– Não. Bem… Há uma pessoa. Mas não, suponho que a resposta</p><p>factual correta neste momento é não, pelo menos por enquanto.</p><p>– Então tem muito com que lidar, sozinha – declarou ele, não em</p><p>forma de pergunta mas como a afirmação de um facto. – Não devia ficar</p><p>aborrecida consigo própria por não ter um plano de carreira a dez anos.</p><p>– E o Raymond tem um plano de carreira a dez anos? – inquiri.</p><p>Parecia pouco provável.</p><p>– Não – afirmou, com um sorriso. – Ninguém tem, pois não? Pelo</p><p>menos as pessoas normais.</p><p>Encolhi os ombros.</p><p>– Não sei se conheço alguma pessoa normal.</p><p>– Não me ofendeu, Eleanor – retorquiu Raymond, com uma</p><p>gargalhada.</p><p>Demorei um instante, mas percebi a réplica.</p><p>– Foi mesmo sem ofensa, Raymond. Desculpe.</p><p>– Não seja palerma – desvalorizou Raymond, gesticulando a pedir a</p><p>conta. – Então quando é que tem de tomar a decisão em relação ao</p><p>trabalho? Eu acho que devia aceitar, se a minha opinião vale alguma</p><p>coisa. Quem não arrisca, não petisca, certo? Além disso, tenho a certeza</p><p>de que seria uma excelente gerente.</p><p>Observei-o com atenção, à espera de um comentário de seguimento</p><p>ou de uma observação mordaz, mas, para minha grande surpresa, ele</p><p>não disse mais nada. Tirou a carteira e pagou a conta. Protestei com</p><p>veemência, mas ele recusou-se a deixar-me contribuir com a minha</p><p>parte.</p><p>– Só comeu um scone e um café – lembrou. – Pode pagar-me o</p><p>almoço quando receber o seu primeiro ordenado de gerente! – Sorriu.</p><p>Agradeci. Nunca ninguém me tinha pagado o almoço. Era uma</p><p>sensação muito agradável, ter alguém a incorrer voluntariamente numa</p><p>despesa comigo, sem esperar nada em troca.</p><p>Chegámos ao trabalho mesmo em cima do fim da hora de almoço,</p><p>por isso despedimo-nos à pressa antes de voltarmos aos nossos</p><p>respetivos lugares. Era o primeiro dia, em nove anos, que eu almoçara</p><p>com companhia e que não fizera as palavras-cruzadas. Estranhamente,</p><p>não estava nada preocupada com isso. Talvez as fizesse à noite. Ou</p><p>talvez me limitasse a pôr o jornal na reciclagem sem sequer me dar a</p><p>esse trabalho. Tal como Raymond afirmara, o mundo estava cheio de</p><p>possibilidades infinitas. Abri o email e escrevi-lhe uma mensagem:</p><p>Caro R., muito obrigada pelo almoço.</p><p>Cumprimentos, E.</p><p>De certa forma, o abreviar dos nomes até fazia sentido. Afinal de</p><p>contas, era óbvio quem estava a dirigir-se a quem. Raymond respondeu</p><p>quase de imediato:</p><p>De nada, boa sorte com a sua decisão. Até</p><p>sábado! R.</p><p>A vida parecia de facto estar a mover-se muito depressa, num</p><p>turbilhão de possibilidades. Nem sequer tinha pensado no músico até</p><p>agora. Liguei o computador e comecei a pesquisar locais para o almoço</p><p>de Natal. Ia ser um evento em grande, decidi. Diferente de todos os</p><p>outros almoços natalícios. Era importante pôr de lado os lugares-comuns</p><p>e evitar todos os precedentes. Faria algo diferente, algo que deixaria os</p><p>meus colegas surpreendidos e encantados, que derrubaria as suas</p><p>expectativas. Não ia ser fácil. Uma coisa de que tinha a certeza era esta:</p><p>o orçamento de dez libras que Bob me dera seria a base do evento, e</p><p>ninguém teria de contribuir com mais. Ainda me ressentia de todos os</p><p>pagamentos monetários que fora obrigada a fazer ao longo dos anos para</p><p>passar um dia horrível, num sítio horroroso, com pessoas ainda mais</p><p>horrendas, na última sexta-feira antes do dia vinte e cinco de dezembro.</p><p>Afinal de contas, não devia ser muito difícil. Raymond fora muito</p><p>encorajador ao almoço. Se eu conseguia fazer a escansão da Eneida, se</p><p>conseguia criar uma macro numa folha de cálculo Excel, se conseguia</p><p>passar os últimos nove aniversários, Natais e Anos Novos sozinha, então</p><p>com certeza que conseguia organizar um maravilhoso almoço festivo</p><p>para trinta pessoas com um orçamento de dez libras por cabeça.</p><p>20</p><p>O sábado de manhã passou num turbilhão de tarefas domésticas.</p><p>Começara a usar luvas de borracha para proteger as mãos e, embora</p><p>fossem feias, estavam a ajudar. A fealdade não importava – afinal de</p><p>contas, não estava lá mais ninguém a ver.</p><p>Enquanto arrumava as coisas da noite anterior, reparei que não</p><p>consumira a minha dose habitual de vodca; restava ainda mais de</p><p>metade de uma garrafa pequena de Smirnoff. Recordando a minha</p><p>gaffe</p><p>na festa de Laura, guardei-a num saco do Tesco para oferecer a Keith</p><p>esta noite. Pensei no que mais poderia levar-lhe. Flores, não me parecia</p><p>certo; afinal de contas, eram uma prova de amor. Abri o frigorífico e</p><p>enfiei também no saco um pacote de queijo fatiado. Todos os homens</p><p>gostam de queijo.</p><p>Cheguei cinco minutos adiantada à estação de comboio mais</p><p>próxima do local da festa. Mirabile dictu, Raymond já lá estava! Ele</p><p>acenou-me e eu devolvi o gesto. Dirigimo-nos ao clube de golfe.</p><p>Raymond caminhava depressa e comecei a temer não o conseguir</p><p>acompanhar com as botas novas. Vi-o olhar de relance para mim e</p><p>abrandar o passo. Apercebi-me de que estes pequenos gestos – tal como</p><p>a mãe dele, a fazer-me um chá depois de comermos sem perguntar se era</p><p>preciso ou a lembrar-se de que eu não punha açúcar, ou como Laura, a</p><p>colocar dois pequenos biscoitos no pires quando me trouxera o café no</p><p>salão – podiam significar muito. Como seria fazer estas simples boas</p><p>ações por outrem? Não me lembrava. Tinha feito coisas do género no</p><p>passado; tentara ser simpática, tentara cuidar, sabia que sim… Mas isso</p><p>fora antes. Tentara e falhara, e tudo isso estava perdido para mim. Não</p><p>podia culpar ninguém a não ser eu própria.</p><p>O ambiente nos subúrbios era tranquilo; a paisagem era desafogada,</p><p>sem prédios ou arranha-céus a obstruir a vista das colinas distantes. A</p><p>luz era suave e gentil – o verão avançava e a noite parecia delicada,</p><p>frágil. Caminhámos em silêncio, do género que não nos sentimos</p><p>obrigados a quebrar.</p><p>Quando chegámos ao clube, um edifício branco e baixo, fiquei quase</p><p>triste. Nessa altura era quase de noite, e a Lua e o Sol partilhavam um</p><p>céu rosado e raiado de ouro. Os pássaros cantavam corajosamente contra</p><p>a noite iminente, esvoaçando sobre os relvados em círculos largos e</p><p>indolentes. O ar cheirava a relva, com uma sugestão de flores e terra, e a</p><p>brisa quente e doce do dia suspirava suavemente no nosso cabelo e pele.</p><p>Apeteceu-me pedir a Raymond para continuarmos a andar, através do</p><p>relvado ondulante, a caminhar até os pássaros se silenciarem nos seus</p><p>ninhos e só a luz das estrelas nos iluminar o caminho. Quase parecia que</p><p>ele próprio ia fazer essa sugestão.</p><p>A porta do clube abriu-se de rompante e três crianças saíram a</p><p>correr, a rir muito alto, uma delas com uma espada de plástico na mão.</p><p>– Aqui estamos – indicou Raymond baixinho.</p><p>Era um local estranho para uma festa. Os corredores estavam</p><p>forrados com quadros de avisos, todos cobertos de mensagens</p><p>incompreensíveis sobre tees e ladders. Um painel de madeira ao fundo</p><p>do hall de entrada exibia uma longa lista de nomes de homens em letras</p><p>douradas, começando em 1924 e terminando este ano com o nome algo</p><p>improvável de «Dr. Terry Berry». A decoração era uma mistura</p><p>desconcertante de institucional (um visual que me é muito familiar) e</p><p>casa de família antiquada: cortinas de padrões feios, soalhos de madeira,</p><p>arranjos de flores secas cobertas de pó.</p><p>Quando entrámos no salão de festas fomos recebidos por uma</p><p>muralha de som; tinham montado uma discoteca móvel e a pista já</p><p>estava cheia de pessoas a dançar, com idades entre os cinco e os oitenta</p><p>anos, iluminadas de forma aleatória por algumas luzes coloridas pouco</p><p>impressionantes. Os dançarinos pareciam estar a fingir que cavalgavam</p><p>ao ritmo da música. Olhei para Raymond, completamente fora do meu</p><p>ambiente.</p><p>– Céus! – exclamou Raymond. – Preciso de uma bebida.</p><p>Segui-o, agradecida, até ao bar. Os preços eram agradavelmente</p><p>baixos e bebi bastante depressa a minha Magners, descansada por saber</p><p>que trouxera dinheiro suficiente para várias, embora Raymond tivesse</p><p>pagado esta, apesar dos meus protestos. Procurámos uma mesa, a mais</p><p>afastada possível do barulho.</p><p>– Festas de família – observou Raymond, abanando a cabeça. – Já é</p><p>mau quando se trata da nossa família, mas quando é a de outra pessoa…</p><p>Olhei em volta. Não tinha qualquer experiência prévia deste tipo de</p><p>eventos, e o que mais me chamou a atenção foi a disparidade em idade,</p><p>classe social e opções de indumentária feitas pelos convidados.</p><p>– Podemos escolher os amigos… – começou Raymond, erguendo o</p><p>copo de cerveja num brinde.</p><p>– … Mas não podemos escolher a família! – respondi, encantada por</p><p>poder completar a bem conhecida expressão. Era apenas uma pista de</p><p>palavras-cruzadas, nem sequer muito difícil, mas ainda assim.</p><p>– Isto é tal e qual como a festa dos cinquenta anos do meu pai, dos</p><p>sessenta anos da minha mãe, e do casamento da minha irmã – discorreu</p><p>Raymond. – Um DJ de merda, miúdos excitados por excesso de açúcar,</p><p>pessoas que não se viam há anos a pôr a escrita em dia e a fingir que</p><p>gostam muito umas das outras. Aposto o que quiser em como vai haver</p><p>um buffet com folhados e uma escaramuça no parque de estacionamento</p><p>no final da festa.</p><p>Eu estava intrigada.</p><p>– Mas deve ser divertido, não? – perguntei. – Reencontrar a família?</p><p>Estas pessoas todas, contentes por nos verem, interessadas na nossa</p><p>vida?</p><p>Ele fitou-me atentamente.</p><p>– Sabe que mais, Eleanor? É divertido, sim. Estou só a ser</p><p>rezingão… Desculpe. – Bebeu o resto da cerveja. – Mais uma? –</p><p>perguntou. Acenei que sim e depois lembrei-me.</p><p>– Não, não, é a minha vez. Vai beber o mesmo?</p><p>Ele sorriu.</p><p>– Sim, obrigado, Eleanor.</p><p>Peguei na mala e dirigi-me ao bar. Pelo caminho, vi Sammy, sentado</p><p>numa poltrona, rodeado de amigos e familiares, como de costume.</p><p>Aproximei-me.</p><p>– Eleanor, minha querida! – exclamou Sammy. – Como está? Bela</p><p>festa, hã?</p><p>Acenei.</p><p>– Nem acredito que o meu rapaz já tem quarenta anos. Parece que</p><p>ainda foi ontem que entrou na escola. Devia ver a fotografia do primeiro</p><p>dia de aulas… O malandro estava desdentado! E olhem para ele agora.</p><p>Apontou para o outro lado da sala, onde Keith estava com a esposa,</p><p>abraçados, a rirem de alguma coisa que um homem mais velho lhes</p><p>dizia.</p><p>– É tudo o que uma pessoa quer para os filhos: que sejam felizes. Só</p><p>gostava que a minha Jean estivesse aqui para ver…</p><p>Refleti sobre estas palavras. Seria mesmo isso que as pessoas</p><p>normais queriam para os filhos: que fossem felizes? Parecia plausível.</p><p>Perguntei a Sammy se podia oferecer-lhe uma bebida, apesar de ele</p><p>aparentar, ao meu olhar inexperiente, estar bastante embriagado.</p><p>– Não é preciso, amor! – rejeitou Sammy. – Já tenho aqui estas à</p><p>minha espera!</p><p>A mesa estava coberta de copos pequenos cheios de um líquido cor</p><p>de âmbar. Afiancei-lhe que já voltaríamos a falar e dirigi-me ao bar.</p><p>Havia uma fila bastante longa, mas eu estava a gostar da atmosfera.</p><p>Para meu alívio, o DJ estava a fazer uma pausa e vi-o a um canto, a</p><p>beber qualquer coisa de uma lata e a falar ao telemóvel com ar</p><p>aborrecido. Havia um ruído de fundo composto pelo zumbido de vozes</p><p>masculinas e femininas, e muitos risos. As crianças pareciam ter-se</p><p>multiplicado e gravitado para junto umas das outras de modo a formar</p><p>um bando alegre e travesso. Era evidente que os adultos estavam todos</p><p>ocupados com a festa, por isso podiam correr, gritar e andar atrás uns</p><p>dos outros sem supervisão. Sorri-lhes, um pouquinho invejosa.</p><p>Todas as pessoas nesta sala pareciam tomar tanta coisa como certa:</p><p>que seriam convidadas para eventos sociais, que teriam amigos e</p><p>familiares com quem falar, que se apaixonariam e seriam amadas, e,</p><p>talvez, que constituíram a sua própria família. Perguntei a mim própria</p><p>como seria a celebração do meu quadragésimo aniversário. Esperava ter</p><p>pessoas na minha vida com quem assinalar a ocasião quando essa altura</p><p>chegasse. Talvez o músico, a luz da minha nova vida? Uma coisa era</p><p>certa, contudo: nunca, em circunstância alguma, faria a festa num clube</p><p>de golfe.</p><p>Quando voltei à nossa mesa, estava vazia. Pousei a cerveja de</p><p>Raymond e bebi um gole da minha Magners. Supus que ele teria</p><p>encontrado alguém mais interessante com quem conversar. Fiquei</p><p>sentada a ver as pessoas dançar – o DJ estava de volta e selecionara uma</p><p>música ruidosa e cacofónica de uma caixa de discos, qualquer coisa</p><p>sobre um homem depois da meia-noite. Deixei a mente vaguear.</p><p>Era</p><p>uma forma muito eficaz de passar o tempo; pegava numa pessoa ou</p><p>situação e começava a imaginar coisas agradáveis que podiam acontecer.</p><p>Numa fantasia, podíamos fazer acontecer tudo, absolutamente tudo.</p><p>Senti uma mão no ombro e dei um salto.</p><p>– Desculpe – pediu Raymond. – Aproveitei para ir à casa de banho e</p><p>parei a conversar quando voltava.</p><p>Senti o calor onde a mão dele estivera; fora apenas um momento,</p><p>mas deixara uma impressão quente, quase como se fosse visível. Pensei</p><p>que a mão humana tinha exatamente o peso e a temperatura certa para</p><p>tocar noutra pessoa. Já dera muitos apertos de mão ao longo dos anos –</p><p>e em particular nos últimos tempos –, mas há uma vida que ninguém me</p><p>tocava.</p><p>Claro que Declan e eu tínhamos relações sexuais com regularidade,</p><p>isto é, sempre que ele queria, mas, na verdade, Declan nunca me tocava.</p><p>Fazia-me tocar-lhe, indicando como e quando e onde, e eu obedecia.</p><p>Não tinha opção, mas lembro-me de me sentir como se fosse outra</p><p>pessoa nessas alturas, como se não fosse a minha mão, como se não</p><p>fosse o meu corpo. Era apenas uma questão de esperar que acabasse.</p><p>Tinha trinta anos de idade, apercebi-me, e nunca andara de mão dada</p><p>com ninguém. Nunca ninguém me massajara os ombros cansados, nem</p><p>me acariciara o rosto. Imaginei um homem a abraçar-me e a estreitar-me</p><p>contra si quando eu estivesse triste, cansada ou perturbada; o calor, o</p><p>peso.</p><p>– Eleanor? – chamou Raymond.</p><p>– Desculpe, estava a quilómetros daqui – respondi, e dei um gole na</p><p>minha Magners.</p><p>– Parece estar a correr bem – notou Raymond, apontando para a sala.</p><p>Acenei que sim. – Estive a falar com o outro filho do Sammy, o Gary, e</p><p>com a namorada dele – comentou. – São muito divertidos.</p><p>Olhei de novo em volta. Como seria no futuro, ir a eventos destes de</p><p>braço dado com o músico? Ele certificar-se-ia de que eu estava</p><p>confortável, dançaria comigo se eu quisesse (pouco provável), faria</p><p>amizade com os outros convidados. E depois, no final da noite,</p><p>sairíamos juntos e voltaríamos para casa, onde nos aninharíamos como</p><p>duas pombas.</p><p>– Parece que somos as únicas pessoas aqui que não formam um casal</p><p>– comentei, depois de observar os outros convidados.</p><p>Raymond franziu a testa.</p><p>– Sim… oiça, obrigado por vir comigo. É horrível vir sozinho a estas</p><p>coisas, não é?</p><p>– É? – perguntei, interessada. – Não tenho uma situação de controlo</p><p>para fazer a comparação.</p><p>Raymond olhou para mim.</p><p>– Esteve sempre sozinha? – perguntou. – Falou-me naquele tipo, a</p><p>semana passada, o tal que… – vi-o à procura das palavras certas – … o</p><p>seu namorado quando andava na universidade?</p><p>– Como lhe contei, estive com o Declan uns dois anos – confirmei. –</p><p>E também sabe como isso acabou. – Mais um gole de Magners. – Uma</p><p>pessoa habitua-se a estar sozinha – continuei. – Na verdade, é muito</p><p>melhor do que levar socos na cara ou ser violada.</p><p>Raymond engasgou-se com a cerveja e demorou um momento a</p><p>recompor-se. Quando falou, foi num tom muito gentil.</p><p>– Tem a noção, Eleanor, de que essas não são as únicas opções,</p><p>certo? Nem todos os homens são como esse Declan!</p><p>– Claro que não! – exclamei, animada. – Aliás, já conheci um muito</p><p>diferente!</p><p>Imaginei o músico a trazer-me frésias, a beijar-me a nuca. Raymond,</p><p>por algum motivo, parecia pouco à vontade.</p><p>– Vou ao bar – anunciou. – Continua com a Magners?</p><p>Eu sentia-me estranha, agitada.</p><p>– Quero uma vodca com cola, por favor – pedi, sabendo por</p><p>experiência própria que a vodca seria boa para o que quer que fosse que</p><p>me apoquentava. Vi Raymond afastar-se. Se pelo menos ele se</p><p>endireitasse e fizesse a barba! Precisava de comprar umas camisas boas</p><p>e uns sapatos a sério, e de ler um livro ou dois em vez de jogar jogos de</p><p>computador. Como queria arranjar uma rapariga simpática de outra</p><p>maneira?</p><p>Keith aproximou-se da mesa e agradeceu-me por ter vindo. Dei-lhe o</p><p>presente de aniversário, que ele pareceu achar deveras surpreendente.</p><p>Olhou para cada um dos artigos com uma expressão que tive dificuldade</p><p>em interpretar, mas depressa eliminei «tédio» e «indiferença». Fiquei</p><p>contente; era uma sensação agradável, dar uma prenda a alguém, o tipo</p><p>de presente único e atencioso que ele não teria recebido de nenhum</p><p>outro indivíduo. Keith pousou o saco de plástico numa mesa próxima.</p><p>– Gostaria de… ah, de dançar, Eleanor?</p><p>O meu coração começou a bater mais depressa. Dançar! Seria capaz?</p><p>– Não sei se sei dançar – respondi.</p><p>Keith riu-se e puxou-me da cadeira.</p><p>– Vá lá – insistiu –, não custa nada.</p><p>Tínhamos acabado de chegar à pista quando a música mudou e ele</p><p>gemeu.</p><p>– Desculpe, mas esta nem pensar. Tem de ficar para a próxima.</p><p>Privilégio de aniversariante!</p><p>Vi várias pessoas saírem da pista e outras tantas acorrerem a tomar o</p><p>seu lugar. A música tinha muitos instrumentos de metal e um ritmo</p><p>rápido. Michelle, a namorada de Gary, chamou-me com um gesto e</p><p>puxou-me para um pequeno grupo de mulheres, todas mais ou menos da</p><p>mesma idade, que me sorriram e pareciam muito felizes. Juntei-me ao</p><p>que elas estavam a fazer, que parecia ser saltitar no mesmo sítio. Alguns</p><p>convivas moviam os braços como se estivessem a fazer jogging, outros</p><p>apontavam para o nada; parecia que podíamos mexer o corpo como</p><p>quiséssemos, desde que fosse ao ritmo da música, que seguia uma</p><p>métrica de oito batidas, assinaladas de forma muito prestável pela</p><p>bateria. Depois o ritmo mudou de repente e toda a gente ergueu os</p><p>braços acima da cabeça, posicionando-os de uma forma específica.</p><p>Demorei um instante a aprender os gestos, mas depressa consegui imitá-</p><p>los. Saltitar à nossa vontade, formas idênticas com os braços; saltitar à</p><p>vontade, formas idênticas com os braços. Dançar era fácil!</p><p>Dei por mim a não pensar em nada, mais ou menos como acontecia</p><p>quando bebia vodca, mas diferente, porque estava com pessoas e a</p><p>cantar. YMCA! YMCA! Braços no ar, a imitar o feitio das letras – que</p><p>ideia maravilhosa! Quem diria que dançar podia ser uma coisa tão</p><p>lógica?</p><p>Na secção seguinte de saltitar à vontade, comecei a pensar no motivo</p><p>pelo qual a banda estava a cantar sobre, presumi, a Associação Cristã de</p><p>Jovens (YMCA); no entanto, a julgar pelos meus limitados</p><p>conhecimentos sobre música popular, as pessoas pareciam cantar sobre</p><p>tudo, desde chapéus de chuva e atear incêndios a romances de Emily</p><p>Brontë. Portanto, porque não sobre uma organização religiosa de jovens</p><p>rapazes?</p><p>A canção terminou e começou outra; esta não era tão divertida, já</p><p>que consistia apenas de saltitar à vontade, sem padrões comuns com os</p><p>braços pelo meio, mas mesmo assim fiquei na pista, com o mesmo</p><p>grupo de mulheres sorridentes, convicta de que já apanhara o jeito da</p><p>coisa. Começava a perceber por que razão as pessoas gostavam de</p><p>dançar, embora não me parecesse conseguir aguentar uma noite inteira.</p><p>Senti um toque no ombro e, à espera de ver Raymond, virei-me com um</p><p>sorriso preparado pois pensei que ele gostaria de ouvir sobre a música</p><p>das formas com os braços; mas não era ele.</p><p>Era um homem de trinta e tal anos, que eu nunca vira antes. O</p><p>homem sorriu-me, ergueu as sobrancelhas como se estivesse a fazer uma</p><p>pergunta e depois começou a saltitar à minha frente. Virei-me para o</p><p>grupo de mulheres sorridentes, mas o círculo voltara a formar-se sem</p><p>mim. O homem, de rosto vermelho, baixo, com a tez macilenta de quem</p><p>nunca comeu uma maçã, continuou a movimentar-se com entusiasmo,</p><p>embora com alguma falta de ritmo. Sem saber como reagir, recomecei a</p><p>dançar. Ele inclinou-se para a frente e disse algo que, como é natural, o</p><p>volume da música tornou inaudível.</p><p>– Desculpe? – gritei.</p><p>– Perguntei – gritou ele, muito mais alto do que antes – de onde é</p><p>que conhece o Keith!</p><p>Que pergunta tão bizarra para fazer a uma desconhecida!</p><p>– Ajudei o pai dele quando teve um acidente – respondi. Tive de o</p><p>repetir duas vezes até ele perceber; talvez tivesse algum problema</p><p>auditivo. Quando por fim compreendeu, pareceu intrigado. Inclinou-se</p><p>para mim com um sorriso que só posso descrever como lúbrico.</p><p>– É enfermeira? – perguntou.</p><p>– Não – respondi –,</p><p>meias ou não? Pensei que, para me equilibrar, talvez fosse</p><p>melhor. Despi as cuecas e fiquei com elas na mão, sem saber o que lhes</p><p>fazer. Não me parecia correto colocá-las em cima da cadeira, à vista,</p><p>como fizera com as calças, por isso dobrei-as com cuidado e coloquei-as</p><p>dentro da mala. Sentindo-me demasiado exposta, peguei no pacotinho</p><p>que ela deixara em cima da marquesa e abri-o. Sacudi o conteúdo e</p><p>depois peguei-lhe: era um par de cuecas pretas muito pequenas – num</p><p>estilo que reconheci, da nomenclatura da Marks and Spencer, como</p><p>sendo uma «tanga» – feitas do mesmo tecido fino dos saquinhos de chá.</p><p>Vesti-as e puxei-as para cima. Eram demasiado pequenas, e o meu corpo</p><p>transbordava para fora delas, atrás, dos lados e à frente.</p><p>A marquesa era muito alta e encontrei um banquinho de plástico</p><p>debaixo dela para me ajudar a subir. Deitei-me; era uma peça forrada</p><p>com toalhas pretas, cobertas com o mesmo papel azul áspero que se</p><p>encontra nas suas congéneres dos consultórios médicos. Aos meus pés</p><p>estava dobrada outra toalha preta, que puxei para cima para me tapar.</p><p>Tantas toalhas pretas preocupavam-me. O seu uso seria propositado? Se</p><p>sim, para esconder que tipo de manchas de sujidade? Olhei para o teto e</p><p>contei os focos de luz, depois olhei de um lado para o outro. Apesar da</p><p>iluminação fraca, conseguia ver as esfoladelas nas paredes claras. Kayla</p><p>bateu à porta e entrou, com um ar muito animado e descontraído.</p><p>– Ora bem – perguntou – o que vamos fazer hoje?</p><p>– Como já expliquei, quero depilar as virilhas com cera, por favor.</p><p>Ela riu-se.</p><p>– Sim, desculpe. Expliquei-me mal. De que tipo pretende?</p><p>Pensei um pouco.</p><p>– Da normal… como a das velas? – respondi.</p><p>– Não. Que feitio? – inquiriu ela, em tom mais seco. Depois reparou</p><p>na minha expressão. – Então – disse, em tom paciente, contando pelos</p><p>dedos –, pode ser depilação brasileira, francesa ou à Hollywood.</p><p>Ponderei as opções. Revi as palavras mentalmente, uma e outra vez,</p><p>a mesma técnica que usava para resolver anagramas, à espera que as</p><p>letras se arrumassem num padrão. Brasileira, francesa, Hollywood…</p><p>Brasileira, francesa, Hollywood…</p><p>– Hollywood – decidi, por fim. – Se é bom para as estrelas, é bom</p><p>para a Eleanor.</p><p>Ela ignorou a minha piada e levantou a toalha.</p><p>– Oh… – disse. – Está beeem… – Dirigiu-se à mesa e abriu uma</p><p>gaveta, da qual retirou algo. – São duas libras extra pelo corte –</p><p>informou com ar severo, enfiando um par de luvas descartáveis.</p><p>A máquina de corte começou a trabalhar com um bzz-bzz-bzz e eu</p><p>olhei para o teto. Afinal, não doía nada! Quando acabou, Kayla usou um</p><p>pincel gordo para sacudir os pelos cortados para o chão. Senti o pânico</p><p>começar a crescer dentro de mim. Não tinha olhado para o chão ao</p><p>entrar. E se ela tivesse feito isto com as outras clientes – estariam os seus</p><p>pelos púbicos agora colados às solas das minhas peúgas às bolinhas? O</p><p>pensamento deixou-me um pouco agoniada.</p><p>– Assim está melhor – disse Kayla. – Ora bem, vou ser rápida, o</p><p>mais que conseguir. Não use loções perfumadas na zona depilada pelo</p><p>menos nas próximas doze horas, está bem? – Mexeu o recipiente de cera</p><p>que estava a aquecer na mesinha de apoio.</p><p>– Oh, não se preocupe, não sou muito dada a unguentos, Kayla –</p><p>assegurei-lhe. Ela fitou-me com uma expressão estranha. Seria de pensar</p><p>que os funcionários na área da estética tivessem capacidades mais bem</p><p>desenvolvidas para lidar com as pessoas. Ela era quase tão má como os</p><p>meus colegas do escritório.</p><p>Kayla afastou as cuecas descartáveis para o lado e pediu-me para</p><p>esticar a pele com a mão. Depois colocou uma tira de cera quente na</p><p>minha púbis com uma espátula de madeira e pressionou uma tira de</p><p>tecido por cima. Por fim, segurou na ponta e arrancou-a num rápido</p><p>floreado de dor lancinante.</p><p>– Morituri te salutant – murmurei, com os olhos a encherem-se de</p><p>lágrimas. É o que costumo dizer em situações do género, e ajuda-me</p><p>sempre imenso. Fiz menção de me sentar, mas ela empurrou-me</p><p>gentilmente para trás.</p><p>– Oh, ainda falta um bom bocado, infelizmente – declarou, em tom</p><p>bastante alegre.</p><p>A dor é fácil; a dor é algo com que estou familiarizada. Entrei para a</p><p>pequena salinha branca dentro da minha cabeça, aquela que é da cor das</p><p>nuvens. Cheira a algodão limpo e a coelhinhos bebés. O ar dentro desta</p><p>sala é de um rosa muito clarinho, como amêndoas de Páscoa, e ouve-se a</p><p>música mais encantadora. Hoje, era Top of the World, dos The</p><p>Carpenters. Aquela voz maravilhosa… ela parece tão feliz, tão cheia de</p><p>amor. Karen Carpenter, tão bonita e afortunada.</p><p>Kayla continuou a aplicar cera e a arrancá-la. Pediu-me para dobrar</p><p>os joelhos e afastar as pernas, com os calcanhares juntos. Como pernas</p><p>de rã, acrescentei, mas ela ignorou-me, concentrada como estava no</p><p>trabalho. Arrancou os pelos mesmo lá de baixo. Nunca me tinha sequer</p><p>ocorrido que tal coisa fosse possível. Quando acabou, pediu-me para me</p><p>deitar de novo normalmente e baixou as cuecas descartáveis. Espalhou</p><p>cera quente nos restantes pelos e arrancou-os todos, com ar triunfante.</p><p>– Pronto – anunciou, tirando as luvas e limpando a testa com as</p><p>costas da mão –, diga lá se não está muito melhor!</p><p>Passou-me um espelho para eu poder admirar o seu trabalho.</p><p>– Mas estou completamente descabelada! – exclamei, horrorizada.</p><p>– Isso mesmo. Depilação à Hollywood – confirmou. – Foi o que me</p><p>pediu.</p><p>Senti os punhos fecharem-se com força e abanei a cabeça, incrédula.</p><p>Fora ali para começar a tornar-me uma mulher normal, e, em vez disso,</p><p>ela fizera-me parecer uma criança.</p><p>– Kayla – comecei, sem querer acreditar na situação em que me</p><p>encontrava –, o homem em quem estou interessada é um adulto normal.</p><p>Com certeza que gosta de ter relações sexuais com uma mulher adulta</p><p>normal. Está a sugerir que ele é algum pedófilo? Como se atreve?</p><p>Kayla olhou para mim, horrorizada. Eu estava farta.</p><p>– Por favor, saia para eu me vestir – pedi, virando a cara para a</p><p>parede.</p><p>Ela saiu e eu desci da marquesa. Enfiei as calças, consolada pelo</p><p>pensamento de que os pelos voltariam decerto a crescer antes do nosso</p><p>primeiro encontro íntimo. Não deixei gorjeta a Kayla ao sair.</p><p>Quando cheguei ao escritório, o meu computador continuava</p><p>avariado. Sentei-me e liguei outra vez para Raymond, da informática,</p><p>mas a chamada foi diretamente para a sua mensagem ridícula. Decidi ir</p><p>à procura dele; pela mensagem do gravador de chamadas, parecia ser o</p><p>tipo de pessoa capaz de ignorar o telefone a tocar e de estar para ali</p><p>sentado sem fazer nada. Precisamente quando me levantava, um homem</p><p>aproximou-se da minha secretária. Era pouco mais alto do que eu,</p><p>calçava ténis verdes e vestia umas calças de ganga largas e uma t-shirt</p><p>com um cartoon de um cão deitado em cima da sua casota. O tecido da</p><p>camisola estava esticado sobre a barriga proeminente. Tinha cabelo</p><p>claro, muito curto, para tentar esconder o facto de que estava a rarear e a</p><p>recuar, e barba loira de vários dias, em tufos irregulares. Toda a pele</p><p>visível, tanto na cara como no corpo, era muito rosada. Ocorreu-me uma</p><p>palavra: «porcino».</p><p>– Ah… Oliphant? – perguntou.</p><p>– Sim, Eleanor Oliphant, a própria – respondi.</p><p>Ele aproximou-se da secretária.</p><p>– Raymond da informática – apresentou-se. Estendi-lhe a mão para</p><p>ele apertar, o que acabou por fazer passados alguns instantes, hesitante.</p><p>Mais provas do lamentável declínio das boas maneiras nos dias de hoje.</p><p>Afastei-me para o deixar sentar à minha secretária.</p><p>– Qual é o problema? – perguntou, olhando para o meu ecrã.</p><p>Expliquei-lhe o que se passava. – Muito bem – respondeu, começando a</p><p>matraquear ruidosamente no teclado. Peguei no meu Telegraph e avisei-</p><p>o de que estaria na sala dos funcionários; não adiantava de nada ficar ali</p><p>enquanto ele tratava do computador.</p><p>O autor das palavras-cruzadas de hoje era «Elgar», cujas pistas são</p><p>sempre elegantes e justas. Estava a tamborilar com a caneta nos dentes, a</p><p>refletir no doze vertical, quando Raymond entrou na sala,</p><p>interrompendo-me o raciocínio. Olhou por cima do meu ombro.</p><p>– Palavras-cruzadas,</p><p>sou administrativa da área financeira. – Ele</p><p>pareceu ficar sem saber o que dizer e eu olhei para o teto enquanto</p><p>dançava, numa tentativa de desencorajar mais conversas; era bastante</p><p>complicado dançar e falar ao mesmo tempo.</p><p>Quando a canção acabou, decidi que era suficiente, para já, e senti</p><p>uma necessidade urgente de me refrescar.</p><p>– Posso oferecer-lhe uma bebida? – gritou o homem, para se fazer</p><p>ouvir sobre a canção seguinte. Perguntei a mim própria se o DJ alguma</p><p>vez teria pensado em introduzir uma pausa de cinco minutos entre</p><p>discos, para deixar que as pessoas fossem ao bar ou à casa de banho em</p><p>paz. Talvez pudesse fazer-lhe essa sugestão mais tarde.</p><p>– Não, obrigada – respondi. – Não vou aceitar a bebida que me está a</p><p>oferecer, porque depois me sentiria obrigada a pagar-lhe também uma</p><p>em troca, e receio não estar pura e simplesmente interessada em perder o</p><p>tempo de duas bebidas consigo.</p><p>– Hã? – indagou o homem, levando a mão em concha ao ouvido. Era</p><p>evidente que sofria de zumbidos ou qualquer outro problema auditivo.</p><p>Resolvi comunicar por mímica, abanando a cabeça e o dedo indicador,</p><p>enquanto fazia gestos exagerados da boca, tudo a significar «não». Virei-</p><p>me e fui à procura da casa de banho antes que ele tentasse continuar</p><p>com a conversa.</p><p>A casa de banho não foi fácil de encontrar, pois ficava num corredor</p><p>onde só via sinais a indicar «Lavabos». (Por fim, lá percebi que era um</p><p>sinónimo para casa de banho. Por que raio as pessoas não chamam às</p><p>coisas aquilo que elas são? Assim é muito confuso.) Havia uma fila, à</p><p>qual me juntei, atrás de uma mulher muito embriagada e vestida de</p><p>forma inapropriada para a sua idade. Acho que camisolas justas sem</p><p>alças são mais adequadas para raparigas com menos de vinte e cinco</p><p>anos, se é que são adequadas para alguém, de todo. Um casaco</p><p>semitransparente e cintilante tinha o trabalho complicado de lhe cobrir o</p><p>peito enorme. A maquilhagem, que seria considerada subtil se o objetivo</p><p>fosse uma atuação em palco no Royal Albert Hall, estava a começar a</p><p>desbotar. Por algum motivo, imaginei-a a chorar nas escadas ao final da</p><p>noite. A visão surpreendeu-me, mas havia nela algo de febril que me</p><p>levou a essa conclusão.</p><p>– Uma pessoa perde horas de vida nas filas da retrete – comentou</p><p>ela, em tom casual. – Nunca há casas de banho suficientes, pois não?</p><p>Não lhe respondi, pois estava a tentar calcular o tempo aproximado</p><p>que passávamos em filas, mas ela não pareceu incomodar-se com o meu</p><p>silêncio.</p><p>– Para os homens nunca há problema, pois não? – continuou, em</p><p>tom zangado. – Nunca há fila na casa de banho dos homens. Às vezes só</p><p>me apetece ir lá e agachar-me em cima do urinol. Ah! – exclamou. –</p><p>Imagine as caras deles! – Soltou uma gargalhada rouca de fumadora que</p><p>se transformou num ataque de tosse.</p><p>– Oh, mas as casas de banho dos homens devem ser muito pouco</p><p>higiénicas – contrapus. – Parece que eles não dão grande importância a</p><p>limpeza e essas coisas.</p><p>– Pois não – concordou ela em tom azedo. – Entram, mijam por todo</p><p>o lado e saem todos contentes, e alguém que limpe se quiser. – Olhou</p><p>para a distância, claramente a pensar num indivíduo específico.</p><p>– Na verdade, tenho pena deles – ajuntei. A mulher lançou-me um</p><p>olhar furioso e apressei-me a esclarecer o meu pensamento. – Imagine,</p><p>ter de urinar em fila, ao lado de outros homens, desconhecidos,</p><p>conhecidos, amigos, até! Deve ser horrível. Imagine como seria estranho</p><p>se tivéssemos de mostrar os nossos órgãos genitais umas às outras</p><p>quando chegássemos à frente da fila!</p><p>Ela arrotou baixinho e olhou sem qualquer inibição para as minhas</p><p>cicatrizes. Virei a cabeça.</p><p>– Você é um bocadinho maluca, não é? – perguntou, sem qualquer</p><p>agressividade, mas arrastando um pouco as palavras. Não era de forma</p><p>alguma a primeira vez que eu ouvia isso.</p><p>– Sim – admiti. – Sim, acho que sou.</p><p>Ela acenou com a cabeça, como se eu tivesse confirmado uma</p><p>desconfiança que a acompanhava há muito. Não tornámos a falar.</p><p>Quando voltei ao salão de festas, o ambiente alterara-se – o ritmo da</p><p>música era mais lento. Fui ao bar e comprei uma Magners e uma vodca</p><p>com cola e, depois de refletir um instante, uma cerveja para Raymond.</p><p>Não foi fácil trazer todas as bebidas para a mesa, mas consegui sem</p><p>entornar uma gota. Soube-me bem sentar, depois de tanta dança e tempo</p><p>de pé em filas, e bebi a minha vodca em dois goles – dançar fazia sede.</p><p>O blusão de ganga de Raymond continuava nas costas da cadeira, mas</p><p>não havia sinais dele. Pensei que talvez tivesse ido lá fora fumar. Tinha</p><p>muito para lhe contar – sobre a dança, sobre a mulher na fila da casa de</p><p>banho –, e estava ansiosa por o fazer.</p><p>A música mudou outra vez e agora era ainda mais lenta. Muitas</p><p>pessoas deixaram a pista e as que ficaram formaram pares. Era uma</p><p>visão estranha, como algo da natureza; macacos, talvez, ou pássaros. As</p><p>mulheres puseram os braços à volta do pescoço dos homens e os</p><p>homens puseram os braços à volta da cintura das mulheres. Baloiçavam</p><p>de um lado para o outro, arrastando os pés, ou a olhar para a cara um do</p><p>outro, ou com a cabeça pousada no ombro do parceiro.</p><p>Era, obviamente, algum tipo de ritual de acasalamento. Mas não</p><p>seria agradável, baloiçar ao ritmo de uma música lenta, encostada a</p><p>alguém maravilhoso? Olhei para eles outra vez, observando os vários</p><p>tamanhos, formas e pares. E ali, no meio, estava Raymond, a dançar</p><p>com Laura. Ele falava-lhe ao ouvido, perto o suficiente para conseguir</p><p>sentir o seu perfume. Ela estava a rir.</p><p>A bebida que eu lhe comprara ia desperdiçar-se. Peguei no copo e</p><p>bebi-a eu, de uma assentada, sentindo o sabor amargo da cerveja.</p><p>Levantei-me e vesti o casaco. Visitaria os lavabos mais uma vez e depois</p><p>apanharia o comboio para a cidade. Ao que parecia, a festa acabara.</p><p>21</p><p>Segunda-feira, segunda-feira. As coisas não me pareciam bem. No</p><p>domingo não conseguira relaxar, não conseguira estar tranquila a fazer</p><p>nada. Por alguma razão, sentia-me enervada. Se o meu estado de espírito</p><p>fosse uma pista de palavras-cruzadas, a resposta seria «desconcertada».</p><p>Tentei perceber porquê, mas não consegui chegar a nenhuma conclusão</p><p>plausível. Por fim, à tarde, apanhei o autocarro para a cidade (de graça –</p><p>obrigada, passe!) e fui visitar Bobbi Brown. Mais uma vez, a menina</p><p>Brown não comparecera ao trabalho – a sua ética laboral parecia ser</p><p>algo deficiente – e fui maquilhada por uma funcionária diferente, com</p><p>resultados praticamente iguais aos da primeira vez. Porém, adquiri os</p><p>vários produtos e instrumentos necessários para recriar aquele aspeto em</p><p>casa.</p><p>O custo total dos produtos cosméticos excedeu em muito o montante</p><p>que pagava em impostos municipais, mas estava num estado de espírito</p><p>tão estranho que nem isso me dissuadiu. Fiquei o resto de domingo com</p><p>a cara pintada e esta manhã conseguira reproduzir a maquilhagem, de</p><p>forma quase exata. A rapariga ensinara-me a fazê-lo, incluindo a</p><p>aplicação cuidadosa da base para esconder as cicatrizes. O olho</p><p>esfumado ficara um pouco mais torto, mas, segundo o que ela me</p><p>explicara, a maravilha de um olho esfumado era precisamente que não</p><p>precisava de ser sempre exato.</p><p>Já me tinha esquecido que me maquilhara quando cheguei ao</p><p>escritório e Billy soltou um assobio que fez os outros virarem-se para</p><p>olhar.</p><p>– Penteado novo, batom – enunciou, dando-me uma cotovelada.</p><p>Encolhi-me. – Alguém está com esperança de ter alguma ação, se não</p><p>estou enganado!</p><p>As mulheres reuniram-se à minha volta. Eu vestira também a minha</p><p>roupa nova.</p><p>– Está muito bonita, Eleanor!</p><p>– O preto fica-lhe muito bem.</p><p>– Adoro as botas, onde é que as comprou?</p><p>Examinei as caras delas, à procura de olhares maliciosos, à espera de</p><p>comentários mordazes, mas não vi nada.</p><p>– E onde é que cortou o cabelo, já agora? – quis saber Janey. – Fica-</p><p>lhe mesmo bem.</p><p>– No Heliotrope, na cidade – respondi. – Foi a Laura que me cortou</p><p>o cabelo. É uma amiga – acrescentei, orgulhosa. Janey parecia</p><p>impressionada.</p><p>– Sou capaz de ir experimentar – disse. – A minha cabeleireira vai</p><p>mudar-se</p><p>para o Norte e ando à procura de outra. Sabe se a sua amiga</p><p>faz penteados de noiva?</p><p>Remexi na mala.</p><p>– Aqui tem o cartão dela – declarei, entregando-lho. – Porque não</p><p>lhe dá uma apitadela?</p><p>Janey abriu um sorriso radiante. Isto estaria mesmo a acontecer?</p><p>Lembrei-me de também sorrir – em caso de dúvida, sorrir sempre – e</p><p>dirigi-me à minha secretária.</p><p>Então era assim que funcionava, a integração social bem-sucedida?</p><p>Seria mesmo assim tão simples? Um pouco de batom, ir à cabeleireira e</p><p>mudar o estilo de roupa? Alguém devia escrever um livro, ou pelo</p><p>menos um panfleto explicativo, e passar esta informação ao público em</p><p>geral. Eu tinha recebido mais atenção dos meus colegas hoje (isto é,</p><p>atenção positiva, não malévola) do que nos últimos anos. Sorri, satisfeita</p><p>por ter desvendado parte do mistério. Uma mensagem eletrónica chegou.</p><p>Desapareceu no sábado sem se despedir – está</p><p>tudo bem? R.</p><p>Respondi.</p><p>Sim, obrigada. Simplesmente fartei-me de</p><p>dançar e das pessoas. E.</p><p>Ele respondeu logo.</p><p>Almoço? Sítio do costume, 12h30m? R.</p><p>Para minha grande surpresa, apercebi-me de que me agradava</p><p>bastante a ideia de almoçar com Raymond, e fiquei genuinamente</p><p>contente por ele me ter convidado. Tínhamos um Sítio do Costume!</p><p>Engoli em seco e, com os dentes cerrados, respondi usando apenas um</p><p>dedo:</p><p>OK, E.</p><p>Recostei-me na cadeira, um pouco agoniada. A comunicação</p><p>abreviada era mais rápida, sem dúvida, mas não muito. Poupara o</p><p>trabalho de escrever mais meia dúzia de carateres. No entanto, fazia</p><p>parte do meu novo credo, experimentar coisas novas. Experimentara e,</p><p>decididamente, não gostava. O LOL podia ir passear. Eu não era feita</p><p>para estas coisas; não me saíam de forma natural. Embora seja bom</p><p>experimentar coisas novas e manter a mente aberta, também é</p><p>muitíssimo importante sermos fiéis àquilo que de facto somos. (Li isto</p><p>numa revista no cabeleireiro.)</p><p>Raymond já lá estava quando eu cheguei, a conversar com um</p><p>empregado diferente, mas praticamente idêntico ao rapaz de barba que</p><p>nos atendera da última vez. Pedi de novo um café com leite e um scone,</p><p>o que fez Raymond sorrir.</p><p>– É uma pessoa de hábitos, não é, Eleanor?</p><p>Encolhi os ombros.</p><p>– Está bonita, hoje – comentou. – Gosto da sua… – Gesticulou</p><p>vagamente na direção da minha cara. Acenei com a cabeça.</p><p>– Parece que as pessoas gostam mais de mim com maquilhagem, por</p><p>algum motivo – repliquei. Raymond ergueu as sobrancelhas e encolheu</p><p>os ombros, parecendo tão perplexo com o facto como eu.</p><p>O rapaz de barba trouxe a comida e Raymond começou a degustá-lo</p><p>com vontade.</p><p>– Então, divertiu-se no sábado? – perguntou. Gostaria muito que a</p><p>tivesse elaborado entre garfadas, mas, de forma horripilante, questionou-</p><p>me durante uma.</p><p>– Sim, obrigada – respondi. – Foi a primeira vez que experimentei</p><p>dançar, e gostei bastante. – Raymond continuou a enfiar comida na boca.</p><p>O processo e o ruído faziam lembrar uma máquina industrial. – E você,</p><p>divertiu-se? – inquiri.</p><p>– Hum-hum – afirmou. – Foi divertido, não foi? – Não estava a usar</p><p>a faca, segurando o garfo na mão direita como uma criança ou um</p><p>americano. Sorriu.</p><p>Pensei em perguntar-lhe se ele e Laura tinham dançado outra vez</p><p>naquela noite, ou se ele a acompanhara a casa, mas decidi não o fazer.</p><p>Afinal de contas, não tinha nada a ver com isso e esse tipo de perguntas</p><p>é sinal de má educação.</p><p>– Ah… então já tomou uma decisão quanto à promoção? Vai</p><p>aceitar?</p><p>Como é óbvio, refletira sobre o assunto nos meus momentos livres</p><p>nos últimos dias. Procurara sinais, pistas, mas não encontrara nada,</p><p>exceto nas palavras-cruzadas de sexta-feira, cujo número doze horizontal</p><p>era «favorece movimento ascendente». Considerei que seria um sinal</p><p>encorajador.</p><p>– Vou aceitar – respondi.</p><p>Raymond sorriu, pousou o garfo e levantou a mão. Percebi que</p><p>queria que eu encostasse a minha à dele naquilo que reconhecia agora</p><p>como um «mais cinco».</p><p>– Boa – felicitou-me, continuando a comer. – Parabéns.</p><p>Senti um clarão de felicidade, como se um fósforo se tivesse</p><p>acendido. Não me lembrava de alguém me ter dado os parabéns por</p><p>alguma coisa antes. Era muito agradável.</p><p>– Como está a sua mãe, Raymond? – perguntei, depois de apreciar o</p><p>momento e o resto do scone. Ele falou sobre a mãe durante algum tempo</p><p>e mencionou que ela perguntara por mim. Isto preocupou-me um pouco</p><p>(ansiedade instintiva relacionada com a curiosidade maternal), mas</p><p>Raymond tranquilizou-me.</p><p>– Ela gostou muito de si… Convidou-a a aparecer quando quisesse.</p><p>Sente-se muito sozinha – acrescentou.</p><p>Assenti com um aceno silencioso. Apercebera-me disso. Raymond</p><p>pediu licença para ir à casa de banho e olhei em volta enquanto</p><p>aguardava o seu regresso. Duas mulheres mais ou menos da minha idade</p><p>estavam sentadas na mesa do lado, cada uma delas com um bebé vestido</p><p>com roupas coloridas. Ambos os bebés estavam na cadeirinha de</p><p>transporte, um deles a dormir, o outro a olhar com ar sonhador para um</p><p>raio de sol que dançava sobre a parede. A máquina de café assobiou</p><p>atrás de nós e vi uma onda de alarme passar pelo rosto da criança. Em</p><p>câmara lenta, a pequena boca cor-de-rosa franziu-se num beijo e depois</p><p>abriu-se para soltar um grito em volume elevado. A mãe olhou para</p><p>baixo e, depois de verificar que ele estava bem apesar do barulho,</p><p>continuou a conversar. O choro aumentou de intensidade. Fazia sentido</p><p>em termos evolucionários, supus, que os gritos de aflição de um bebé</p><p>tivessem precisamente o volume e tonalidade certos para que um</p><p>humano adulto não os conseguisse ignorar.</p><p>Agora o bebé estava a ficar descontrolado, com os punhos cerrados</p><p>com força, a cara cada vez mais vermelha. Fechei os olhos e tentei, sem</p><p>sucesso, ignorar o ruído. Para de chorar, por favor, por favor. Não sei</p><p>porque estás a chorar. O que tenho de fazer para tu parares? Não sei o</p><p>que fazer. Dói-te alguma coisa? Estás doente? Com fome? Não sei o que</p><p>fazer. Por favor, não chores. Não há nada para comer. A mamã não deve</p><p>demorar. Onde está a mamã? Tinha a mão a tremer quando peguei na</p><p>chávena de café e respirei o mais lentamente que consegui, de olhos</p><p>postos no tampo da mesa.</p><p>O choro parou. Ergui o rosto e vi o bebé deitado no colo da mãe,</p><p>sossegado, enquanto ela lhe cobria o rosto de beijos. Soltei a respiração e</p><p>o meu coração encheu-se de alegria por ele.</p><p>Quando Raymond voltou, paguei o almoço, já que tinha sido ele a</p><p>fazê-lo da última vez; estava mesmo a começar a apanhar o jeito ao</p><p>conceito dos pagamentos recíprocos. No entanto, ele insistiu em deixar</p><p>gorjeta. Cinco libras! Tudo o que o homem fizera fora trazer a comida da</p><p>cozinha até à mesa, um trabalho pelo qual já estava a ser recompensado</p><p>pelo proprietário do café. Raymond era extravagante e despreocupado –</p><p>não admirava que não tivesse dinheiro para sapatos como deve ser ou um</p><p>ferro de engomar.</p><p>Regressámos ao escritório em passo lento, e Raymond descreveu-me</p><p>em pormenor um problema qualquer com o servidor, que não</p><p>compreendi (e no qual não tinha grande interesse), problema esse com</p><p>que teria de lidar esta tarde. No átrio, virou-se para as escadas que</p><p>levavam ao seu gabinete.</p><p>– Até breve, sim? – disse. – Um bom dia!</p><p>Parecia que estava a ser sincero em ambas as frases; que me veria</p><p>mesmo em breve e que me desejava um bom dia. Senti um calor por</p><p>dentro, uma sensação reconfortante e brilhante, como chá quente numa</p><p>manhã fria.</p><p>– Um bom dia para si também, Raymond – desejei-lhe, e estava a ser</p><p>sincera.</p><p>Nessa noite, tencionava relaxar com uma caneca de caldo de carne e</p><p>ouvir um programa de rádio muito interessante sobre a política sul-</p><p>americana, depois das minhas verificações habituais sobre o que Johnnie</p><p>Lomond andava a fazer. Ele publicara qualquer coisa no Twitter sem</p><p>grande interesse, sobre uma personagem de um programa de televisão, e</p><p>uma fotografia no Facebook de um par de botas que queria comprar. Um</p><p>dia lento em termos de novidades, portanto.</p><p>Ter notícias da mamã numa segunda-feira foi uma surpresa</p><p>inesperada e indesejada.</p><p>– Eleanor, querida. Sei que não é o nosso dia habitual</p><p>de conversa,</p><p>mas estava a pensar em ti. Queria só cumprimentar-te, ver como estás…</p><p>Sabes como é.</p><p>Fiquei em silêncio, chocada pela intrusão não programada na minha</p><p>noite.</p><p>– Então? – questionou-me. – Estou à espera, querida…</p><p>Pigarreei.</p><p>– Ah… Está tudo bem, mamã. Estavas a… pensar em mim? – Era</p><p>inédito.</p><p>– Hum, sim. Duas coisas, na verdade. Primeiro: queres que veja se</p><p>consigo ajudar-te com o teu projeto? Não posso fazer muito de onde me</p><p>encontro, claro, mas talvez consiga, não sei… puxar alguns cordelinhos?</p><p>Talvez haja forma de eu conseguir arranjar uma saidinha e ir visitar-te</p><p>para te ajudar? Bem sei que parece impossível, mas nunca se sabe… a fé</p><p>move montanhas e por aí fora…</p><p>– Não, mamã, oh, não não não não… – interrompi, demasiado</p><p>depressa. Ouvi-a suster a respiração e forcei-me a responder de forma</p><p>coerente. – O que quero dizer, mamã… – ouvi-a soltar o ar com um</p><p>assobio – … é que agradeço muito a oferta, mas penso que vou recusar.</p><p>– Posso perguntar porquê? – inquiriu a mamã, em tom algo ofendido.</p><p>– É só que… acho mesmo que tenho tudo controlado por estes lados</p><p>– expliquei. – Seria melhor se… ficasses onde estás. Acho que não</p><p>podes fazer muito mais nesta fase.</p><p>– Bem, querida… se tens a certeza… Mas sou muito eficiente,</p><p>sabes? E, para ser franca, às vezes tu consegues ser uma idiota chapada.</p><p>Suspirei, o mais silenciosamente que consegui.</p><p>– Além disso – prosseguiu a mamã –, estou a ficar impaciente. As</p><p>coisas têm de avançar com esse homem, percebes? Um pouco mais de</p><p>ação, Eleanor… isso é que é preciso, minha querida. – Parecia estar</p><p>mais calma.</p><p>– Sim, mamã. Sim, tens toda a razão, claro. – Era verdade que, desde</p><p>que eu vira o músico pela primeira vez, o meu interesse e, em</p><p>consequência, o meu progresso, tinham ficado para segundo plano atrás</p><p>de questões mais urgentes nestas últimas semanas. Havia tantas outras</p><p>coisas em que pensar… Raymond, o trabalho novo, Sammy e a</p><p>família… Mas ela tinha razão.</p><p>– Vou tentar acelerar um pouco as coisas – prometi. Isto</p><p>tranquilizou-a, e começou a despedir-se. – Oh, espera, mamã.</p><p>Mencionaste duas coisas… Qual era a segunda?</p><p>– Ah, sim – lembrou-se ela, e ouvi-a soprar o fumo do cigarro para o</p><p>lado. – Queria só declarar que és um desperdício inútil de tecido</p><p>humano. Mais nada. Adeusinho, querida! – despediu-se, o tom cortante</p><p>como uma faca.</p><p>Silêncio.</p><p>@johnnieLrocks</p><p>Novidades! Vou sair dos Pilgrim Pioneers. Sem</p><p>rancores, MONTES de respeito p aquele ppl.</p><p>#artistaasolo #nasceuumaestrela (1/2)</p><p>@johnnieLrocks</p><p>Vou seguir a solo numa direção musical</p><p>diferente e + forte. + novidades em breve. Paz</p><p>#iconoclasta (2/2)</p><p>22</p><p>Como de costume, a mamã voltou a ligar na quarta-feira, o que</p><p>constitui um intervalo demasiado breve entre as nossas conversas.</p><p>– Olá! – exclamou. – Sou eu outra vez! Alguma novidade para contar</p><p>à mamã?</p><p>Na ausência de outras notícias relevantes desde segunda-feira, falei-</p><p>lhe sobre a festa de aniversário de Keith.</p><p>– Andas feita uma borboleta social, não andas, Eleanor? – comentou,</p><p>num tom desagradavelmente doce.</p><p>Não respondi; regra geral, é a opção mais segura.</p><p>– O que é que levaste vestido? Aposto que estavas ridícula. Por amor</p><p>de Deus, diz-me que não tentaste dançar, filha minha. – O meu silêncio</p><p>tenso fê-la adivinhar a resposta. – Oh, céus. Dançar é para pessoas</p><p>bonitas, Eleanor. Só de te imaginar, a bamboleares-te como uma</p><p>morsa… – Riu-se com gosto. – Oh, obrigada, muito obrigada, querida.</p><p>Já me fizeste ganhar a noite, a sério. – Riu-se outra vez. – A Eleanor, a</p><p>dançar!</p><p>– Como estás, mamã? – perguntei com toda a calma.</p><p>– Bem, querida, muito bem. Hoje é noite de chili, sempre uma</p><p>alegria. Mais tarde vamos ver um filme. Oh, as maravilhas das quartas-</p><p>feiras! – O seu tom era animado, descontraído, com uma tonalidade</p><p>quase maníaca que eu conhecia bem.</p><p>– Fui promovida, mamã – contei-lhe, incapaz de conter uma nota de</p><p>orgulho. A mamã soltou uma risada desdenhosa.</p><p>– Promovida? Que impressionante, querida! O que é que isso</p><p>significa? Mais cinco libras por mês?</p><p>Não respondi.</p><p>– Seja como for – continuou a mamã, com a voz a escorrer</p><p>condescendência –, ainda bem para ti, querida. Sinceramente, muito</p><p>bem.</p><p>Olhei para o chão e senti os olhos encherem-se de lágrimas.</p><p>Ela falou com alguém, num rosnado:</p><p>– Não disse nada! Sugeri O Sexo e a Cidade 2! Foi, sim! Pensei que</p><p>íamos votar. Hã? Outra vez? Oh, por amor de… – Depois dirigiu-se de</p><p>novo a mim. – As minhas colegas decidiram ver Os Condenados de</p><p>Shawshank outra vez, acredites ou não. É só para aí a vigésima quarta-</p><p>feira consecutiva…</p><p>»Ouve, Eleanor: não te deixes desviar do teu projeto com esses</p><p>disparates de «trabalho novo» e «festas de aniversário». Tens uma tarefa</p><p>em mãos e precisas de te concentrar nela. Sabes que as mulheres fracas</p><p>não conseguem homens fortes. Já imaginaste se conseguisses dar-me um</p><p>genro bonito, um homem como deve ser? Seria normal, não seria,</p><p>querida? Passaríamos a ser uma família normal.</p><p>Riu-se e eu ri-me também – tal conceito era simplesmente</p><p>demasiado bizarro.</p><p>– Fui amaldiçoada com filhas raparigas – continuou a mamã, soando</p><p>triste –, e sempre quis um rapaz. À falta de melhor, um genro serve…</p><p>desde que seja adequado. Já sabes: educado, atencioso, bem-</p><p>comportado. Ele possui todos estes predicados, não é, Eleanor, esse teu</p><p>projeto? Um homem bem-apessoado? Bem-falante? Sabes que sempre</p><p>tentei transmitir-te a importância de falar como deve ser e ter bom</p><p>aspeto.</p><p>– Ele parece muito simpático, mamã – tranquilizei-a. – Muito</p><p>adequado. Bonito, talentoso e bem-sucedido. Glamoroso! – acrescentei,</p><p>agora entusiasmada. Como é óbvio, não sabia quase nada sobre ele, pelo</p><p>que estava a embelezar a escassa informação que adquirira nas minhas</p><p>pesquisas. Era bastante divertido.</p><p>O tom dela, quando me respondeu, era indiferente, com uma</p><p>sugestão ameaçadora. O seu tom habitual.</p><p>– Oh, pronto, agora estou entediada. Estou farta desta conversa e</p><p>farta de esperar que concluas o teu projeto. Mãos à obra, Eleanor! Por</p><p>amor de Deus, não te dês ao trabalho de ser proactiva e andar com as</p><p>coisas para a frente. Oh, não, Deus nos livre! Por favor, continua a não</p><p>fazer nada. Vai sentar-te no teu apartamentozinho vazio a ver televisão</p><p>sozinha, como fazes. Todas. As. Noites.</p><p>Ouvi-a gritar:</p><p>– Vou já! Não comecem sem mim! – Depois, o estalido de um</p><p>isqueiro e a inalação do fumo. – Tenho de ir, Eleanor. Adeusinho!</p><p>A linha ficou silenciosa.</p><p>Sentei-me a ver televisão sozinha, como faço. Todas. As. Noites.</p><p>Suponho que uma das razões pelas quais continuaremos todos a</p><p>existir ao longo dos anos que nos foram atribuídos neste vale de</p><p>lágrimas verde e azul, é que há sempre, por mais remota que possa</p><p>parecer, a possibilidade de mudança. Nunca pensei, em todas as minhas</p><p>fantasias, que pudesse vir a olhar para o meu emprego como algo mais</p><p>do que oito horas de monotonia. Foi portanto com grande espanto que</p><p>me apercebi que, em muitos dias da semana, olhava agora para o relógio</p><p>e via que tinham passado as horas sem que eu desse por elas. O cargo de</p><p>gerente administrativa envolvia inúmeras tarefas novas que tinha de</p><p>aprender e aperfeiçoar. Nenhuma delas estava para além das capacidades</p><p>humanas, claro, mas algumas eram um tanto ou quanto complexas, e</p><p>fiquei surpreendida ao ver como o meu cérebro respondia com</p><p>entusiasmo aos novos desafios que lhe eram colocados. Os meus colegas</p><p>não tinham parecido ficar muito empolgados com a notícia de que eu</p><p>seria chefe deles, mas, pelo menos até agora, não havia sinais de motins</p><p>ou insubordinação. Eu mantinha a distância, como sempre, e deixava-os</p><p>fazer o seu trabalho (ou o que passava por trabalho, na medida em que</p><p>eles ou nunca faziam grande coisa e tinham tendência para fazer mal as</p><p>poucas tarefas que experimentavam). Por enquanto, pelo menos,</p><p>concretizar esse estado de coisas mantinha-se inalterado e, até ver, os</p><p>meus colegas não eram mais ineficazes do que antes da minha</p><p>promoção.</p><p>O novo cargo implicava uma interação mais frequente com Bob, e</p><p>descobri que</p><p>ele era, na verdade, um interlocutor muito divertido.</p><p>Partilhava comigo vários pormenores sobre a gestão quotidiana do</p><p>negócio e era deliciosamente indiscreto quando se referia aos clientes.</p><p>Conforme depressa percebi, os clientes conseguiam ser muito exigentes;</p><p>o meu contacto direto com eles continuava a ser limitado, e ainda bem.</p><p>Eram frequentemente incapazes de articular aquilo que pretendiam, e os</p><p>designers, em desespero, acabavam por criar uma representação artística</p><p>baseada nas poucas e vagas sugestões que lhes tinham conseguido</p><p>arrancar. Após muitas horas de trabalho, envolvendo uma equipa inteira,</p><p>o projeto era submetido à aprovação do cliente. Nessa altura, o cliente</p><p>respondia: «Não. Isto é precisamente aquilo que eu não quero.»</p><p>Este processo massacrante repetia-se várias vezes antes de o cliente</p><p>se declarar satisfeito com os resultados finais. Inevitavelmente, segundo</p><p>Bob, o trabalho final acabava por ser quase idêntico à primeira amostra</p><p>submetida, que o cliente pusera logo à partida de lado por a considerar</p><p>inadmissível. Não admirava, pensei, que a sala dos funcionários</p><p>estivesse sempre bem abastecida de cerveja, vinho e chocolate, e que a</p><p>equipa artística se servisse destes artigos com tanta frequência.</p><p>Entretanto, começara também a planear o almoço de Natal. De</p><p>momento tinha apenas ideias vagas, mas, tal como os nossos clientes,</p><p>estava decidida em relação ao que não queria. Nada de cadeias de</p><p>restaurantes ou hotéis, nada de peru, nada de Pai Natal; nenhum sítio</p><p>que anunciasse «entretenimento empresarial» ou «festas de escritório»</p><p>no website. Seria preciso algum tempo para encontrar o lugar ideal e</p><p>planear o evento perfeito, mas tinha ainda meses pela frente.</p><p>Raymond e eu continuávamos a almoçar juntos, mais ou menos uma</p><p>vez por semana. Era sempre num dia diferente, o que me aborrecia, mas</p><p>ele era um homem extremamente resistente à rotina (algo que não me</p><p>devia ter surpreendido). Um dia, enviou-me um email menos de vinte e</p><p>quatro horas depois de termos estado juntos, para me convidar para</p><p>almoçar outra vez no dia seguinte. Eu quase conseguia acreditar que</p><p>alguém pudesse gostar da minha companhia, ou pelo menos tolerá-la</p><p>durante um almoço breve, mas era um abuso pensar que isso podia</p><p>acontecer duas vezes na mesma semana.</p><p>Caro R, terei todo o gosto em almoçar consigo</p><p>outra vez, mas estou algo perplexa devido à</p><p>proximidade do nosso último encontro. Está tudo</p><p>em ordem? Cumprimentos, E.</p><p>Ele respondeu assim:</p><p>Tenho uma coisa para lhe contar. Vemo-nos às</p><p>12h30. R.</p><p>Estávamos já tão habituados a estes almoços que já nem era preciso</p><p>especificar o local.</p><p>Quando cheguei Raymond ainda não estava lá, por isso entretive-me</p><p>com um jornal que encontrei na cadeira do lado. Estranhamente,</p><p>aprendera a gostar deste estabelecimento pouco sofisticado; os</p><p>funcionários, embora com aparências pouco elegantes, eram, de uma</p><p>maneira geral, simpáticos e amistosos, e agora já vários me perguntavam</p><p>«O costume?» e me traziam o café e o scone de queijo sem ser preciso</p><p>eu pedir. Sei que é vaidade e superficialidade da minha parte, mas fazia-</p><p>me sentir como uma pessoa numa comédia americana, uma cliente</p><p>«habitual», com um pedido do «costume». O próximo passo seria</p><p>galhofa espirituosa e descontraída, mas infelizmente ainda não</p><p>estávamos sequer perto desse ponto. Um dos empregados – Mikey –</p><p>aproximou-se com um copo de água.</p><p>– Quer o seu já, ou está à espera do Raymond? – perguntou.</p><p>Respondi que Raymond devia estar a chegar e Mikey começou a</p><p>limpar a mesa do lado.</p><p>– Como vão as coisas? – perguntou.</p><p>– Bem – respondi. – Parece-me que estamos a aproximar-nos dos</p><p>últimos dias de verão. – Era algo que me passara pela cabeça enquanto</p><p>me dirigia ao café, ao sentir no rosto os raios fracos de sol e ver algumas</p><p>folhas vermelhas e douradas entre o verde das árvores. Mikey concordou</p><p>com um aceno.</p><p>– Só aqui estou até ao final do mês – informou.</p><p>– Oh, que pena! – exclamei. Mikey era simpático e amável e trazia</p><p>sempre trufas com os cafés, sem ser preciso pedir e sem pagamento</p><p>adicional. – Já encontrou outro emprego? – perguntei.</p><p>– Não – respondeu ele, apoiando-se numa cadeira ao meu lado. – A</p><p>Hazel está outra vez mal. – Eu sabia que Hazel era a namorada, e que</p><p>viviam nas imediações com um cão bichon frisé e uma bebé, a Lois.</p><p>– Lamento muito, Mikey – disse-lhe. Ele acenou.</p><p>– Pensavam que tinham tirado tudo da última vez, mas voltou;</p><p>espalhou-se pelos gânglios linfáticos e pelo fígado. Só queria…</p><p>– Quer passar o tempo que resta com a Hazel e a Lois, e não a servir</p><p>scones de queijo a desconhecidas – terminei por ele, e fui recompensada</p><p>com uma risada.</p><p>– É mais ou menos isso – admitiu. Preparei-me mentalmente e</p><p>pousei-lhe a mão no braço. Ia dizer qualquer coisa, mas não me ocorreu</p><p>nada que fosse indicado, por isso fiquei em silêncio e olhei para ele, na</p><p>esperança de que Mikey conseguisse intuir o que eu gostaria de lhe</p><p>dizer: que lamentava terrivelmente, que o admirava por gostar tanto de</p><p>Hazel e Lois e por cuidar delas, que compreendia, talvez melhor do que</p><p>a maioria das pessoas, o que era a perda, como as coisas deviam estar a</p><p>ser difíceis, e continuariam a ser. Por mais que amássemos alguém, nem</p><p>sempre era suficiente. O amor não basta para manter alguém em</p><p>segurança…</p><p>– Obrigado, Eleanor – murmurou Mikey. Agradecera-me!</p><p>Raymond chegou e deixou-se cair na cadeira.</p><p>– Tudo bem? – perguntou a Mikey. – Como está a Hazel?</p><p>– Vai andando, Raymond. Vou buscar a ementa.</p><p>Depois de ele se afastar, inclinei-me para Raymond.</p><p>– Já sabia que a Hazel estava outra vez doente? – perguntei.</p><p>Raymond assentiu.</p><p>– Uma merda, não é? Ela tem menos de trinta anos, e a pequena Lois</p><p>ainda não fez dois.</p><p>Abanou a cabeça. Nenhum de nós falou – não havia sobre o quê, na</p><p>verdade. Depois de pedirmos, Raymond pigarreou.</p><p>– Tenho uma coisa para lhe contar, Eleanor. Desculpe, mas é outra</p><p>má notícia.</p><p>Endireitei-me na cadeira e olhei para o teto, preparando-me.</p><p>– Diga – pedi. Há muito pouca coisa na vida que eu não consiga</p><p>imaginar ou para a qual não me consiga preparar. Nada podia ser pior do</p><p>que tudo o que eu já vivera. Sei que parece uma hipérbole, mas é uma</p><p>declaração de facto literal. Suponho que, de certa forma, isso acaba por</p><p>ser uma fonte de força.</p><p>– É o Sammy – começou Raymond.</p><p>Eu não estava à espera disso.</p><p>– Faleceu no fim de semana, Eleanor. Um ataque cardíaco</p><p>fulminante. Pelo menos, foi rápido.</p><p>Baixei a cabeça. Era e não era uma surpresa, ao mesmo tempo.</p><p>– O que aconteceu? – perguntei.</p><p>Raymond começou a comer e contou-me os pormenores entre – e</p><p>durante – garfadas. Não imagino o que seria preciso para lhe tirar o</p><p>apetite. O vírus Ébola, talvez.</p><p>– Ele estava em casa da Laura – contou – a ver televisão. Não se</p><p>sentiu mal primeiro, nada.</p><p>– Ela estava lá? – inquiri. Por favor, meu Deus, que a Laura tenha</p><p>sido poupada a isso. Tentar continuar a viver, gerir a dor e o sentimento</p><p>de culpa e o horror… não desejava isso a nenhum ser humano. Se</p><p>pudesse, assumiria com alegria o fardo por ela. Se calhar, em cima do</p><p>meu, mal daria por ele.</p><p>– Estava no andar de cima, a preparar-se para sair – disse Raymond.</p><p>– Teve um choque quando desceu e o encontrou assim no sofá.</p><p>Então a culpa não fora dela. Não o poderia ter salvado, mesmo que</p><p>tentasse. Estava tudo bem – bom, tanto quanto uma morte pode estar.</p><p>Refleti um pouco mais nos factos.</p><p>– Então ele estava sozinho quando morreu – comentei, intrigada. – A</p><p>polícia suspeita de alguém?</p><p>Raymond engasgou-se com o hambúrguer de queijo halloumi e tive</p><p>de lhe passar o copo de água.</p><p>– Por amor de Deus, Eleanor! – exclamou.</p><p>– Desculpe – pedi. – Foi só algo que me veio à cabeça.</p><p>– Sim, bom, às vezes é melhor não dizer em voz alta a primeira coisa</p><p>que nos vem à cabeça, não é? – insinuou Raymond, sem olhar para mim.</p><p>Senti-me muito mal. Sentia-me mal por Sammy e pela família, por</p><p>ter aborrecido Raymond sem intenção, pelo empregado, a namorada e</p><p>pela pobre bebé deles. Tanta morte e sofrimento a acontecer a pessoas</p><p>simpáticas, pessoas boas que não tinham feito nada para o merecer, e</p><p>sem que ninguém pudesse fazer nada para ajudar… Senti as lágrimas</p><p>encherem-me os olhos e, quanto mais tentava contê-las, mais elas</p><p>brotavam. O nó na minha garganta ardia como fogo, oh, por favor, não,</p><p>fogo não…</p><p>Raymond mudou-se para a cadeira ao lado da minha e passou-me o</p><p>braço pelos ombros. Falou em voz suave e baixa:</p><p>– Oh, Eleanor, por favor, não chore. Lamento muito… não queria</p><p>responder-lhe daquela maneira, a sério… Por favor, Eleanor…</p><p>O mais estranho – algo que eu nunca esperara – era que nos</p><p>sentíamos de facto melhor quando alguém passava o braço à nossa volta</p><p>e nos abraçava. Porquê? Seria algum instinto de mamífero, esta</p><p>necessidade de contacto humano? Raymond era quente e sólido. Senti o</p><p>cheiro do seu desodorizante e do detergente que ele usava para lavar a</p><p>roupa – e, por cima de ambas as fragrâncias, um leve cheiro a cigarros.</p><p>Um cheiro a Raymond. Encostei-me mais a ele.</p><p>Por fim, consegui recuperar o controlo das emoções e as lágrimas</p><p>embaraçosas secaram. Funguei e ele voltou para o outro lado da mesa;</p><p>remexeu no bolso do casaco e passou-me um pacote de lenços de papel.</p><p>Sorri-lhe, tirei um e assoei-me. Apercebi-me de que estava a emitir um</p><p>som muito pouco senhoril, mas que outra coisa podia fazer?</p><p>– Desculpe – pedi.</p><p>Ele sorriu levemente.</p><p>– Eu sei – respondeu. – É difícil, não é?</p><p>Demorei um instante a processar tudo o que ele me contara.</p><p>– Como está a Laura? E o Keith e o Gary?</p><p>– Estão de rastos, como seria de esperar.</p><p>– Quero ir ao funeral – declarei, em tom decidido.</p><p>– Eu também. – Bebeu um gole de cola. – Ele era um velhote</p><p>engraçado, não era?</p><p>Sorri e engoli em seco.</p><p>– Era simpático – acrescentei. – O Raymond percebeu logo isso,</p><p>mesmo quando ele estava inconsciente no meio do chão.</p><p>Raymond acenou. Estendeu o braço e apertou-me a mão.</p><p>– Pelo menos ainda teve algumas semanas com a família depois do</p><p>acidente, não foi? Semanas boas… A festa dele, os quarenta anos do</p><p>Keith… Pôde passar tempo com todas as pessoas que amava.</p><p>Acenei em concordância.</p><p>– Posso fazer-lhe uma pergunta, Raymond?</p><p>Ele olhou para mim.</p><p>– Qual é a etiqueta para funerais? Ainda temos de ir de preto? Os</p><p>chapéus ainda são de rigueur?</p><p>Ele encolheu os ombros.</p><p>– Não faço ideia… vista o que quiser, acho eu. O Sammy não era o</p><p>tipo de pessoa que se aborrecesse com essas coisas, pois não?</p><p>Refleti um pouco.</p><p>– Vou de preto – decidi –, pelo sim, pelo não. Mas sem chapéu.</p><p>– Pois, também não vou levar chapéu – garantiu Raymond, e rimo-</p><p>nos os dois. Rimo-nos muito mais do que a piada justificaria, só porque</p><p>sabia bem rir.</p><p>Não falámos no regresso ao escritório. O sol fraco incidia-nos no</p><p>rosto e ergui o meu por um momento, como um gato. Raymond estava a</p><p>arrastar os pés entre o tapete de folhas caídas, os ténis encarnados a</p><p>contrastar com os tons de bronze. Um esquilo cinzento correu em</p><p>semicírculos à nossa frente e havia no ar um cheiro quase outonal, a</p><p>maçãs e a lã. Nem sequer falámos depois de entrar. Raymond pegou-me</p><p>nas mãos e apertou-as por um segundo. Depois libertou-as e subiu as</p><p>escadas, e eu contornei a esquina em direção ao meu local de trabalho.</p><p>Sentia-me como um ovo acabado de pôr, todo mole e chocalhado por</p><p>dentro, e tão frágil que a mais pequena pressão podia quebrar-me.</p><p>Quando me sentei à secretária já tinha um email à minha espera.</p><p>Até sexta, R.</p><p>Seria necessário responder? Pareceu-me que sim, por isso mandei</p><p>apenas isto:</p><p>Bj</p><p>23</p><p>Estava a começar a apanhar o jeito desta coisa das compras. Voltara</p><p>aos mesmos armazéns e, depois de pedir conselhos a uma funcionária</p><p>diferente, comprei um vestido preto, collants pretos e sapatos pretos. Era</p><p>o meu primeiro vestido desde a infância e a sensação de ter as pernas à</p><p>mostra era muito estranha. Também desta vez, a vendedora tentara</p><p>seduzir-me com uns saltos vertiginosos – porque é que estas pessoas têm</p><p>tanta vontade de mutilar as clientes? Comecei a desconfiar de que os</p><p>calceteiros e quiropráticos tinham formado algum cartel malévolo.</p><p>Contudo, tive de concordar com ela quando salientou que o vestido preto</p><p>cintado não «combinava» com as minhas botas novas (demasiado</p><p>informais, aparentemente) nem com os meus sapatos de trabalho com</p><p>velcro (parecia que pouca coisa combinava com eles, para minha</p><p>surpresa; sempre achara que eram um exemplo de versatilidade).</p><p>Decidimo-nos por um meio-termo, uns sapatos de salto kitten</p><p>1 que,</p><p>ao contrário do que se poderia pensar, não tinham nada a ver com gatos.</p><p>Eram saltos nos quais se conseguia caminhar mas que, apesar disso,</p><p>eram «muito femininos». Em que base era isto decidido, e por quem?</p><p>Importaria? Fiz um apontamento mental para pesquisar, quando</p><p>pudesse, as políticas de género e da identidade de género. Devia haver</p><p>um livro sobre o assunto – afinal, havia livros sobre tudo.</p><p>Na mesma viagem até comprei uma mala de mão, calculando que a</p><p>minha mala gigantesca não seria adequada para um funeral: o tecido</p><p>tinha um padrão muito alegre e temi que desse nas vistas num cemitério,</p><p>e o suporte com rodas também fazia um bocadinho de barulho.</p><p>A mala pela qual me decidi era muito pouco prática, demasiado</p><p>pequena para poder levar, por exemplo, um livro de capa dura ou uma</p><p>garrafa de Glen’s. Examinei-a quando cheguei a casa, acariciando o</p><p>exterior de pele brilhante e o forro de tecido sedoso. Tinha uma corrente</p><p>dourada comprida que simplesmente se colocava sobre o ombro,</p><p>deixando as mãos livres.</p><p>Numa despesa acrescida nada pequena, comprei também um casaco</p><p>de lã preto, pelo joelho, cintado. Era quente e simples, características</p><p>que achei atraentes. Olhando para todas as minhas compras, espalhadas</p><p>em cima da cama para melhor as poder examinar, tentei silenciar as</p><p>preocupações com a despesa lembrando a mim própria que todas as</p><p>peças podiam ser usadas muitas vezes, juntas ou separadas. Possuía</p><p>agora aquilo que creio ser denominado de «um guarda-roupa cápsula»,</p><p>isto é, roupas indicadas para a maioria dos eventos sociais que o músico</p><p>e eu poderíamos frequentar juntos. Ficaria bem com estas roupas, de</p><p>braço dado com ele. Uma noite no ballet, talvez? A estreia de uma nova</p><p>peça? Sabia que ele me abriria mundos novos e inexplorados. Pelo</p><p>menos agora tinha os sapatos adequados.</p><p>Nestas últimas semanas, gastara mais dinheiro do que costumava</p><p>despender num ano. Pelos vistos, as interações sociais eram</p><p>surpreendentemente onerosas – as deslocações, as roupas, as bebidas, os</p><p>almoços, os presentes. Por vezes, acabava por ficar equilibrado – como</p><p>no caso das bebidas –, mas estava a perceber que o mais normal era</p><p>incorrer num prejuízo financeiro. Tinha algum dinheiro de lado, mas não</p><p>mais do que o equivalente a um mês de ordenado, e os cheques de</p><p>pagamento de Bob não eram de forma alguma generosos. Percebia agora</p><p>que só conseguira poupar porque nunca tinha tido necessidade de gastar</p><p>dinheiro nos aspetos sociais da vida.</p><p>A mamã gostava de viver de forma extravagante, mas depois… de</p><p>tudo mudar… eu aprendera que o dinheiro era um motivo de</p><p>preocupação, algo que devíamos racionar. Tinha de ser pedido, e depois</p><p>contado pelas minhas mãos vermelhas e gretadas. Nunca me esquecia –</p><p>nunca me deixavam esquecer – que era outra pessoa que pagava pelas</p><p>minhas roupas, por aquilo que eu comia, até pelo aquecimento do quarto</p><p>onde dormia. As famílias de acolhimento recebiam um subsídio por</p><p>cuidarem de mim, e eu estava sempre consciente de que devia fazer tudo</p><p>para que eles não o excedessem, nomeadamente não precisando de</p><p>coisas. E muito menos querendo coisas.</p><p>«Subsídio» não é uma palavra generosa e pródiga. Hoje em dia</p><p>ganho o meu próprio dinheiro, claro, mas tenho de ter cuidado com ele.</p><p>Gerir um orçamento é uma capacidade, e muito útil – afinal de contas,</p><p>se eu ficasse sem dinheiro e me visse endividada, não haveria ninguém,</p><p>mas mesmo ninguém, a quem pudesse pedir ajuda. Ficaria na miséria.</p><p>Não tenho nenhum benfeitor anónimo que me pague a renda, nem</p><p>familiares ou amigos que me pudessem emprestar</p><p>o dinheiro para</p><p>substituir um aspirador avariado ou pagar a conta do gás até eu lhes</p><p>poder devolver a quantia emprestada. Era importante não me esquecer</p><p>disso.</p><p>De qualquer maneira, não podia aparecer no funeral de Sammy com</p><p>roupas inadequadas. O vestido preto, garantiu-me a funcionária, era</p><p>elegante mas também podia ser «simplificado». Podia usar o casaco o</p><p>inverno inteiro. Ao longo dos anos, o meu colete compensara e muito o</p><p>que custara, mas ficaria com ele, claro, para o caso de voltar a ser</p><p>preciso no futuro. Pendurei tudo com cuidado no roupeiro. Estava</p><p>pronta. Venham de lá os mortos.</p><p>Sexta-feira estava um dia bonito, embora fosse impossível prever se</p><p>assim se manteria. Tomei duche e vesti as minhas roupas novas. Há</p><p>muitos anos que não usava collants, preferindo um par de peúgas</p><p>práticas por baixo das calças, mas ainda me lembrava de como os vestir.</p><p>Tive muito cuidado, pois eram finos e delicados e uma unha mal limada</p><p>podia rasgá-los num instante. Senti-me envolta por eles, de alguma</p><p>forma, como se estivesse a usar a pele de outra pessoa.</p><p>Tinha as pernas pretas e o cabelo loiro. Alongara e escurecera as</p><p>pestanas, colocara um toque de rosa nas faces e pintara os lábios de um</p><p>tom de vermelho escuro raramente encontrado na natureza. Pelas leis da</p><p>normalidade, devia parecer menos uma mulher humana do que nunca e,</p><p>contudo, parecia que esta era a aparência mais aceitável e adequada que</p><p>alguma vez apresentara perante o mundo. Era desconcertante. Suponho</p><p>que podia ter ido ainda mais longe – feito a pele brilhar com um agente</p><p>bronzeador, perfumado a minha pessoa com um spray feito de químicos</p><p>fabricados em laboratório, destilados de plantas e partes de animais.</p><p>Mas não queria fazer isso. Peguei na mala nova e fechei a porta atrás de</p><p>mim.</p><p>Por motivos de segurança, combinara o encontro com Raymond num</p><p>sítio da estrada principal perto do meu apartamento, para não ter de</p><p>revelar a minha morada, e à hora marcada parou junto a mim um veículo</p><p>com mau aspeto. O taxista deu uma olhadela rápida pelo espelho</p><p>retrovisor quando entrei para o banco de trás, onde Raymond já se</p><p>encontrava. Demorei algum tempo porque, com o vestido, quis</p><p>certificar-me de que não revelava mais pernas do que devia.</p><p>Demorava tudo tanto tempo! Antes limitava-me a tomar banho,</p><p>passar o pente pelo cabelo e enfiar as calças. Ser feminina, pelos vistos,</p><p>implicava demorar uma eternidade para fazer tudo e envolvia uma boa</p><p>dose de planeamento. Não imaginava como seria possível uma</p><p>expedição à nascente do Nilo, ou subir a um escadote para investigar</p><p>uma avaria dentro de um acelerador de partículas, com sapatos de salto</p><p>alto e collants de vidro.</p><p>Era difícil avaliar o efeito total da indumentária de Raymond, mas,</p><p>mesmo nesta posição, era evidente que ele usava uma camisa branca</p><p>engomada, com uma gravata preta e calças pretas. Não lhe conseguia ver</p><p>os pés, e rezei em silêncio para que não tivesse calçado ténis, mesmo</p><p>que fossem pretos.</p><p>– Está muito bonita – comentou.</p><p>Acenei, envergonhada com o vestido novo, e olhei outra vez para ele.</p><p>Não rapara a pequena barbicha esquisita, mas estava aparada e tinha o</p><p>cabelo bem penteado. O táxi arrancou e juntámo-nos ao tráfego lento da</p><p>manhã. O rádio ia debitando disparates e não olhámos um para o outro</p><p>nem conversámos. Não havia nada a dizer, na verdade.</p><p>O crematório ficava nos subúrbios, uma monstruosidade dos anos</p><p>setenta, de betão branco e ângulos brutais. Os jardins estavam bem</p><p>arranjados, de uma forma estéril e municipal, mas, surpreendentemente,</p><p>repletos de bonitas rosas. Havia muitas árvores adultas no perímetro, o</p><p>que me agradou. Gostava de pensar nas raízes, com a vida a circular por</p><p>elas, a serpentear debaixo deste lugar. Parámos num enorme parque de</p><p>estacionamento que estava quase cheio, apesar de serem apenas dez e</p><p>meia. O local ficava fora de mão e seria impossível aqui chegar de</p><p>transportes públicos, o que era completamente ilógico. Devia haver um</p><p>comboio ou um autocarro especial, pensei. Era um sítio que todos,</p><p>garantidamente, teríamos de visitar mais cedo ou mais tarde.</p><p>Raymond pagou ao motorista e ficámos ali parados por um instante.</p><p>– Pronta? – perguntou ele.</p><p>Acenei que sim. Havia muitas outras pessoas a caminhar em direção</p><p>ao edifício, como besouros pretos. Subimos o caminho em passo lento,</p><p>como se tivéssemos combinado que não havia pressa para deixar as</p><p>árvores, as rosas e o sol. Um carro funerário estava junto da porta da</p><p>frente e olhámos para o caixão, coberto de coroas de flores. Um caixão</p><p>era uma caixa de madeira onde estaria o cadáver de Sammy. O que teria</p><p>vestido? perguntei-me. Esperava que fosse a bonita camisola encarnada;</p><p>confortável, a cheirar a ele.</p><p>Sentámo-nos do lado esquerdo da sala, num banco não muito longe</p><p>da frente. O espaço já estava meio cheio e havia um som baixo de</p><p>conversas sussurradas, um zumbido abafado a fazer lembrar insetos,</p><p>diferente de tudo o que eu ouvira em qualquer lugar ou circunstância.</p><p>Peguei numa das folhas de papel que tinham sido colocadas nos</p><p>bancos: Samuel McMurray Thom, 1940-2017. No interior da brochura</p><p>informava o que ia acontecer, com uma lista das leituras e hinos, e de</p><p>súbito apoderou-se de mim um forte desejo de que estivesse já tudo</p><p>acabado, de não ter de estar ali a passar por aquilo.</p><p>Raymond e eu não falámos. A sala era muito mais agradável por</p><p>dentro do que o exterior sugeria, com traves de madeira e um teto alto e</p><p>abaulado. Toda a parede lateral, à esquerda de onde nos encontrávamos</p><p>sentados, era de vidro, e conseguíamos ver os relvados ondulantes e</p><p>mais daquelas árvores enormes e antigas ao fundo. Fiquei contente por</p><p>isso. A natureza devia fazer sentir a sua presença ali, pensei; a natureza</p><p>viva, não apenas flores cortadas. O sol estava agora bastante forte e as</p><p>árvores lançavam sombras curtas, apesar de o outono estar a insinuar-se</p><p>no vento que fazia estremecer as folhas. Virei-me e reparei que a sala</p><p>estava cheia; talvez uma centena de pessoas ou mais. O zumbido</p><p>ameaçava agora abafar a enfadonha música de órgão gravada.</p><p>Algo agitou o ar e o silêncio abateu-se sobre a sala. Os dois filhos de</p><p>Sammy, e quatro outros homens cujos rostos reconheci da festa,</p><p>entraram com o caixão e colocaram-no suavemente numa espécie de a</p><p>plataforma elevada com uma passadeira rolante, ao fundo da qual havia</p><p>umas cortinas de veludo vermelho. Tentei lembrar-me do que a</p><p>plataforma fazia-me lembrar algo familiar, e de repente ocorreu-me: o</p><p>tapete do supermercado, aquele onde colocamos as compras e que as</p><p>leva em direção à caixa. Inclinei-me para o comentar com Raymond,</p><p>mas ele tinha tirado um pacote de rebuçados de menta do bolso do fato e</p><p>ofereceu-me um antes que eu conseguisse falar. Aceitei, enfiei-o na boca</p><p>e chupei o rebuçado.</p><p>Outras pessoas tinham-se juntado a nós no banco, o que nos obrigara</p><p>a arrastar o traseiro para o lado de modo a criar espaço. Estava, portanto,</p><p>muito próxima do Sr. Raymond Gibbons. Reparei que ele hoje cheirava</p><p>muito bem; por causa dos rebuçados de menta, claro, mas havia também</p><p>um cheiro limpo a sabonete e algo a fazer lembrar madeira, como cedro.</p><p>Ainda não o vira fumar um só cigarro. Se calhar, até Raymond achava</p><p>que seria inapropriado fumar à porta de um crematório.</p><p>O resto da família entrou e sentou-se ao lado dos filhos de Sammy</p><p>no banco da frente; Laura estava sozinha e parecia impossivelmente</p><p>glamorosa. Óculos escuros! Dentro de casa! Espantoso. A seguir entrou</p><p>um sacerdote de ar bonacheirão. Um homem, sentado atrás de um</p><p>teclado a um canto, fletiu os dedos e começou a tocar, e todos nos</p><p>levantámos. A letra do hino estava impressa no folheto, mas descobri</p><p>que me lembrava bem dela, da infância. O coro de vozes era de extrema</p><p>má qualidade, mais como um conjunto de murmúrios desafinados, e a</p><p>voz desagradável do sacerdote era demasiado alta, talvez por ter um</p><p>microfone na lapela. Devia mesmo desligá-lo durante os hinos, pensei –</p><p>não havia necessidade de amplificar aquela berraria. Raymond, para</p><p>minha</p><p>grande surpresa, tinha uma agradável voz de tenor e estava a</p><p>cantar como devia ser, ao contrário da maioria das pessoas. Quando é</p><p>que tínhamos começado a ter vergonha de cantar em público? Seria por</p><p>causa do declínio no número de frequentadores da igreja? E no entanto a</p><p>programação televisiva estava cheia de concursos de canto em que as</p><p>pessoas, por menos talentosas que fossem, não tinham a mínima</p><p>vergonha de participar. Talvez se interessem apenas por atuações a solo.</p><p>Com certeza que este era o pior dos desrespeitos – ir ao funeral de</p><p>um homem e fingir que cantavam os hinos que, por mais terríveis que</p><p>fossem, tinham sido escolhidos de propósito para celebrar a vida dele.</p><p>Comecei a cantar mais alto. Raymond e eu estávamos a fazer mais</p><p>barulho do que as quatro filas seguintes todas juntas, e fiquei contente</p><p>por isso. As palavras eram inacreditavelmente tristes e, para uma ateia</p><p>como eu, desprovidas de esperança ou conforto, mas, mesmo assim,</p><p>tínhamos o dever de as cantar o melhor que conseguíssemos, e de o fazer</p><p>com orgulho, em homenagem a Sammy. Sentei-me quando acabei,</p><p>contente por Raymond e eu lhe termos mostrado o respeito que ele</p><p>merecia. Várias pessoas se viraram para olhar para nós, creio que por</p><p>terem apreciado o nosso tributo vocal.</p><p>O sacerdote falou sobre a vida de Sammy; foi interessante saber que</p><p>ele tinha crescido numa pequena aldeia no Nordeste, numa quinta de</p><p>ovelhas. Juntara-se à marinha mercante depois de deixar a escola, mas</p><p>depressa se fartara da vida no mar e desembarcara em Glasgow com dez</p><p>libras no bolso, um fato novo e vontade nenhuma de voltar ao campo.</p><p>Conhecera Jean no Woolworths, quando fora comprar agulha e linha. O</p><p>sacerdote, com ar muito satisfeito, mencionou que os dois tinham</p><p>costurado uma vida feliz, depois disso. Seguiu-se uma breve parte</p><p>religiosa – os disparates habituais – e depois, como o funcionário da</p><p>caixa no Tesco, o sacerdote fez o tapete rolante começar a andar e</p><p>Sammy foi registado.</p><p>Com ar muito alegre e um grande sorriso, como se esta fosse a</p><p>melhor parte de todo este evento terrível, o sacerdote anunciou que</p><p>íamos cantar o último hino. Raymond e eu fizemos um esforço corajoso,</p><p>mas é impossível cantar quando estamos a chorar – há um nó na</p><p>garganta, como uma pedra ali alojada, e a música não consegue passar.</p><p>Raymond assoou-se e passou-me o pacote de lenços de papel, que</p><p>aceitei, agradecida.</p><p>A família, disse-nos o sacerdote, ficaria muito feliz se nos</p><p>juntássemos a eles a seguir, no hotel Hawthorn House, para uma ligeira</p><p>refeição. A congregação saiu, trocando apertos de mão e lugares comuns</p><p>sem sentido. Fiz o mesmo. Havia um cesto de recolha de fundos para a</p><p>Fundação Cardíaca Britânica «em lugar de flores» e vi Raymond colocar</p><p>uma nota de vinte libras. Eu pus três moedas de uma libra. Quando</p><p>muito, estava até a ser demasiado generosa. A investigação de novos</p><p>medicamentos e tratamentos eficazes para as doenças cardíacas custa</p><p>centenas de milhões de libras. Três libras ou trezentas – dificilmente ia</p><p>fazer a diferença entre a descoberta e a não descoberta de uma cura,</p><p>afinal de contas.</p><p>Sentei-me num muro baixo atrás do crematório e virei a cara para o</p><p>sol. Sentia-me absolutamente exausta. Instantes depois, Raymond</p><p>sentou-se ao meu lado e ouvi o estalido do seu isqueiro. Nem sequer tive</p><p>energia para me afastar. Ele soprou uma nuvem de fumo.</p><p>– Está tudo bem? – perguntou.</p><p>Acenei com a cabeça que sim.</p><p>– E consigo?</p><p>Raymond encolheu os ombros.</p><p>– Não sou grande fã de funerais, para ser franco – confessou.</p><p>Afastou o olhar. – Faz-me lembrar o do meu pai. Já foi há alguns anos,</p><p>mas ainda é difícil, sabe?</p><p>Acenei; fazia sentido. O tempo só alivia a dor da perda, não a apaga.</p><p>– Não quero mesmo, mesmo, mesmo ir ao Hawthorn House para</p><p>uma refeição ligeira, Raymond – afirmei. – Quero parar de pensar na</p><p>morte. Só quero ir para casa, vestir roupa normal e ver televisão.</p><p>Raymond apagou o cigarro e enterrou a ponta no canteiro de flores</p><p>atrás de nós.</p><p>– Ninguém quer ir a estas coisas, Eleanor – contrapôs, com</p><p>gentileza. – Mas temos de ir. Pela família. – Devo ter parecido triste,</p><p>porque ele acrescentou, em tom carinhoso e paciente: – Não é preciso</p><p>ficar muito tempo. Basta aparecer, beber um chá, comer um folhado de</p><p>salsicha… Sabe como é.</p><p>– Bom, pelo menos espero que os folhados tenham um elevado</p><p>conteúdo de carne e uma massa leve – retorquiu, mais com esperança do</p><p>que expectativa, e pus a mala ao ombro.</p><p>O Hawthorn House ficava perto do crematório, pelo que fomos a pé.</p><p>Quando a rececionista sorriu, foi impossível não reparar que só tinha um</p><p>dente à frente; os restantes molares eram exatamente da cor de mostarda.</p><p>Não sou pessoa de julgar a aparência pessoal dos outros, mas com</p><p>franqueza; de todos os funcionários disponíveis, esta mulher seria de</p><p>facto a melhor opção para a receção? Ela conduziu-nos à suite Bramble</p><p>com um sorriso compreensivo e desdentado.</p><p>Fomos dos últimos a chegar, já que a maioria das pessoas percorrera</p><p>a curta distância de carro. Suponho que o crematório seja um sítio com</p><p>muito movimento e precisem dos lugares de estacionamento. Não sei se</p><p>gostaria de ser cremada. Acho que talvez preferisse que me dessem a</p><p>comer aos animais do jardim zoológico. Seria ambientalmente</p><p>consciente e uma bela guloseima para os carnívoros maiores.</p><p>Poderíamos pedir para fazer isso? Fiz um apontamento mental para</p><p>escrever à Associação Mundial da Vida Selvagem e tentar saber.</p><p>Fui dar os meus pêsames a Keith, e depois procurei Gary para fazer</p><p>o mesmo. Ambos pareciam esmagados pela dor, o que era</p><p>compreensível. Uma pessoa demora muito tempo a aprender a viver com</p><p>a perda, se é que alguma vez consegue. Ao fim destes anos todos, ainda</p><p>sou uma obra em curso nesse aspeto. Os netos estavam sentados em</p><p>silêncio a um canto, intimidados, talvez, pela atmosfera pesada. A outra</p><p>pessoa a quem tinha de dar os meus pêsames era Laura, mas não a</p><p>estava a ver. E, regra geral, ela era fácil de encontrar. Hoje, além dos</p><p>óculos escuros enormes, tinha uns sapatos extraordinariamente altos, um</p><p>vestido preto curto muito decotado e o cabelo apanhado no alto da</p><p>cabeça numa criação artística que lhe adicionava vários centímetros de</p><p>altura.</p><p>Uma vez que não havia sinais dela nem da prometida refeição, fui à</p><p>procura da casa de banho. Apostei comigo mesma que haveria uma</p><p>tigela empoeirada de pot-pourri de alperce ao lado dos lavatórios, e</p><p>tinha razão. No regresso, vi um sapato de salto alto familiar a espreitar</p><p>por trás de uma cortina. Havia um banco por baixo da janela, no qual</p><p>Laura estava sentada ao colo de um homem que, depressa percebi, era</p><p>Raymond, embora estivessem tão enrolados um no outro que demorei</p><p>um instante a ver a cara dele para ter a certeza. Reparei que Raymond</p><p>calçava sapatos de pele pretos. Então possuía pelo menos um par.</p><p>Voltei para a suite Bramble sem os incomodar; não me tinham visto,</p><p>pois estavam concentrados noutras coisas. Este era um cenário</p><p>demasiado familiar para mim; estar sozinha, a olhar para o nada. Não</p><p>havia problema algum. Era normal. Depois do incêndio, em todas as</p><p>escolas novas, eu esforçava-me, mas simplesmente havia algo em mim</p><p>que não se integrava. Ao que parecia, não existia um buraco social em</p><p>forma de Eleanor para eu me encaixar.</p><p>O problema era que não tinha jeito para fingir. Depois do que</p><p>acontecera naquela casa em chamas, tendo em conta tudo o que se</p><p>passava lá, não via o sentido de ser outra coisa senão franca com o</p><p>mundo. Não tinha, literalmente, nada a perder. Porém, através de uma</p><p>observação cuidadosa a partir das margens, percebera que o sucesso</p><p>social se baseia amiúde numa certa dose de fingimento. As pessoas</p><p>populares às vezes têm de se rir de coisas que não acham muito</p><p>engraçadas, de fazer coisas que não lhes apetece por aí além fazer, com</p><p>pessoas cuja companhia não apreciam. Eu não. Decidira, há muitos</p><p>anos, que se a escolha era entre isso ou estar sozinha, então ficaria</p><p>sozinha. Era mais seguro assim. O sofrimento é o preço que</p><p>se paga pelo</p><p>amor, dizem. Bom, é um preço demasiado elevado.</p><p>O buffet estava agora aberto – sim, havia folhados de salsicha, mas</p><p>também sanduíches. Os funcionários do hotel serviam chá e café,</p><p>praticamente indistinguíveis um do outro, em chávenas brancas</p><p>industriais. Não podia ser. Eu não estava com disposição para um</p><p>líquido castanho quente, nem pensar. O que me apetecia era uma vodca</p><p>fresca e transparente.</p><p>Todos os hotéis têm bares, certo? Eu não era frequentadora habitual</p><p>da hotelaria, mas sabia que os quartos e bares eram a sua raison d’être.</p><p>Falei com a senhora dentalmente incapacitada da receção, que me</p><p>indicou outro corredor comprido ao fundo do qual se encontrava o bar,</p><p>com o nome pouco imaginativo de Hawthorn Lounge. Parei à entrada e</p><p>olhei em volta. O local estava deserto, com as máquinas de jogo a piscar</p><p>apenas para si próprias. Entrei. Só eu. Eleanor, sozinha.</p><p>Um empregado de bar estava a ver televisão e a limpar</p><p>distraidamente os copos.</p><p>– Leilões de casas – referiu, virando-se para mim. Lembro-me de</p><p>pensar, surpreendida, que ele até era atraente, e depois de ralhar comigo</p><p>própria. O meu espanto derivava do preconceito de que pessoas bonitas</p><p>e glamorosas não estariam a trabalhar num hotel como o Hawthorn</p><p>House à hora de almoço de uma sexta-feira. Sim, a rececionista</p><p>confirmara a minha ideia inicial, mas, com franqueza, era uma vergonha</p><p>ter estes preconceitos – de onde raio viriam? (Uma vozinha sussurrou a</p><p>resposta na minha cabeça: mamã.)</p><p>O empregado sorriu, revelando os dentes bonitos e os olhos azuis-</p><p>claros.</p><p>– Um monte de tretas – continuou, num sotaque tão carregado que</p><p>conseguiria raspar a tinta das paredes. Vês? Eu bem te disse! murmurou</p><p>a mamã.</p><p>– É? – perguntei. – Infelizmente, não costumo estar em casa durante</p><p>o dia para o ver.</p><p>– Veja aqui, se quiser – convidou o empregado de bar, com um</p><p>encolher de ombros.</p><p>– Posso?</p><p>– Porque não? Não há muito mais para fazer, pois não? – aventou</p><p>ele, indicando o bar vazio com um gesto largo.</p><p>Subi para um banco alto ao balcão – algo que sempre quis</p><p>experimentar – e pedi uma vodca com cola. Ele preparou a bebida</p><p>devagar, adicionou gelo e limão sem me perguntar se queria e empurrou</p><p>o copo na minha direção.</p><p>– Funeral? – indagou.</p><p>Perguntei a mim própria como é que ele saberia, mas depois percebi</p><p>que estava completamente vestida de preto, que a maquilhagem do meu</p><p>olho esfumado desbotara um bocadinho com as lágrimas e que não</p><p>havia outra razão para estar neste sítio, a esta hora do dia. Assenti com</p><p>um aceno. Não era preciso mais conversas, e instalámo-nos ambos a ver</p><p>como Iain e Dorothy se sairiam com a casa dos anos setenta que tinham</p><p>adquirido num leilão por noventa e cinco mil libras, com intenção de</p><p>renovar a casa de banho, instalar uma cozinha nova e abrir a parede</p><p>entre a sala e a casa de jantar.</p><p>– «O toque final» – anunciara o apresentador –, «foi pintar a porta da</p><p>frente… neste bonito tom de verde.»</p><p>– Green door – respondeu o empregado de bar, sem hesitar, e</p><p>segundos depois a canção com esse nome começou a tocar. Rimo-nos</p><p>ambos e ele serviu-me outra vodca sem ser preciso pedir-lhe.</p><p>Estávamos agora a ver um programa de comentários da atualidade</p><p>que eu também não conhecia. Já ia na quarta vodca e o funeral estava na</p><p>minha mente, mas não doía – como quando reparamos que temos uma</p><p>pedra no sapato, mas estamos sentados e não a andar.</p><p>Pensei que se calhar devia ir provar um folhado de salsicha, ou pelo</p><p>menos enfiar alguns na mala para mais tarde, mas depois lembrei-me de</p><p>que trouxera a minha mala nova e minúscula, na qual não conseguiria</p><p>guardar mais do que, no máximo, dois folhados. Abanei a cabeça e</p><p>murmurei «tsc-tsc».</p><p>– O que se passa? – perguntou o empregado. Não tínhamos inquirido</p><p>o nome um do outro; por algum motivo, não parecera necessário.</p><p>Inclinei-me para a frente e olhei para o copo, numa pose estereotipada.</p><p>– Oh, não é nada – respondi, em tom descontraído. – Se calhar devia</p><p>comer qualquer coisa.</p><p>O empregado, que se tornara menos atraente à medida que o tempo</p><p>passava, pegou-me no copo, reabasteceu-o de vodca com um pouco de</p><p>cola e devolveu-mo.</p><p>– Para quê tanta pressa? – perguntou. – Fique e faça-me mais um</p><p>bocadinho de companhia.</p><p>Olhei em volta; o bar continuava deserto.</p><p>– Talvez precise de se deitar um bocadinho depois deste, hã? –</p><p>sugeriu, dando um toque no meu copo e inclinando-se para mim. Estava</p><p>tão perto que lhe conseguia ver os poros ao lado do nariz, alguns deles</p><p>com pontos negros microscópicos.</p><p>– Talvez – respondi. – Às vezes preciso mesmo de me deitar um</p><p>bocadinho depois de beber vodca.</p><p>O empregado abriu um sorriso predador.</p><p>– Dá-lhe vontade, não é?</p><p>Tentei erguer as sobrancelhas numa pergunta muda mas,</p><p>estranhamente, só consegui levantar uma. Bebera de mais porque estava</p><p>a sentir demasiada dor e não sabia onde a pôr nem o que fazer com ela</p><p>senão empurrá-la para baixo com a vodca. Era simples, na verdade.</p><p>– Como assim? – perguntei, apercebendo-me de que estava a</p><p>pronunciar as consoantes de forma algo indistinta.</p><p>– Os funerais – respondeu, aproximando-se mais, até ter a cara quase</p><p>encostada à minha. Cheirava a cebolas. – Não precisa de ter vergonha –</p><p>continuou. – Tanta morte… a seguir, não acha que dá mesmo vontade</p><p>de…</p><p>– Eleanor! – Senti uma mão no ombro e virei-me no banco,</p><p>excecionalmente devagar.</p><p>– Oh, olá, Raymond! – exclamei. – Este é… na verdade, não sei.</p><p>Desculpe, como se chama?</p><p>O empregado de bar afastara-se com uma velocidade extraordinária</p><p>para a outra ponta do balcão, onde recomeçara a limpar copos e a ver</p><p>televisão. Raymond lançou-lhe um olhar decididamente pouco amistoso</p><p>e pôs uma nota de vinte em cima do balcão.</p><p>– Espere, Raymond – pedi, pegando na mala nova –, tenho aqui</p><p>dinheiro…</p><p>– Vamos – interrompeu ele, puxando-me do banco de forma muito</p><p>pouco graciosa. – Fazemos contas depois.</p><p>Corri atrás dele nos meus sapatos de salto.</p><p>– Raymond – chamei, puxando-lhe a manga. Ele olhou para mim. –</p><p>Não vou fazer uma tatuagem. Já decidi.</p><p>Raymond pareceu confuso, e apercebi-me de que me tinha esquecido</p><p>de lhe contar que estava a pensar nisso desde que falara com o</p><p>empregado de bar no The Cuttings. Ajudou-me a sentar num banco por</p><p>baixo de uma janela no corredor – não o mesmo onde o vira antes – e</p><p>deixou-me ali. Olhei em volta, tentando perceber que horas eram e se já</p><p>teriam cremado Sammy, ou se guardariam os corpos todos nas traseiras</p><p>até ao fim do dia para terem combustível suficiente para a fogueira.</p><p>Raymond voltou com uma chávena de chá numa mão e um prato de</p><p>salgadinhos na outra.</p><p>– Beba e coma isto – ordenou –, e não se mexa daqui até eu voltar.</p><p>Descobri que estava esfomeada. Várias pessoas passaram por mim,</p><p>mas ninguém me viu no meu esconderijo. Era uma sensação agradável.</p><p>O banco era confortável e o corredor estava quente, e sentia-me como</p><p>um ratinho num ninho aconchegado. Quando dei por mim, Raymond</p><p>tinha voltado e estava a sacudir-me, com gentileza mas de forma</p><p>insistente.</p><p>– Acorde, Eleanor – disse. – São quatro e meia. Hora de ir embora.</p><p>Apanhámos um táxi até ao apartamento de Raymond. Ficava no lado</p><p>sul da cidade, uma área que eu não conhecia muito bem e que, regra</p><p>geral, não tinha motivos para visitar. Os companheiros de casa dele não</p><p>estavam, percebi com alívio, enquanto entrava com passo cambaleante e</p><p>me esforçava por não rir. Ele conduziu-me de forma muito pouco</p><p>galante para a sala, que era dominada por uma televisão enorme. Havia</p><p>várias consolas de jogos – pelo menos presumi que o fossem –</p><p>espalhadas à frente do ecrã. Além deste caos informático, a sala estava</p><p>surpreendentemente limpa e arrumada.</p><p>– Não parece uma casa de rapazes – comentei, espantada.</p><p>Raymond riu-se.</p><p>– Não somos animais, Eleanor. Na verdade, eu tenho jeito para</p><p>aspirar e o Desi é um bocadinho maníaco por limpezas.</p><p>Acenei, aliviada por saber que, quando me sentasse, nada de</p><p>estranho se colaria aos meus collants e vestido novo.</p><p>– Chá? – ofereceu Raymond.</p><p>– Suponho que não tem vodca nem Magners, pois</p><p>não? – perguntei.</p><p>Ele ergueu uma sobrancelha. – Já estou bem, graças aos folhados de</p><p>salsicha e àquela pequena sesta – assegurei; e era verdade. Sentia-me</p><p>leve e limpa, não embriagada; apenas muito agradavelmente entorpecida</p><p>aos sentimentos mais cortantes.</p><p>Raymond riu-se de novo.</p><p>– Bom, suponho que também bebia um copo de tinto – admitiu.</p><p>– Tinto quê? – perguntei.</p><p>– Vinho, Eleanor. Merlot, acho eu… O que estava em promoção no</p><p>Tesco esta semana.</p><p>– Ah, o Tesco… Nesse caso, penso que lhe faço companhia. Mas só</p><p>um copo – acrescentei. Não queria que Raymond pensasse que eu era</p><p>dipsomaníaca.</p><p>Ele voltou com dois copos e uma garrafa com tampa de rosca.</p><p>– Pensei que o vinho tinha rolhas – comentei.</p><p>Raymond ignorou-me.</p><p>– Ao Sammy! – brindou, e erguemos os copos como as pessoas</p><p>fazem na televisão. O vinho sabia a calor e veludo, e um bocadinho a</p><p>compota queimada.</p><p>– Vá com calma! – preveniu Raymond, abanando o dedo de forma</p><p>que, percebi, pretendia ser bem-humorada. – Não quero que caia do</p><p>sofá!</p><p>Sorri.</p><p>– Como foi a sua tarde? – perguntei, depois de mais um golinho</p><p>delicioso. Raymond bebeu um gole generoso.</p><p>– Além de a ter salvado das garras de um tarado?</p><p>Olhei para Raymond, sem perceber o que queria dizer.</p><p>– Oh, a tarde foi boa – retorquiu, quando percebeu que eu não sabia</p><p>o que responder. – Correu tão bem como se pode esperar nestas</p><p>ocasiões. Amanhã é que eles vão cair em si. O funeral é uma grande</p><p>distração; uma pessoa anda ocupada com os preparativos, com decisões</p><p>estúpidas sobre scones ou biscoitos, os hinos…</p><p>– Os hinos eram maus! – exclamei.</p><p>– … e depois, no dia propriamente dito, com a preocupação de</p><p>agradecer às pessoas, o cortejo funerário e todas essas coisas… Por falar</p><p>nisso, a família mandou agradecer a sua presença – terminou. Reparei</p><p>que era ele que estava a beber o vinho todo; já voltara a encher o copo</p><p>enquanto eu só tinha dado dois goles. – Mas os dias e as semanas</p><p>seguintes… é então que se torna difícil.</p><p>– Foi assim para si? – questionei.</p><p>Ele acenou, confirmando. Acendera a lareira, uma daquelas a gás</p><p>que imitam as verdadeiras, e olhámos ambos para as chamas. Deve</p><p>haver uma qualquer ligação primitiva nos nossos cérebros, um vestígio</p><p>de tempos ancestrais, algo que faz com que não consigamos evitar olhar</p><p>para o fogo, vê-lo mover-se e dançar, afastando espíritos maus e animais</p><p>perigosos… É o que o fogo faz, não é? Só que também pode fazer outras</p><p>coisas.</p><p>– Quer ver um filme, Eleanor? Para nos animarmos um bocadinho?</p><p>Pensei nisso.</p><p>– Um filme seria perfeito – concordei.</p><p>Raymond saiu da sala e voltou com outra garrafa de vinho e um</p><p>grande pacote de batatas fritas. «Pacote para partilhar», dizia (motivo</p><p>pelo qual eu nunca comprara um destes). Raymond abriu-o, colocou-o</p><p>em cima da mesa em frente do sofá onde estávamos sentados, e depois</p><p>encheu os copos. Saiu de novo e voltou com um edredão que, calculei,</p><p>teria tirado da cama, e uma manta quente com ar confortável, vermelha</p><p>como a camisola de Sammy, que me deu. Descalcei os sapatos e</p><p>aconcheguei-me debaixo da manta enquanto ele mexia no que me</p><p>pareceu ser uns dez comandos. A televisão enorme acendeu-se e ele</p><p>passou por vários canais.</p><p>– Que acha deste? – perguntou, apontando para o ecrã enquanto se</p><p>instalava debaixo do edredão. O filme selecionado era Os Filhos do</p><p>Deserto. Eu não fazia ideia do que seria, mas apercebi-me de que me</p><p>contentaria com o visionamento de um programa de golfe se isso</p><p>implicasse ficar ali sentada com Raymond, no quentinho!</p><p>– Pode ser – respondi. Ele estava prestes a carregar no play quando o</p><p>detive. – Raymond – lembrei-me de repente –, não devia estar com a</p><p>Laura?</p><p>Ele pareceu abalado.</p><p>– Vi-vos juntos hoje – continuei – e na festa do Keith no clube de</p><p>golfe.</p><p>O rosto dele permaneceu impassível.</p><p>– Ela está com a família, e é assim que deve ser – respondeu,</p><p>encolhendo os ombros. Senti que não queria falar mais sobre o assunto e</p><p>por isso acenei sem dizer nada.</p><p>– Pronta? – perguntou Raymond.</p><p>O filme, a preto e branco, era sobre um homem gordo e esperto, e</p><p>um homem magro e estúpido, que se tinham juntado à Legião</p><p>Estrangeira, apesar de serem manifestamente inadequados para tal. A</p><p>dada altura, Raymond riu-se tanto que entornou vinho no edredão.</p><p>Pouco depois, engasguei-me numa batata frita e ele teve de pôr o filme</p><p>em pausa para me dar palmadas nas costas. Fiquei muito desapontada</p><p>quando o filme acabou, e também por ver que tínhamos comido as</p><p>batatas fritas todas e bebido a maior parte do vinho, apesar de Raymond</p><p>ter ingerido muito mais do que eu – ao que parecia, não conseguia beber</p><p>vinho tão depressa como vodca ou Magners.</p><p>Ele foi à cozinha, em passo um pouco cambaleante, e reapareceu</p><p>com um grande pacote de amendoins.</p><p>– Merda – lembrou-se, batendo com a mão na testa. – Tigela.</p><p>Voltou pouco depois com um recipiente, para onde tentou despejar</p><p>os amendoins. A sua pontaria era fraca e começou a entorná-los sobre a</p><p>mesa. Desatei a rir – era tal e qual como a rotina do Bucha e Estica – e</p><p>pouco depois estávamos os dois no meio de grande galhofa. Raymond</p><p>apagou a televisão e pôs música, através de outro misterioso aparelho</p><p>com controlo remoto. Não reconheci a melodia, mas era agradável;</p><p>suave e pouco exigente. Raymond mastigou um punhado de amendoins.</p><p>– Eleanor – começou, com migalhas de amendoim a cair da boca –,</p><p>posso fazer-lhe uma pergunta?</p><p>– Pode, claro – retorquiu, à espera que ele engolisse o que tinha na</p><p>boca antes de voltar a falar.</p><p>Raymond olhou com atenção para mim.</p><p>– O que aconteceu à sua cara? Não tem de… – inclinou-se depressa</p><p>e tocou-me no braço por cima da manta – … não tem, de maneira</p><p>nenhuma, de me contar, se não quiser. Estou apenas a ser um filho da</p><p>mãe curioso!</p><p>Sorri e bebi um gole de vinho.</p><p>– Não me importo de lhe contar, Raymond – respondi, e percebi,</p><p>para minha surpresa, que era verdade; queria mesmo partilhar aquela</p><p>informação com ele. Raymond não mo perguntara por curiosidade</p><p>mórbida ou para fazer conversa; estava de facto interessado. É fácil de</p><p>perceber.</p><p>– Foi num incêndio – expliquei-lhe –, quando tinha dez anos. Um</p><p>incêndio em casa.</p><p>– Céus! – exclamou Raymond. – Deve ter sido terrível. – Houve uma</p><p>longa pausa, e quase consegui ver as demais perguntas a cristalizarem-</p><p>se, como se as letras lhe saíssem da cabeça e formassem palavras no ar.</p><p>– Um curto-circuito? A fritadeira?</p><p>– Foi ateado de propósito – respondi, sem mais explicações.</p><p>– Meu Deus, Eleanor! – exclamou Raymond. – Fogo posto?</p><p>Bebi mais um gole de vinho aveludado e não respondi.</p><p>– O que aconteceu a seguir? – indagou.</p><p>– Bem, já lhe contei que não conheci o meu pai. Depois do incêndio</p><p>fui recolhida pelo sistema. Lares de acolhimento, instituições, mais lares</p><p>de acolhimento… Mudava-me mais ou menos de dezoito em dezoito</p><p>meses, acho eu. Entrei na universidade aos dezassete anos e a câmara</p><p>municipal arranjou-me um apartamento. Aquele onde ainda hoje moro.</p><p>Ele parecia tão triste que me estava a deixar triste também.</p><p>– Raymond não é uma história assim tão invulgar, a sério –</p><p>assegurei-lhe. – Há muitas pessoas que crescem em circunstâncias</p><p>muito, muito piores. É apenas um facto da vida.</p><p>– Isso não significa que esteja certo – contrapôs.</p><p>– Sempre tive uma cama para dormir, comida para comer, roupas e</p><p>sapatos para usar. Sempre fui supervisionada por um adulto. Há milhões</p><p>de crianças no mundo que, infelizmente, não podem afirmar o mesmo.</p><p>Se pensarmos assim, até sou uma pessoa de sorte.</p><p>Raymond parecia prestes a chorar – devia ser por causa do vinho.</p><p>Dizem que deixa as pessoas mais emotivas. Senti as perguntas por fazer</p><p>suspensas entre nós, como fantasmas. Não perguntes, não perguntes,</p><p>pensei, desejando com todas as minhas forças, de dedos cruzados por</p><p>baixo da manta.</p><p>– E a sua mãe, Eleanor? O que lhe aconteceu?</p><p>Engoli o resto do vinho o mais depressa que consegui.</p><p>– Preferia não falar sobre a mamã, Raymond, se não se importa.</p><p>Ele pareceu surpreendido e – esta era uma reação familiar – um</p><p>pouco desapontado. No entanto,</p><p>não insistiu.</p><p>– Como quiser, Eleanor. Pode falar comigo sempre que desejar; sabe</p><p>disso, não sabe?</p><p>Acenei que sim; para minha surpresa, descobri que sabia mesmo.</p><p>– A sério, Eleanor – insistiu Raymond, mais sério do que o costume</p><p>por causa do vinho. – Agora somos amigos, não somos?</p><p>– Claro – respondi, radiante.</p><p>O meu primeiro amigo! Sim, era um reparador de computadores</p><p>mal-amanhado, com uma série de péssimos hábitos sociais, mas mesmo</p><p>assim – amigos! Demorara sem dúvida muito tempo a arranjar um</p><p>amigo; estava perfeitamente consciente de que as pessoas da minha</p><p>idade tinham pelo menos um ou dois desses. Não tentara afastar os</p><p>outros, nem os procurara; simplesmente, sempre me fora difícil</p><p>descobrir pessoas como eu. Depois do incêndio, nunca mais consegui</p><p>encontrar ninguém que preenchesse os espaços que tinham sido criados</p><p>dentro de mim. Não posso queixar-me; a culpa foi toda minha, afinal de</p><p>contas. De qualquer maneira, mudara-me tantas vezes durante a infância</p><p>que era difícil manter o contacto com as pessoas, mesmo que eu</p><p>quisesse. Tantos lares de acolhimento, todas aquelas escolas novas… Na</p><p>universidade apaixonara-me pelos clássicos e dedicara-me ao trabalho</p><p>com vontade. Perder algumas noites de diversão para ter notas máximas</p><p>e obter elogios generosos dos meus tutores parecera-me uma troca justa.</p><p>E, claro, durante alguns anos tivera Declan. Ele não gostava que eu</p><p>socializasse sem ele. Nem com ele, para dizer a verdade.</p><p>Depois de acabar o curso, fora trabalhar logo para a empresa de Bob</p><p>e Deus sabia que não havia lá ninguém como eu. Depois de nos</p><p>habituarmos a estar sozinhos, torna-se normal. Pelo menos, fora o que</p><p>acontecera comigo.</p><p>Então, porque queria Raymond agora ser meu amigo? Talvez</p><p>também se sentisse sozinho. Ou tivesse pena de mim. Talvez – era</p><p>incrível, mas supus que podia ser possível – até me achasse mesmo</p><p>simpática. Quem sabia? Virei-me para ele com intenção de perguntar</p><p>porquê, de lhe dizer como estava contente por ter enfim encontrado um</p><p>amigo, mas ele tinha a cabeça tombada para o peito e a boca um pouco</p><p>entreaberta. No entanto, depressa despertou.</p><p>– Não estava a dormir – balbuciou. – Só a… a descansar os olhos um</p><p>bocadinho. Foi um dia cansativo.</p><p>– É verdade – concordei, com sinceridade. Calcei-me e pedi-lhe para</p><p>me chamar um táxi. Fiquei horrorizada ao perceber que eram quase nove</p><p>da noite. Espreitei ansiosamente entre as cortinas. Já estava escuro. Mas</p><p>um táxi seria seguro. Os motoristas eram todos investigados pela polícia,</p><p>não eram?</p><p>Raymond desceu comigo até à rua e abriu-me a porta do táxi.</p><p>– Boa viagem, Eleanor – desejou. – E bom fim de semana. Vemo-</p><p>nos na segunda, sim?</p><p>– Até segunda, Raymond – respondi, e acenei-lhe até o táxi virar a</p><p>esquina e deixar de o ver.</p><p>1 Kitten significa, à letra, «gatinho», embora neste caso se refira ao salto médio e fino do calçado</p><p>de senhora. (N. T.)</p><p>24</p><p>@johnnieLrocks</p><p>Alerta! Concerto despedida dos Pilgrim</p><p>Pioneers. Acabar em grande. Mais detalhes em</p><p>breve.</p><p>#anãoperder #concertodoséculo #libertarolastro</p><p>Desta vez, seria perfeito. Eu vira a publicação dele no Twitter e,</p><p>poucas horas depois, os meus olhos ficaram presos no pequeno cartaz na</p><p>montra de uma loja de música independente perto do escritório. O rosto</p><p>atraente fez-me estacar de repente. Daí a duas semanas. Numa terça-</p><p>feira à noite. Perfeito. A mão do destino mais uma vez, a movimentar-</p><p>nos como peças num tabuleiro de xadrez. E eu tinha o rei debaixo de</p><p>olho.</p><p>Sem esquecer o erro cometido no The Cuttings, memorizei o nome</p><p>do local e, assim que cheguei a casa, reservei dois bilhetes através do</p><p>website, o segundo como segurança, para o caso de perder o primeiro.</p><p>Talvez Raymond pudesse usá-lo, vir comigo; mas, pensando melhor,</p><p>talvez não. Não o queria a atrapalhar-me. De qualquer modo, comprar</p><p>dois bilhetes acabou por se revelar desnecessário, pois depois de a</p><p>transação estar concluída reparei que os bilhetes tinham de ser</p><p>levantados pessoalmente na noite do concerto. Paciência.</p><p>Depois de jantar e de ouvir The Archers no rádio, sentei-me com um</p><p>lápis e um bloco-notas e elaborei uma lista de todas as coisas que teria</p><p>de fazer para me preparar. O mais importante, depois da aquisição dos</p><p>bilhetes, era uma visita de reconhecimento ao local, para me certificar</p><p>de que tudo correria bem na noite em questão e evitar quaisquer</p><p>surpresas desagradáveis. Aqui, pelo menos, achei que Raymond seria</p><p>útil. Podíamos ir juntos a outro concerto qualquer, talvez amanhã ou</p><p>depois de amanhã, o que me daria oportunidade de estudar o cenário</p><p>para o meu próximo encontro com o destino.</p><p>Depois de verificar que ainda havia bilhetes disponíveis para o</p><p>concerto da noite seguinte, enviei uma mensagem eletrónica:</p><p>Caro Raymond, gostaria de ir comigo ao Rank</p><p>Dan’s amanhã à noite? E.</p><p>Ele respondeu de imediato.</p><p>Quem vai tocar?</p><p>Que importância é que isso tinha? Com certeza que Raymond podia</p><p>ter procurado esta informação no Google, se era tão importante para ele.</p><p>Respondi:</p><p>Agents of Insanity</p><p>Passaram alguns minutos.</p><p>WTF, Eleanor? Não sabia q gostava dessas</p><p>coisas. Não é mt a minha cena, mas pode ser. Há</p><p>anos q ñ vou a um concerto. Já tem bilhetes?</p><p>Porquê, oh, porque é que ele não conseguia escrever em palavras</p><p>completas e frases corretas?</p><p>Sim. Encontramo-nos lá às 19h. E.</p><p>Depois de cinco minutos, recebi o seguinte:</p><p>OK</p><p>No final desta troca de mensagens, estava quase acostumada à forma</p><p>bizarra de comunicação de Raymond. A capacidade que os humanos</p><p>têm de tolerar quase tudo, se for mesmo necessário, é ao mesmo tempo</p><p>uma característica boa e má.</p><p>Na noite seguinte Raymond chegou atrasado, como de costume.</p><p>Estava ridículo – uma camisola preta com capuz e um blusão de ganga</p><p>por cima. A camisola tinha um crânio à frente.</p><p>– Achei que podia tentar vestir-me a condizer – comentou com um</p><p>sorriso, enquanto esperávamos para entrar.</p><p>Eu não fazia a mínima ideia do que ele queria dizer. Entrámos e</p><p>levantei os bilhetes que adquirira online. O bar estava mal iluminado e</p><p>absolutamente imundo. Os clientes, gente boçal e mal-arranjada de</p><p>ambos os sexos, estavam sentados numa penumbra tenebrosa, e a música</p><p>que saía das colunas era, ao mesmo tempo, insuportavelmente alta e</p><p>inacreditavelmente terrível.</p><p>Descemos até à sala de concertos, que já estava quase cheia.</p><p>Enquanto esperava por Raymond à porta, reparara na procissão de</p><p>jovens de aspeto ridículo que entravam no estabelecimento – pelos</p><p>vistos, era aqui que se encontravam todos. Estávamos rodeados por</p><p>preto; roupas pretas, cabelo preto, espetado e rapado e esculpido.</p><p>Maquilhagem preta em homens e mulheres, aplicada de uma forma que</p><p>Bobbi Brown com certeza não aprovaria. Havia também muitos picos</p><p>por todo o lado: em cabelos, joias, até mochilas. Quase ninguém calçava</p><p>sapatos com solas normais; todos se equilibravam em cima de</p><p>plataformas altas. Fazia lembrar o Halloween, pensei. Raymond voltou</p><p>do bar com um copo de plástico com cerveja para ele e, sem que eu</p><p>tivesse pedido, algo mais claro para mim.</p><p>– Cidra? – gritei, por cima do barulho. – Mas, Raymond, eu não</p><p>bebo cidra!</p><p>– O que acha que a Magners é, sua palerma? – retorquiu, com uma</p><p>cotovelada amistosa.</p><p>Bebi um pequeno gole, com alguma relutância – não era tão bom</p><p>como Magners, mas servia. O nível de ruído não permitia conversas, por</p><p>isso estudei a sala. O palco era pequeno e elevado cerca de um metro</p><p>acima do chão. Para a próxima, presumindo que Johnnie Lomond estaria</p><p>no centro, conseguiria ver-me facilmente, mesmo que eu não</p><p>conseguisse ficar mesmo à frente. O cupido precisa de um</p><p>empurrãozinho, às vezes.</p><p>O público começou a fazer um som animal coletivo e a avançar. Nós</p><p>ficámos onde estávamos – os músicos estavam agora em palco e</p><p>começaram a tocar. Levei as mãos aos ouvidos, incapaz de acreditar no</p><p>que estava a ouvir. Era, sem exagero, um estardalhaço vindo do inferno.</p><p>Mas o que se passava com estas pessoas? O «cantor» alternava entre</p><p>berrar e rosnar.</p><p>Não aguentei nem mais um minuto e subi as escadas</p><p>hã? – comentou. – Nunca percebi a piada.</p><p>Prefiro sempre um bom jogo de computador. Call of Duty…</p><p>Ignorei a sua tagarelice disparatada.</p><p>– Conseguiu arranjá-lo? – perguntei.</p><p>– Sim – respondeu-me, com ar muito satisfeito. – Tinha um vírus</p><p>bastante mau. Limpei-lhe o disco rígido e reiniciei a firewall. O ideal é</p><p>correr uma verificação completa do sistema uma vez por semana. – Deve</p><p>ter reparado na minha expressão de incompreensão. – Venha comigo, eu</p><p>explico-lhe. – Percorremos o corredor. Os hediondos ténis verdes</p><p>chiavam no chão. Ele tossiu.</p><p>– Então… Trabalha aqui há muito tempo, Eleanor? – perguntou.</p><p>– Sim – respondi, acelerando o passo.</p><p>Ele conseguiu acompanhar-me, mas estava um tanto ou quanto</p><p>ofegante.</p><p>– Certo – Pigarreou. – Só comecei há umas semanas. Antes</p><p>trabalhava na Sandersons. Na cidade. Conhece?</p><p>– Não – retorqui.</p><p>Chegámos à minha secretária e sentei-me. Ele agachou-se ao meu</p><p>lado, demasiado perto. Cheirava a comida e um pouco a cigarros.</p><p>Desagradável. Indicou-me o que fazer e eu segui as instruções,</p><p>decorando-as. Quando acabou, tínhamos atingido o meu limite de</p><p>interesse por assuntos tecnológicos para esse dia.</p><p>– Obrigada pela sua ajuda, Raymond – agradeci, em tom grave.</p><p>Raymond fez continência e levantou-se. Era difícil imaginar homem</p><p>com menos porte militar.</p><p>– De nada, Eleanor. Vemo-nos por aí!</p><p>Duvido muito, pensei, abrindo a folha de cálculo com as contas</p><p>atrasadas do mês. Ele afastou-se num passo estranhamente saltitante,</p><p>apoiando-se com demasiada força na parte da frente dos pés. Já reparei</p><p>que muitos homens pouco atraentes caminham dessa maneira. Com</p><p>certeza que os ténis não ajudam.</p><p>Na outra noite, o cantor calçava uns sapatos de pele lindos. Era alto,</p><p>elegante e gracioso. Custava a acreditar que o cantor e Raymond</p><p>pertenciam sequer à mesma espécie. Agitei-me na cadeira,</p><p>desconfortável. Sentia uma dor latejante e o princípio de uma comichão</p><p>lá em baixo. Se calhar devia ter vestido outra vez as cuecas.</p><p>A festa de despedida começou por volta das quatro e meia e fiz</p><p>questão de aplaudir de forma extravagante o discurso de Bob e de dizer</p><p>«Muito bem, bravo!» em voz bem alta, para todos repararem em mim.</p><p>Saí um minuto antes das cinco e caminhei até ao centro comercial o</p><p>mais depressa que a irritação na epiderme recentemente depilada me</p><p>permitia. Por sorte, consegui chegar às cinco e um quarto. Mais vale um</p><p>pássaro na mão, era o que eu estava a pensar, tendo em conta a</p><p>importância da tarefa; portanto, dirigi-me de imediato ao departamento</p><p>de material eletrónico.</p><p>Um jovem de camisa cinzenta e gravata reluzente estava a olhar para</p><p>a parede coberta de televisões gigantes. Aproximei-me e informei-o de</p><p>que desejava adquirir um computador. Ele pareceu assustado.</p><p>– Desktop, portátil, tablet – entoou. Eu não fazia ideia do que ele</p><p>estava a dizer.</p><p>– Nunca comprei um computador, Liam – expliquei, lendo o nome</p><p>na placa que ele tinha ao peito. – Sou uma consumidora tecnológica</p><p>muito inexperiente.</p><p>Ele puxou o colarinho da camisa, como se estivesse a tentar libertar</p><p>a enorme maçã de adão. Parecia uma gazela, ou uma impala, um desses</p><p>animais beges enfadonhos com olhos grandes e redondos. O tipo de</p><p>criatura que acaba sempre por ser devorada por um leopardo.</p><p>Estávamos a começar mal.</p><p>– Para o que pretende usá-lo? – perguntou Liam, sem me fitar</p><p>diretamente nos olhos.</p><p>– Não tem absolutamente nada a ver com isso – respondi, ofendida.</p><p>Ele parecia prestes a chorar e senti-me mal. Era apenas um rapaz.</p><p>Toquei-lhe no braço, apesar de detestar contacto físico.</p><p>– Desculpe. Estou um pouco ansiosa porque é imperativo que me</p><p>ligue à Internet este fim de semana – expliquei. A expressão nervosa não</p><p>se alterou. – Liam – expus devagar –, só preciso de adquirir um</p><p>equipamento informático qualquer que possa usar no conforto do meu</p><p>lar para fazer pesquisas online. Mais para a frente, é possível que tenha</p><p>de enviar mensagens eletrónicas. Mais nada. Tem alguma coisa</p><p>adequada em stock?</p><p>O rapaz ergueu os olhos para o céu e pensou.</p><p>– Um portátil e acesso móvel à Internet? – sugeriu. Por que raio</p><p>estava a perguntar-me a mim, por amor de Deus? Acenei que sim e</p><p>estendi-lhe o meu cartão.</p><p>Quando cheguei a casa, ligeiramente alterada pela quantidade de</p><p>dinheiro que gastara, apercebi-me de que não tinha nada para comer.</p><p>Sexta-feira era dia de piza margherita, claro, mas pela primeira vez a</p><p>minha rotina estava desorientada. Lembrei-me de que guardara um</p><p>folheto na gaveta dos panos da loiça, algo que me tinham deixado na</p><p>caixa de correio há algum tempo. Encontrei-o rapidamente e alisei-o.</p><p>Tinha cupões de desconto na parte de baixo, mas tinham expirado.</p><p>Calculei que os preços teriam entretanto aumentado, mas parti do</p><p>princípio de que o número de telefone seria o mesmo e de que ainda</p><p>venderiam pizas. Contudo, mesmo para preços antigos, aqueles eram</p><p>ridículos, e ri-me alto ao olhar para eles. No Tesco Metro, as pizas</p><p>custavam um quarto daquele valor.</p><p>Mesmo assim, decidi mandar vir uma piza. Sim, era uma</p><p>extravagância e uma indulgência, mas porque não? A vida devia ser para</p><p>experimentar coisas novas e explorar limites, recordei a mim própria. O</p><p>homem do outro lado da linha informou-me de que a piza chegaria</p><p>dentro de quinze minutos. Escovei o cabelo, descalcei os chinelos e</p><p>voltei a calçar os sapatos do trabalho. Perguntei-me como fariam com a</p><p>pimenta preta. O entregador traria um moinho de pimenta consigo? Com</p><p>certeza que não ia moer a pimenta para cima da piza à porta da casa das</p><p>pessoas? Pus a chaleira ao lume, para o caso de ele querer uma chávena</p><p>de chá. Tinham-me dito ao telefone quanto custaria a piza, por isso</p><p>procurei o dinheiro certo, enfiei-o num envelope e escrevi Pizza Pronto</p><p>na parte da frente. Não me dei ao trabalho de deixar a morada. Não</p><p>sabia se devia ou não incluir gorjeta, e desejei poder perguntar a alguém.</p><p>A mamã não me conseguiria aconselhar. Não é ela que decide o que</p><p>come.</p><p>A falha neste plano era o vinho. Não entregavam vinho, comunicara</p><p>o homem ao telefone, parecendo até bastante divertido com a pergunta.</p><p>Estranho: o que poderia ser mais normal do que piza e vinho? Não</p><p>estava a ver como havia de adquirir a tempo algo para beber com a piza.</p><p>Precisava mesmo de líquidos. Enquanto esperava pela entrega, remoí o</p><p>problema, preocupada.</p><p>No fim, a experiência da piza foi muitíssimo desapontante. O</p><p>homem limitou-se a enfiar-me nas mãos uma caixa grande e pegou no</p><p>envelope, que rasgou de modo muito rude à minha frente. Ouvi-o</p><p>murmurar: «Por amor de Deus» entre dentes enquanto contava as</p><p>moedas. Eu andava a juntar moedas de cinquenta cêntimos num</p><p>pequeno prato de loiça, e aquela parecera-me a oportunidade perfeita</p><p>para as usar. Colocara uma a mais para ele, mas não recebi uma palavra</p><p>de agradecimento. Mal-educado!</p><p>A piza era demasiado gordurosa e a massa, mole e sem sabor. Decidi</p><p>logo que nunca mais comeria piza de entrega, muito menos com o</p><p>músico. Se alguma vez déssemos por nós a precisar de uma piza e</p><p>estivéssemos demasiado longe de um Tesco Metro, aconteceria uma de</p><p>duas coisas. Um: apanharíamos um táxi para a cidade e jantaríamos num</p><p>restaurante italiano encantador. Dois: ele faria piza para nós os dois, do</p><p>zero. Faria a massa esticando-a e amassando-a com aqueles dedos</p><p>compridos e afunilados, acariciando-a até ela fazer o que ele quisesse.</p><p>Trabalharia ao fogão, a ferver tomates com ervas frescas, reduzindo-os</p><p>até conseguir um molho grosso e luzidio, graças ao brilho do azeite.</p><p>Teria vestido as suas calças de ganga mais velhas e mais</p><p>confortáveis, um par que lhe assentava bem nas ancas estreitas, os pés</p><p>descalços a bater ao ritmo da música enquanto cantava sozinho, com</p><p>aquela voz maravilhosa, e mexia o molho. Depois de montar a piza,</p><p>terminando-a com alcachofras e raspas de funcho, colocá-la-ia no forno</p><p>e viria à minha procura; pegar-me-ia na mão e conduzir-me-ia à cozinha.</p><p>A mesa estaria posta, com uma jarra de gardénias no centro e velas a</p><p>tremeluzir dentro de copos de vidro colorido.</p><p>a correr.</p><p>Quando me vi na rua, parei, ofegante, e abanei a cabeça como um cão</p><p>para tentar eliminar aquele som dos ouvidos. Raymond apareceu pouco</p><p>depois.</p><p>– O que se passa, Eleanor? – perguntou, preocupado. – Sente-se</p><p>bem?</p><p>Limpei as lágrimas do rosto.</p><p>– Aquilo não era música, aquilo era… Oh, nem sei. Que horror,</p><p>Raymond! Que horror!</p><p>Raymond desatou a rir, agarrado à barriga (algo que não era difícil,</p><p>no caso dele), até estar dobrado para a frente e sem conseguir respirar.</p><p>– Oh, Eleanor – afirmou, quando conseguiu recuperar o fôlego. – Eu</p><p>sabia que não podia ser fã de grindcore. O que é que lhe passou pela</p><p>cabeça? – Recomeçou a rir.</p><p>– Só queria conhecer o local, ouvir uma banda – respondi. – O facto</p><p>de estes sons poderem sequer existir… está para além da imaginação</p><p>humana!</p><p>Raymond recompusera-se.</p><p>– Bom, enfim… como é que se costuma dizer? Experimenta tudo</p><p>uma vez, exceto incesto e danças tradicionais. Se calhar podemos</p><p>acrescentar o death metal à lista, não?</p><p>Abanei a cabeça.</p><p>– Não faço literalmente a mais pequena ideia do que está para aí a</p><p>enunciar… nenhuma dessas palavras faz sentido – retorqui. Respirei</p><p>fundo várias vezes até me sentir outra vez quase calma. – Vamos antes a</p><p>uma estalagem ou pub, Raymond… um sítio sossegado… e, por favor,</p><p>deixe-me oferecer-lhe uma cerveja para o compensar desta noite</p><p>desperdiçada.</p><p>– Oh, não foi desperdiçada, Eleanor – garantiu-me ele, abanando a</p><p>cabeça. – A sua cara! Foi uma das melhores noites que tive em muito</p><p>tempo.</p><p>Desatou a rir outra vez e, para minha surpresa, dei por mim a</p><p>secundá-lo. Era divertido que eu tivesse uma noção tão errada do tipo de</p><p>música que ia ser tocada. Percebi que tinha muito a aprender sobre</p><p>música e que seria importante fazê-lo para poder interagir de forma</p><p>apropriada com o músico.</p><p>– Já ouviu falar de Johnnie Lomond e os Pilgrim Pioneers? –</p><p>perguntei. Ele abanou a cabeça.</p><p>– Porquê? – inquiriu.</p><p>Peguei no telemóvel e abri a página do músico. Raymond leu o texto,</p><p>depois pôs os auscultadores e ouviu durante um ou dois minutos.</p><p>– Parece uma merda – comentou, em tom indiferente, devolvendo-</p><p>me o telefone. Isto vindo do homem com um crânio na camisola!</p><p>– A sério? – admirei-me.</p><p>– Ele tem uma barbicha da moda, uma guitarra cara que não sabe</p><p>tocar e um sotaque americano falso. Está a tentar parecer que é do Sul…</p><p>sim, mas do sul de Lanarkshire – esclareceu Raymond, soprando o fumo</p><p>pelo canto da boca com um sorriso irónico. Eu não estava</p><p>suficientemente bem informada para poder concordar ou discordar, por</p><p>isso calei-me. De qualquer maneira, precisava de saber pelo menos</p><p>alguns factos relevantes sobre música popular e, apesar destas últimas</p><p>opiniões aberrantes, Raymond era a minha melhor fonte.</p><p>– Percebe muito de música? – perguntei, enquanto caminhávamos</p><p>em direção a um pub que Raymond garantia ser sossegado. «Um pub à</p><p>antiga», tinha sido a sua descrição, o que quer que isso fosse.</p><p>– Suponho que sim – respondeu.</p><p>– Maravilhoso. Agora, por favor: explique-me tudo.</p><p>25</p><p>Era o dia do concerto. Estava tudo a postos. Eu tinha a aparência</p><p>certa. Sentia-me bem. Se pudesse, aceleraria o tempo para a noite chegar</p><p>mais depressa. Encontrara por fim uma forma de me ajudar a seguir em</p><p>frente. Uma forma de substituir uma perda por um ganho.</p><p>O músico. Era uma sorte que ele tivesse aparecido precisamente na</p><p>altura certa. Era destino que, depois desta noite, as minhas peças de</p><p>Eleanor começariam por fim a encaixar.</p><p>Como era deliciosa a antecipação – uma dor, uma dor que se agitava</p><p>dentro de mim. Não sabia como a acalmar; sentia, como que por</p><p>instinto, que a vodca não resultaria. Teria apenas de aguentar até nos</p><p>encontrarmos, e era essa a natureza deste fardo peculiar e maravilhoso.</p><p>Só faltava mais um pouco, algumas horas. Esta noite, conheceria o</p><p>homem cujo amor mudaria a minha vida.</p><p>Estava pronta para me erguer das cinzas e renascer.</p><p>Dias maus</p><p>26</p><p>Estou nua, deitada no chão, a olhar para a parte de baixo do tampo</p><p>da mesa. A madeira clara não está envernizada e um carimbo desbotado</p><p>indica «feito em Taiwan». Há coisas importantes alinhadas em cima da</p><p>mesa – não as vejo, mas consigo senti-las por cima de mim. Esta mesa</p><p>hedionda, com o tampo de melamina azul, pernas instáveis, o verniz</p><p>gasto em alguns sítios por décadas de uso descuidado. Em quantas</p><p>cozinhas teria esta mesa estado, antes de chegar até mim?</p><p>Imaginei uma hierarquia de felicidade; comprada pela primeira vez</p><p>nos anos setenta, um casal sentava-se aqui, a jantar refeições cozinhadas</p><p>a partir de livros de culinária novos, a comer e a beber de loiça a sério,</p><p>como adultos. Passados alguns anos tinham-se mudado para os</p><p>subúrbios; a mesa, demasiado pequena para a família agora em</p><p>crescimento, passara para um primo pouco endinheirado que acabara o</p><p>curso e estava a mobilar o seu primeiro apartamento. Alguns anos</p><p>depois, o jovem vai viver com o companheiro e arrenda o apartamento.</p><p>Durante uma década, os vários inquilinos, uma sucessão deles,</p><p>principalmente jovens, tristes e felizes, às vezes sozinhos, às vezes com</p><p>amigos, com amantes, comem a esta mesa. Servem fast food para</p><p>despachar ou cinco pratos elegantes para seduzir, hidratos de carbono</p><p>antes de uma corrida e pudim de chocolate para corações partidos. Por</p><p>fim, o primo vende a casa e a mesa vai parar a um armazém, onde</p><p>aranhas tecem seda nos seus cantos arredondados, agora antiquados, e</p><p>moscas varejeiras põem ovos nas farpas aguçadas. É então oferecida a</p><p>uma instituição de solidariedade, e daí chega até mim, desprovida de</p><p>amor, indesejada, danificada para lá de toda a esperança. E a mesa</p><p>também.</p><p>As coisas estão todas preparadas. Analgésicos (doze caixas de vinte</p><p>e quatro comprimidos, adquiridos com receita e armazenados com todo</p><p>o cuidado); faca do pão (quase nunca usada, com os dentes de tubarão</p><p>prontos para morder); gel desentupidor de canos («atravessa quaisquer</p><p>bloqueios, incluindo cabelos e gordura»: e também carne e órgãos</p><p>internos, acrescento eu). Esta mesa, esta mesa à qual nunca me sentei</p><p>com outra pessoa, a partilhar sequer uma garrafa de vinho. Esta cozinha,</p><p>onde nunca cozinhei para mais ninguém a não ser para mim. Aqui</p><p>deitada no chão, como um cadáver, sinto as migalhas secas a picarem-</p><p>me os braços nus, as nádegas, as coxas, os calcanhares. Está frio. Quem</p><p>me dera ser um cadáver. Já não falta muito, quase nada.</p><p>Todas as garrafas vazias de vodca estão na minha linha de visão,</p><p>atiradas para o chão depois de ingeridas. Devia sentir-me envergonhada</p><p>por alguém vir a encontrar a casa neste estado, mas não sinto nada. O</p><p>meu corpo acabará por ser removido e uma equipa de limpezas</p><p>industriais fará o seu trabalho, imagino. O apartamento será de novo</p><p>arrendado. Espero que os inquilinos subsequentes sejam felizes aqui, que</p><p>deixem alguns vestígios de amor para os habitantes posteriores, nas</p><p>paredes e no chão e nas fendas à volta das janelas. Eu não deixei nada.</p><p>Nunca aqui estive.</p><p>Não sei há quanto tempo estou aqui deitada. Não me lembro como</p><p>acabei no chão da cozinha, nem sei porque estou nua. Estendo a mão</p><p>para a garrafa ao meu lado, com medo de que já não reste muito,</p><p>instantaneamente aliviada quando sinto o seu peso. No entanto, é a</p><p>última. Quando esta garrafa acabar, tenho duas opções: levantar-me do</p><p>chão, vestir-me e ir comprar mais; ou matar-me. Na verdade, de uma ou</p><p>outra forma, vou matar-me. É apenas uma questão de quanta vodca</p><p>beberei antes de o fazer. Bebo mais um trago e espero que a dor seja</p><p>libertada.</p><p>Quando acordo outra vez, continuo no mesmo sítio. Passaram dez</p><p>minutos, ou dez horas – não faço ideia. Coloco-me em posição fetal. Se</p><p>não posso ser um cadáver, então quero ser um bebé, enroscado no ventre</p><p>de uma mulher, puro e desejado. Movo-me um pouco, viro a cara para o</p><p>chão e vomito. O vomitado é, reparo, transparente e raiado de verde –</p><p>álcool e bílis. Já não como nada há algum tempo.</p><p>Há tantos líquidos e substâncias dentro de mim; aqui deitada, tento</p><p>enumerá-los a todos. Há a cera dos ouvidos. O pus</p><p>Devagar, abriria uma</p><p>garrafa de Barolo com um pop sonoro e satisfatório, pousaria a garrafa</p><p>na mesa e puxaria a cadeira para mim. Antes que eu conseguisse sentar-</p><p>me, tomar-me-ia nos braços e beijar-me-ia, com as mãos na minha</p><p>cintura, puxando-me para si de tal maneira que eu conseguiria sentir o</p><p>sangue a pulsar nele, cheirar o aroma doce e picante da sua pele e o</p><p>açúcar quente no seu hálito.</p><p>Tinha acabado de comer a minha piza de má qualidade, e estava aos</p><p>saltos em cima da caixa para a tentar reduzir a um tamanho que</p><p>coubesse no caixote, quando me lembrei do brandy. A mamã dizia</p><p>sempre que o brandy era bom para os choques, e há alguns anos eu</p><p>comprara uma garrafa para ter em casa, pelo sim, pelo não. Pusera-a no</p><p>armário da casa de banho, com todos os outros artigos de emergência.</p><p>Fui verificar e ali estava ela, atrás das ligaduras enroladas e dos pulsos</p><p>elásticos – uma garrafa de meio litro de Rémy Martin, cheia e fechada.</p><p>Abri-a e provei um gole. Não era tão bom como vodca, mas bebia-se.</p><p>Estava muito apreensiva em relação ao computador portátil, uma vez</p><p>que nunca tinha instalado um computador novo sozinha, mas acabou por</p><p>ser bastante fácil. A Internet móvel também era simples. Levei o brandy</p><p>e o computador para a mesa da cozinha, introduzi o nome dele no</p><p>Google, carreguei no botão de busca e tapei os olhos com as mãos.</p><p>Segundos depois, espreitei entre os dedos. Havia centenas de resultados!</p><p>Parecia que aquilo ia ser bastante fácil, por isso decidi racionar as</p><p>páginas; afinal de contas, tinha o fim de semana todo, não precisava de</p><p>me apressar.</p><p>O primeiro link levou-me para a página dele, que estava</p><p>completamente ocupada com fotografias suas e da banda. Aproximei-me</p><p>mais do ecrã, até ter quase o nariz lá encostado. Ele não era fruto da</p><p>minha imaginação, nem exagerara a dimensão da sua beleza. O link</p><p>seguinte levou-me à sua página de Twitter. Concedi a mim própria o</p><p>prazer de ler as três últimas mensagens, duas das quais eram irónicas e</p><p>espirituosas, e a terceira, absolutamente encantadora. Nesta, ele</p><p>declarava a sua admiração profissional por um outro músico. Muito</p><p>elegante da sua parte.</p><p>A seguir, a página de Instagram. Publicara quase cinquenta fotos.</p><p>Cliquei numa ao acaso: um primeiro plano do rosto dele, natural e</p><p>descontraído. Tinha um nariz romano, perfeitamente direito, de</p><p>proporções clássicas. As orelhas também eram perfeitas, do tamanho</p><p>certo, as curvas de pele e cartilagem de uma simetria sem falhas. Os</p><p>olhos eram castanhos-claros. Eram-no da mesma forma que uma rosa é</p><p>vermelha, ou que o céu é azul. Aqueles olhos definiam o que significava</p><p>ser castanho-claro.</p><p>Havia filas e filas de fotografias na página e o meu cérebro obrigou o</p><p>meu dedo a regressar ao motor de busca. Passei os olhos pelos restantes</p><p>sites que o Google encontrara. Havia vídeos das suas atuações no</p><p>YouTube. Artigos e críticas. E esta era apenas a primeira página de</p><p>resultados! Eu tencionava ler todas as informações que encontrasse</p><p>sobre ele, ficar a conhecê-lo como deve ser – afinal de contas, sou muito</p><p>boa a fazer pesquisas e a resolver problemas. Não estou a gabar-me;</p><p>limito-me a declarar os factos. Descobrir mais a respeito dele era a coisa</p><p>certa a fazer, a abordagem mais sensata se viesse a revelar-se que ele ia</p><p>ser o amor da minha vida. Peguei no brandy, num caderno novo e numa</p><p>caneta de ponta fina que trouxera emprestada do escritório, e dirigi-me</p><p>ao sofá, preparada para começar a elaborar o meu plano de ação. O</p><p>brandy era reconfortante, aquecia-me, e continuei a beber pequenos</p><p>goles.</p><p>Quando acordei, passava pouco das três da manhã e a caneta e o</p><p>caderno estavam no chão. Aos poucos, lembrei-me de me ter distraído,</p><p>de ter começado a sonhar acordada à medida que o brandy fazia efeito.</p><p>Tinha as costas das mãos tatuadas com tinta preta, o nome dele escrito</p><p>uma e outra vez dentro de corações, de tal forma que mal se via um</p><p>milímetro de pele. Havia ainda um resto de brandy na garrafa. Esvaziei-</p><p>a e fui para a cama.</p><p>3</p><p>Porquê ele? Porquê agora? Na segunda-feira de manhã, enquanto</p><p>esperava pelo autocarro, tentei perceber. Era complicado. Afinal, quem</p><p>consegue compreender os meandros do destino? Mentes muito</p><p>superiores à minha tentaram, sem sucesso, chegar a alguma conclusão.</p><p>Ali estava ele, uma dádiva dos deuses – belo, elegante e talentoso. Eu</p><p>estava bem, estava ótima sozinha, mas tinha de manter a mamã contente,</p><p>mantê-la calma para ela me deixar em paz. Um namorado – um marido?</p><p>– era capaz de resultar. Não que eu precisasse de alguém. Como já disse,</p><p>estava muito bem sozinha.</p><p>Depois de analisar detalhadamente as provas fotográficas disponíveis</p><p>durante o fim de semana, concluíra que havia algo particularmente</p><p>hipnotizante nos olhos dele. Os meus são de uma tonalidade semelhante,</p><p>embora nem de longe tão bonitos, claro, pois não possuem as mesmas</p><p>profundezas cor de cobre tremeluzentes. Ao olhar para todas aquelas</p><p>fotografias, lembrei-me de alguém. Era apenas uma meia memória,</p><p>como um rosto debaixo de gelo ou desfocado pelo fumo, indistinto.</p><p>Olhos como os meus, olhos num rosto pequenino, grandes e vulneráveis,</p><p>cheios de lágrimas.</p><p>Ridículo, Eleanor. Era uma desilusão que tivesse cedido, por um</p><p>instante que fosse, ao sentimentalismo. Afinal de contas, havia muitas</p><p>pessoas no mundo com olhos castanhos-claros como os meus – tratava-</p><p>se de um facto científico. Era estatisticamente inevitável que algumas</p><p>delas estabelecessem contacto visual comigo no decurso de uma</p><p>interação social rotineira.</p><p>Contudo, havia outra coisa a incomodar-me. Todos os estudos</p><p>mostram que as pessoas têm tendência a procurar um parceiro atraente</p><p>como elas; os iguais atraem-se, a regra geral é essa. E eu não tinha</p><p>quaisquer ilusões. Em termos de aparência, ele era um dez e eu… nem</p><p>sei bem. Mas não sou um dez, de certeza. Claro que tinha esperança de</p><p>que ele visse para além do superficial, que fosse um pouco mais fundo;</p><p>porém, dito isto, sabia que a sua profissão exigia que encontrasse uma</p><p>parceira que fosse, no mínimo, apresentável. O negócio da música, do</p><p>espetáculo, gira à volta da imagem, e ele não podia ser visto com uma</p><p>mulher que os mais pobres de espírito considerassem ter uma aparência</p><p>inadequada. Eu tinha plena consciência disso. Teria de dar o meu melhor</p><p>para corresponder a esse ideal.</p><p>Ele tinha publicado mais algumas imagens novas online: duas</p><p>fotografias de rosto, de perfil, esquerdo e direito. Era perfeito de ambos</p><p>os lados, que eram idênticos – literal e objetivamente, ele não tinha um</p><p>lado mau. Claro que uma das características que definem a beleza é a</p><p>simetria, mais uma coisa em que todos os estudos estão de acordo.</p><p>Perguntei a mim própria que fundo genético teria gerado descendência</p><p>tão atraente. Teria irmãos ou irmãs? Se chegássemos a ficar juntos,</p><p>talvez eu pudesse conhecê-los. Não sabia muito sobre pais em geral, ou</p><p>irmãos em particular, já que tivera uma educação… pouco convencional,</p><p>chamemos-lhe assim.</p><p>Tenho pena das pessoas bonitas. A beleza, a partir do momento em</p><p>que a possuímos, está já a dissipar-se, efémera. Deve ser difícil ter</p><p>constantemente de provar que somos mais do que isso, querer que as</p><p>pessoas vejam para além da superfície, ser amado por quem somos e não</p><p>por um corpo deslumbrante, olhos brilhantes ou cabelo denso e luzidio.</p><p>Na maior parte das profissões, envelhecer significa tornarmo-nos</p><p>melhores no nosso trabalho, conquistar respeito devido à nossa</p><p>antiguidade e experiência. Contudo, para quem tem um emprego que</p><p>depende da aparência, verifica-se o oposto – é muito deprimente.</p><p>Também deve ser difícil suportar a maldade dos outros; todas aquelas</p><p>pessoas amargas, menos atraentes, cheias de inveja e ressentimento da</p><p>beleza alheia. É muitíssimo injusto. Afinal, as pessoas bonitas não</p><p>pediram para nascer assim. É igualmente injusto antipatizar com alguém</p><p>por ser atraente ou antipatizar com alguém por causa de uma</p><p>deformidade.</p><p>Não me incomoda nada quando as pessoas reagem ao meu rosto, aos</p><p>contornos</p><p>elevados e esbranquiçados de tecido cicatrizado que se</p><p>estende pela minha face direita, desde a têmpora até ao queixo. As</p><p>pessoas olham para mim, murmuram; as cabeças viram-se. Era</p><p>reconfortante pensar que ele me compreenderia, já que também fazia</p><p>virar cabeças, embora por motivos completamente diferentes.</p><p>Hoje troquei o Telegraph por material de leitura alternativo. Gastei</p><p>uma quantidade obscena de dinheiro numa pequena seleção de revistas</p><p>femininas, finas e sensacionalistas, grossas e luxuosas, todas</p><p>prometendo uma série de maravilhas, mudanças simples mas capazes de</p><p>elevar a vida a outro nível. Nunca tinha comprado este tipo de artigo</p><p>embora, claro, já tivesse folheado revistas do género em salas de espera</p><p>de hospital e outros cenários institucionais. Para minha desilusão,</p><p>reparei que nenhuma delas trazia palavras-cruzadas; na verdade, uma</p><p>tinha uma «sopa de letras de celebridades» que seria um insulto à</p><p>inteligência de uma criança de sete anos. Podia ter comprado três</p><p>garrafas de vinho ou um litro de vodca da melhor pelo preço daquelas</p><p>revistas. Mesmo assim, após cuidadosa reflexão, decidi que eram a fonte</p><p>mais fiável e acessível para encontrar a informação de que precisava.</p><p>Aquelas revistas podiam indicar-me que roupas e sapatos usar, e</p><p>como arranjar o cabelo para me integrar. Podiam mostrar-me que tipo de</p><p>maquilhagem devia adquirir e como aplicá-la. Assim, conseguiria</p><p>desaparecer no mar de aceitabilidade feminina. Ninguém olharia para</p><p>mim. O objetivo derradeiro era camuflar-me com sucesso de modo a</p><p>parecer uma mulher humana normal.</p><p>A mamã sempre me disse que sou feia, anormal, horrível. Repetia-o</p><p>desde que eu era muito pequena, mesmo antes de adquirir as minhas</p><p>cicatrizes. Por isso, estava muito contente com estas mudanças.</p><p>Empolgada. Eu era uma tela em branco.</p><p>Em casa, nessa noite, olhei para o espelho por cima do lavatório</p><p>enquanto lavava as mãos irritadas. Ali estava eu: Eleanor Oliphant.</p><p>Cabelo comprido, liso, castanho-claro, caído até à cintura, pele pálida, o</p><p>rosto um palimpsesto cicatrizado pelo fogo. Nariz demasiado pequeno,</p><p>olhos demasiado grandes. Orelhas vulgares. Altura média, peso</p><p>aproximadamente médio. Eu aspiro a ser média… Durante muito tempo</p><p>fui alvo de demasiada atenção. Passem por mim, sigam o vosso</p><p>caminho, não há aqui nada para ver.</p><p>Regra geral, não olho muito para o espelho. Isto não tem</p><p>absolutamente nada a ver com as minhas cicatrizes. É por causa da</p><p>perturbadora mistura genética que me devolve o olhar. Vejo demasiadas</p><p>coisas do rosto da mamã no meu. Não consigo distinguir quaisquer</p><p>feições do meu pai porque nunca o conheci e, tanto quanto sei, não</p><p>existem registos fotográficos dele. A mamã quase nunca o mencionava e,</p><p>nas raras ocasiões em que o assunto vinha à baila, referia-se ao meu pai</p><p>apenas como «o dador de gâmetas». Depois de procurar a expressão no</p><p>dicionário (do grego γαμέτες, «esposo» – teria sido esta aventura</p><p>etimológica juvenil que despertara o meu amor pelos clássicos?), passei</p><p>vários anos a interrogar-me sobre este estranho conjunto de</p><p>circunstâncias. Mesmo em tão tenra idade, compreendia que a conceção</p><p>assistida era a antítese da parentalidade descuidada, espontânea ou</p><p>imprevista; que era a mais deliberada das decisões, tomada apenas por</p><p>mulheres que estavam seriamente dedicadas ao objetivo de serem mães.</p><p>Só não conseguia acreditar, dadas as provas e a minha experiência, que a</p><p>mamã alguma vez tivesse sido uma mulher assim, que alguma vez</p><p>pudesse ter desejado um filho com tanta intensidade. E, como viria a</p><p>saber, tinha razão.</p><p>Por fim, reuni a coragem para lhe perguntar diretamente pelas</p><p>circunstâncias da minha criação, numa tentativa de procurar quaisquer</p><p>informações disponíveis sobre o mítico dador de espermatozoides, o</p><p>meu pai. Como qualquer criança faria nestas circunstâncias – talvez</p><p>ainda mais nas minhas circunstâncias em particular – eu criara uma</p><p>breve, mas intensa, fantasia sobre o caráter e aparência do meu</p><p>progenitor ausente. A mamã fartou-se de rir.</p><p>– Dador? Eu disse mesmo isso? Era apenas uma metáfora, querida –</p><p>respondeu-me.</p><p>Mais uma palavra cujo significado teria de procurar.</p><p>– Na verdade, estava a tentar poupar os teus sentimentos. Foi mais</p><p>uma… doação obrigatória, chamemos-lhe assim. Eu não tive escolha no</p><p>assunto. Compreendes o que estou a dizer?</p><p>Respondi que sim, embora fosse mentira.</p><p>– Onde é que ele vive, mamã? – perguntei, cheia de coragem. –</p><p>Como é que ele é? O que é que faz?</p><p>– Não me lembro como ele era – respondeu-me, em tom indiferente</p><p>e enfadado. – Cheirava a caça corrompida e a roquefort liquefeito, se</p><p>isso te ajuda. – Deve ter visto o meu ar confuso porque se inclinou para</p><p>a frente e mostrou os dentes. – Isto é, a carne podre e a queijo bolorento</p><p>e fedorento, querida. – Fez uma pausa e recuperou a compostura. – Não</p><p>sei se está vivo ou morto, Eleanor – continuou. – Se está vivo, é provável</p><p>que tenha feito fortuna por meios duvidosos e pouco éticos. Se</p><p>morreu… e espero sinceramente que sim… então imagino que estará a</p><p>definhar no anel exterior do sétimo círculo do Inferno, mergulhado num</p><p>rio fervilhante de sangue e fogo, torturado por centauros.</p><p>Nessa altura, percebi que se calhar não valia a pena perguntar-lhe se</p><p>por acaso guardara alguma fotografia dele.</p><p>4</p><p>Era quarta-feira à noite. Hora da mamã. Por mais que eu desejasse o</p><p>contrário, ela arranjava sempre forma de me apanhar. Suspirei e apaguei</p><p>o rádio, sabendo que agora teria de esperar até ao compacto de domingo</p><p>para descobrir se a cidra de Eddie Grundy fermentara bem. Senti uma</p><p>vaga de otimismo desesperado. E se não tivesse de falar com ela? E se</p><p>pudesse falar com outra pessoa, outra pessoa qualquer?</p><p>– Estou? – atendi.</p><p>– Oh, olá, querida, sou eu. Que dia de merda, hã?</p><p>Não era nada surpreendente que a minha mãe tivesse acabado</p><p>institucionalizada – isso, podíamos presumir, era um dado adquirido,</p><p>tendo em conta a natureza do seu crime – mas ela ia muito, muito além</p><p>do necessário ao adotar ocasionalmente o sotaque e a gíria dos sítios</p><p>onde se encontrava. Eu presumia que isto a ajudava a dar-se bem com as</p><p>outras residentes, ou, talvez, com as guardas. Ou podia ser apenas para</p><p>se entreter. A mamã é muito boa com sotaques; na verdade, é uma</p><p>mulher com um vasto leque de talentos. Eu estava pronta para aquela</p><p>conversa, en garde, como tinha de estar sempre que falava com ela. É</p><p>uma adversária formidável. Talvez fosse insensato da minha parte, mas</p><p>dei a primeira estocada.</p><p>– Eu sei que só passou uma semana, mas parece que já não falamos</p><p>há uma eternidade, mamã. Tenho andado muito ocupada com o trabalho</p><p>e…</p><p>Ela cortou-me a palavra, desta vez doce como o mel, e o seu sotaque</p><p>era agora igual ao meu. Aquela voz; eu lembrava-me dela da infância,</p><p>ainda a ouvia nos meus pesadelos.</p><p>– Compreendo muito bem, querida – assegurou-me. Falou depressa.</p><p>– Escuta, não tenho muito tempo para conversar. Conta-me como foi a</p><p>tua semana. O que tens feito?</p><p>Disse-lhe que tinha ido assistir a um concerto, mencionei a festa de</p><p>despedida no escritório. Não referi mais nada. Assim que ouvi a voz</p><p>dela, senti o pavor familiar a invadir-me. Estava tão ansiosa por partilhar</p><p>a novidade, por a colocar aos pés dela como um cão de caça que foi</p><p>buscar uma perdiz cheia de chumbo. E agora não conseguia afastar o</p><p>pensamento de que ela pegaria na minha novidade e, com uma calma</p><p>brutal, a despedaçaria em pedacinhos.</p><p>– Oh, um concerto, parece maravilhoso… sempre gostei muito de</p><p>música. Aqui há um espetáculo de vez em quando, sabes; algumas das</p><p>residentes cantam umas canções na sala de jogos, se estiverem para aí</p><p>viradas. É muito… interessante.</p><p>Fez uma pausa e depois ouvi-a rosnar para alguém.</p><p>– Mas que merda, Jodi! Estou a falar com a minha filha e não vou</p><p>abreviar a conversa por causa de uma putéfia como tu. – Mais uma</p><p>pausa. – Não. Agora desaparece.</p><p>Pigarreou.</p><p>– Peço desculpa, querida. Era aquilo a que se chama uma</p><p>«toxicodependente»… Ela e as amigas, igualmente viciadas, foram</p><p>apanhadas</p><p>a roubar perfumes na Boots. Midnight Heat, da Beyoncé,</p><p>imagina. – Baixou outra vez a voz. – Não estamos propriamente a falar</p><p>de mestres do crime, querida… Acho que o professor Moriarty pode</p><p>ficar descansado.</p><p>Riu-se, um som cristalino, como se estivesse numa festa – o riso</p><p>ligeiro e animado de uma personagem de Noel Coward a apreciar uma</p><p>troca espirituosa de bon mots num terraço decorado com glicínias.</p><p>Tentei avançar com a conversa.</p><p>– Então… Como estás, mamã?</p><p>– Fabulosa, querida, simplesmente fabulosa. Tenho andado a</p><p>dedicar-me ao «artesanato»… umas senhoras simpáticas e bem-</p><p>intencionadas estão a ensinar-me a bordar almofadas. São muito</p><p>queridas em oferecer o seu tempo, não achas?</p><p>Imaginei a mamã com uma agulha comprida e afiada na mão e senti</p><p>um arrepio gelado na espinha.</p><p>– Mas chega de falar de mim – disse ela, com o tom de voz a</p><p>endurecer. – Quero saber de ti. Quais são os teus planos para o fim de</p><p>semana? Vais dançar, talvez? Algum admirador te convidou para sair?</p><p>Tanto veneno. Tentei ignorá-la.</p><p>– Ando a fazer pesquisa, mamã, para um projeto.</p><p>A respiração dela tornou-se mais acelerada.</p><p>– A sério? Que tipo de pesquisa? Andas à procura de informações</p><p>sobre uma coisa ou uma pessoa?</p><p>Não consegui conter-me.</p><p>– Uma pessoa, mamã – respondi.</p><p>Ela emitiu um murmúrio, tão leve que quase não a conseguia ouvir.</p><p>– Ah, então o jogo começou? Conta-me – pediu. – Sou toda ouvidos,</p><p>querida.</p><p>– Ainda não há nada para contar, mamã – admiti, olhando para o</p><p>relógio. – Simplesmente encontrei alguém… simpático… e quero</p><p>descobrir um pouco mais sobre… essa pessoa. – Tinha de polir e</p><p>aperfeiçoar as coisas antes de ter coragem de partilhar a minha joia</p><p>cintilante com ela, antes de a poder sujeitar à sua aprovação. Entretanto,</p><p>queria parar, queria que aquilo acabasse, por favor.</p><p>– Que maravilha! Espero que me vás mantendo a par desse teu</p><p>projeto, Eleanor – declarou, animada e ansiosa. – Sabes bem como</p><p>gostava que encontrasses alguém especial. Alguém apropriado. Todas as</p><p>conversas que tivemos, ao longo dos anos… Sempre tive a impressão de</p><p>que estás a perder muita coisa por não teres uma pessoa importante na</p><p>tua vida. É muito bom que tenhas começado à procura da… da tua cara-</p><p>metade. Um parceiro no crime, por assim dizer. – Riu-se baixinho.</p><p>– Não me sinto só, mamã – protestei. – Estou muito bem como</p><p>estou. Sempre estive muito bem sozinha.</p><p>– Bom, não estiveste sempre sozinha, pois não? – perguntou, em tom</p><p>matreiro, abafado. Senti o suor na nuca a humedecer-me o cabelo. – Seja</p><p>como for, diz a ti própria o que for preciso para ajudar a passar os dias,</p><p>querida – aconselhou, com uma risada. Tem jeito para se divertir a si</p><p>própria, apesar de mais ninguém se rir muito na sua companhia. – Podes</p><p>sempre falar comigo, sabes? Sobre qualquer assunto. Ou qualquer</p><p>pessoa. – Suspirou. – Gosto tanto de ter notícias tuas, minha querida…</p><p>Não podes compreender, claro, mas o elo de ligação entre uma mãe e</p><p>uma filha é… como hei de descrevê-lo… inquebrável. Nós as duas</p><p>estamos ligadas para sempre, percebes… Nas tuas veias corre o mesmo</p><p>sangue que nas minhas. Tu cresceste dentro de mim; os teus dentes, a tua</p><p>língua e o teu útero são feitos das minhas células, dos meus genes.</p><p>Quem sabe que surpresas terei deixado a crescer dentro de ti, que</p><p>códigos pus em andamento? Cancro da mama? Alzheimer? Tens de</p><p>esperar para ver. Estiveste a fermentar dentro de mim uma data de</p><p>meses, Eleanor, quentinha e confortável. Por mais que tentes afastar-te</p><p>desse facto, não consegues, querida, não podes. É impossível destruir</p><p>um elo assim tão forte.</p><p>– Pode ser verdade ou não, mamã – respondi, baixinho. Que audácia.</p><p>Não sei onde fui buscar a coragem. Tinha o sangue a latejar e as mãos a</p><p>tremer.</p><p>Ela respondeu como se eu não tivesse dito nada.</p><p>– Muito bem, então vamos falando, sim? Continua com o teu</p><p>pequeno projeto e conversamos para a semana, à mesma hora? Está</p><p>combinado. Tenho de ir… Adeusinho!</p><p>Só quando se instalou o silêncio é que me apercebi de que estava a</p><p>chorar.</p><p>5</p><p>Sexta-feira, finalmente. Quando cheguei ao escritório, os meus</p><p>colegas já estavam reunidos em volta da chaleira, a falar sobre</p><p>telenovelas. Ignoraram-me; há muito que deixei de tentar meter conversa</p><p>com eles. Pendurei o colete azul-escuro nas costas da cadeira e liguei o</p><p>computador. Perturbada pela conversa com a mamã, voltara a dormir</p><p>mal. Decidi fazer uma chávena de chá revigorante antes de começar a</p><p>trabalhar. Tenho a minha própria caneca e colher, que guardo na gaveta</p><p>da secretária por questões de higiene. Os meus colegas acham isto</p><p>estranho (pelo menos, é o que me parece pelas suas reações); no entanto,</p><p>não lhes faz confusão beber em chávenas imundas, lavadas com</p><p>descuido por mãos desconhecidas. Não consigo sequer tolerar a</p><p>perspetiva de enfiar na minha bebida quente uma colher de chá lambida</p><p>por um estranho meia hora antes. Que nojo!</p><p>Encostei-me ao lava-loiça enquanto esperava que a água fervesse,</p><p>tentando não ouvir as conversas deles. Passei o meu pequeno bule por</p><p>água quente mais uma vez, pelo sim, pelo não, e perdi-me em</p><p>pensamentos agradáveis sobre ele. O que estaria a fazer naquele</p><p>momento? Talvez a escrever uma canção? Ou ainda estaria a dormir?</p><p>Gostava de saber como será o rosto dele em repouso.</p><p>A chaleira apitou, aqueci o bule e deitei nele umas colheradas de</p><p>Darjeeling, ainda perdida em devaneios sobre a suposta beleza do meu</p><p>trovador adormecido. Os risinhos infantis dos meus colegas começaram</p><p>a intrometer-se nos meus pensamentos, mas presumi que estavam</p><p>relacionados com a minha escolha de bebida. Os pobres ignorantes</p><p>davam-se por satisfeitos em atirar um saquinho de chá de fraca</p><p>qualidade para dentro de uma caneca, despejar água a ferver em cima e</p><p>depois diluir qualquer resquício de sabor com leite gelado. Mais uma</p><p>vez, por algum motivo, eu é que sou considerada estranha. Mas se uma</p><p>pessoa vai beber um chá, porque não ter todos os cuidados para</p><p>maximizar esse prazer?</p><p>Os risinhos continuaram e Janey começou a cantarolar entre dentes.</p><p>Não fizeram qualquer tentativa de disfarçar; agora estavam a rir-se alto,</p><p>às gargalhadas. Ela parou de cantarolar e começou a cantar, mas não</p><p>reconheci a melodia nem a letra. Por fim, calou-se, incapaz de continuar,</p><p>perdida de riso, ainda a andar para trás de forma esquisita.</p><p>– Bom dia, Michael Jackson – cumprimentou-me Billy. – Porque é</p><p>que tem uma luva branca?</p><p>Então era esse o motivo da risota! Inacreditável.</p><p>– Por causa do eczema – respondi, em tom lento e paciente, como se</p><p>estivesse a explicar a uma criança. – Piorou na quarta-feira à noite e</p><p>tenho a pele da mão direita muito inflamada. Tenho esta luva de algodão</p><p>para prevenir uma infeção.</p><p>Os risos extinguiram-se, dando lugar a uma longa pausa. Os meus</p><p>colegas entreolharam-se em silêncio, como ruminantes no pasto.</p><p>Por norma não interajo com os meus colegas desta maneira informal,</p><p>o que me fez parar para pensar se não devia aproveitar a oportunidade. A</p><p>ligação fraternal de Bernadette ao alvo do meu afeto – com certeza que</p><p>não seria preciso mais do que alguns segundos para lhe extrair alguma</p><p>informação útil? Não me parecia que aguentasse uma interação muito</p><p>prolongada – ela tem uma voz bastante alta e áspera, e parece um</p><p>macaco a rir – mas com certeza que valeria a pena perder alguns</p><p>momentos do meu tempo. Mexi o chá na direção dos ponteiros do</p><p>relógio enquanto me preparava para a jogada inicial.</p><p>– Gostou do resto do concerto na outra noite, Billy? – perguntei. Ele</p><p>pareceu surpreendido com a pergunta e fez uma pausa antes de</p><p>responder.</p><p>– Sim, foi bom – Um orador dotado, como sempre. Aquela ia ser</p><p>uma tarefa difícil.</p><p>– Os outros cantores eram de nível semelhante ao… – fingi estar a</p><p>espremer o cérebro – … Johnnie Lomond?</p><p>– Não eram maus – comentou Billy, com um encolher de ombros.</p><p>(Que visão, que prosa clara e descritiva!)</p><p>Bernadette meteu-se na conversa, como eu sabia que aconteceria,</p><p>incapaz de resistir a uma oportunidade de chamar a atenção para si</p><p>própria por todos</p><p>os meios disponíveis.</p><p>– Eu conheço-o, ao Johnnie Lomond – intrometeu-se, em tom</p><p>orgulhoso. – Era amigo do meu irmão na escola.</p><p>– Sim? – respondi com um interesse que, para variar, não era fingido.</p><p>– Em que escola?</p><p>O modo como ela enunciou o nome do estabelecimento dava a</p><p>entender que era suposto conhecê-lo. Tentei parecer impressionada.</p><p>– E ainda são amigos? – perguntei, enquanto voltava a mexer o chá.</p><p>– Nem por isso – respondeu Bernadette. – Ele foi ao casamento do</p><p>Paul, mas depois acho que se afastaram. Sabem como é… Quando uma</p><p>pessoa casa e tem filhos acaba por perder o contacto com os amigos</p><p>solteiros. Deixam de ter coisas em comum…</p><p>Eu não tinha nem conhecimento nem experiência na situação que ela</p><p>acabara de descrever, mas acenei como soubesse do que ela estava a</p><p>falar, enquanto a mesma frase passava uma e outra vez na minha mente:</p><p>ele é solteiro, ele é solteiro, ele é solteiro.</p><p>Peguei no chá e voltei para a minha secretária. Os risos deles</p><p>pareciam agora ter-se transformado em murmúrios. Nunca deixa de me</p><p>espantar as coisas que os meus colegas acham interessantes, divertidas</p><p>ou invulgares. Só posso presumir que tiveram vidas muito protegidas.</p><p>Janey, a secretária, ficara noiva do seu neandertal mais recente e</p><p>nessa tarde íamos dar-lhe uma prenda. Eu contribuíra com setenta e oito</p><p>cêntimos. No dia da recolha só tinha moedas pretas na carteira e uma</p><p>nota de cinco, e de certeza que não ia pôr uma soma tão extravagante no</p><p>envelope comunitário para comprar algo desnecessário para alguém que</p><p>mal conhecia. Ao longo dos anos, já devo ter contribuído com centenas</p><p>de libras para todos os presentes de despedida, de bebé e de aniversário</p><p>da empresa, e o que é que recebo em troca? Os meus aniversários</p><p>passam sempre sem ser assinalados.</p><p>A pessoa que comprara o presente de noivado escolhera um conjunto</p><p>de copos de vinho e garrafa de cristal. Tais acessórios são</p><p>desnecessários quando bebemos vodca – eu limito-me a usar a minha</p><p>caneca preferida. Comprei-a numa loja de solidariedade há alguns anos;</p><p>tem uma fotografia de um homem com cara de lua, a usar um blusão de</p><p>cabedal castanho. Por cima, numa letra amarela esquisita, lê-se Top</p><p>Gear. Não finjo compreender esta caneca. Contudo, leva a quantidade</p><p>perfeita de vodca, eliminando a necessidade de reabastecimentos</p><p>frequentes.</p><p>Janey estava a planear um noivado curto, informou em tom afetado,</p><p>portanto a inevitável recolha de dinheiro para o presente de casamento</p><p>não devia tardar. De todas as contribuições financeiras obrigatórias, essa</p><p>é a que me irrita mais. Duas pessoas passeiam-se por uma loja cara a</p><p>escolher artigos bonitos e depois fazem os outros pagar por eles. É</p><p>preciso ter muito descaramento. Escolhem coisas como pratos, taças e</p><p>talheres – quer dizer, como é que estão a viver neste momento? Comem</p><p>diretamente dos pacotes, com as mãos? Não consigo perceber como o</p><p>ato de formalizar legalmente uma relação humana implica que amigos,</p><p>familiares e colegas tenham de adquirir equipamentos novos e melhores</p><p>para a cozinha do casal.</p><p>Na verdade, nunca compareci a uma cerimónia de casamento. Fui</p><p>convidada para o copo-d’água de Loretta há uns dois anos, bem como</p><p>toda a gente no escritório. A receção decorreu num hotel horrível, perto</p><p>do aeroporto, e foi preciso alugar um miniautocarro para lá chegar; tive</p><p>de contribuir para o preço disso, além dos bilhetes para regressar,</p><p>primeiro à cidade e depois a casa. Os convidados foram obrigados a</p><p>pagar as próprias bebidas a noite toda, o que me chocou. Admito que o</p><p>entretenimento não é a minha área de especialidade, mas com certeza</p><p>que os anfitriões têm a responsabilidade de garantir as libações dos</p><p>convidados, não? É um princípio básico da hospitalidade em todas as</p><p>sociedades e culturas, desde tempos imemoriais. No evento em questão,</p><p>bebi água da torneira – é raro consumir álcool em público. Só aprecio</p><p>realmente uma bebida quando estou sozinha, em casa. Pelo menos,</p><p>serviram chá e café mais para o fim da noite, sem cobrar nada; a</p><p>acompanhar, uns salgadinhos de má qualidade e, de forma muito bizarra,</p><p>fatias de bolo de Natal. Havia uma discoteca e durante horas e horas</p><p>aquelas pessoas terríveis dançaram de forma terrível ao som de música</p><p>terrível. Eu fiquei sentada, sozinha, e ninguém me convidou para dançar,</p><p>o que não me incomodou absolutamente nada.</p><p>Os outros convidados pareciam estar a divertir-se, pelo menos</p><p>presumi que sim. Arrastavam os pés pela pista de dança, bêbados e</p><p>corados. Os seus sapatos pareciam desconfortáveis e gritavam as letras</p><p>das canções na cara uns dos outros. Nunca mais porei os pés num evento</p><p>desses. Por uma chávena de chá e uma fatia de bolo não vale mesmo a</p><p>pena. Contudo, a noite não foi um total desperdício, porque consegui</p><p>enfiar quase uma dúzia de folhados de salsicha na mala, enrolados em</p><p>guardanapos, para comer mais tarde. Infelizmente, não eram lá muito</p><p>saborosos – muito longe da qualidade dos fiáveis folhados da padaria</p><p>Greggs.</p><p>Quando a festa chegou finalmente ao fim, vesti o meu colete e</p><p>desliguei o computador, entusiasmada com a perspetiva de ligar o meu</p><p>computador pessoal em casa o mais depressa possível. Talvez</p><p>conseguisse encontrar online alguma informação útil sobre o tempo de</p><p>escola dele, agora que conseguira arrancar uma pepita de conhecimento</p><p>novo a Bernadette. Como seria maravilhoso se houvesse uma fotografia</p><p>dos seus tempos de estudante! Adorava ver como ele era na juventude, se</p><p>sempre fora belo ou se desabrochara numa borboleta gloriosa</p><p>relativamente tarde. Apostava, contudo, que era deslumbrante desde que</p><p>nascera. Talvez encontrasse uma lista dos prémios que conquistara!</p><p>Música, claro, Inglês, provavelmente: afinal, escrevia letras tão</p><p>maravilhosas. De qualquer maneira, ele parecia-me do tipo que ganha</p><p>prémios.</p><p>Tento planear as minhas saídas do escritório de forma a não ter de</p><p>falar com ninguém. Há sempre tantas perguntas. O que vai fazer hoje à</p><p>noite? Planos para o fim de semana? Já marcou as férias? Não percebo</p><p>porque é que os outros estão sempre tão interessados na minha agenda.</p><p>Calculara perfeitamente os meus passos e estava à porta quando me</p><p>apercebi de que alguém a segurava para eu passar. Virei-me.</p><p>– Tudo bem, Eleanor? – perguntou o homem, com um sorriso</p><p>paciente, enquanto eu desenrolava o fio das luvas da manga. Embora não</p><p>fossem indispensáveis na temperatura amena atual, tenho-as sempre a</p><p>postos para o caso de uma eventual mudança de tempo assim o exigir.</p><p>– Sim – respondi; e depois, recordando as minhas boas maneiras,</p><p>murmurei: – Obrigada, Raymond.</p><p>– De nada – contrapôs.</p><p>Para meu aborrecimento, pôs-se a caminhar ao meu lado.</p><p>– Para onde vai? – perguntou. Acenei vagamente na direção da</p><p>colina. – Eu também – disse.</p><p>Baixei-me e fingi estar a prender o Velcro do meu sapato. Demorei o</p><p>máximo que podia, na esperança de que Raymond percebesse a indireta.</p><p>Quando por fim me levantei, ele ainda ali estava, com os braços</p><p>pendentes ao lado do corpo. Reparei que o seu casaco era uma</p><p>canadiana. Uma canadiana! Com certeza que só crianças e ursinhos de</p><p>peluche usavam casacos daqueles? Recomeçámos a caminhar juntos e</p><p>ele tirou do bolso um maço de cigarros e ofereceu-me um. Recuei,</p><p>horrorizada.</p><p>– Nojento! – exclamei. Sem se deixar afetar, ele acendeu um cigarro.</p><p>– Desculpe – murmurou. – É um hábito horrível, eu sei.</p><p>– É mesmo – concordei. – Vai morrer anos antes do que poderia</p><p>morrer, de cancro ou problemas cardíacos. Não verá logo os efeitos no</p><p>coração e nos pulmões, mas dará por eles na boca… doenças das</p><p>gengivas, perda de dentes… e já tem a pele baça e prematuramente</p><p>enrugada que é característica dos fumadores. Os constituintes químicos</p><p>dos cigarros incluem cianeto e amónia, sabe? Quer mesmo estar a ingerir</p><p>voluntariamente essas substâncias tão tóxicas?</p><p>– Para uma não fumadora, parece saber muito sobre tabaco –</p><p>comentou, soprando uma nuvem fedorenta de carcinogéneos entre os</p><p>lábios finos.</p><p>– Durante algum tempo considerei a possibilidade de começar a</p><p>fumar –</p>
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Name: Frankie Dare

Birthday: 2000-01-27

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Job: Sales Manager

Hobby: Baton twirling, Stand-up comedy, Leather crafting, Rugby, tabletop games, Jigsaw puzzles, Air sports

Introduction: My name is Frankie Dare, I am a funny, beautiful, proud, fair, pleasant, cheerful, enthusiastic person who loves writing and wants to share my knowledge and understanding with you.